"O rio é uma incógnita"
Tiago Martinello, jornalista acreano
A enchente do rio
Acre afogou a última galinha que restava no fundo do quintal de cada morador; a preguiça de estimação não desceu do cume das árvores e o filhote de Sucuri debruçou-se no punho da rede de Justino.
Neste março, esse
pedaço abandonado da terra encolheu e ficou mergulhada nas águas doces do mundo.
Foi por conta de um relâmpago que reluziu nos céus e atingiu o peito de um
crucifixo que ficava pendurado no lado de fora de uma casa nos cafundós da
floresta, num ponto equidistante entre o Purus e o Juruá a montante do distante
Amazonas. Homens da terra Aquiri murmuraram, aferindo que os deuses da chuva e
seus santos haviam esquecido suas terras durante uma sesta, após se
empanturrarem de açaí com camarão depois de uma ceia com peixe-frito e a última
colheita do arroz branco.
Contaram os
ribeirinhos a um repórter investigativo que, por mais de 10 dias, a água de uma
fonte diabólica era espremida do céu e caia no chão feito uma enxurrada
oceânica. Viajantes de embarcações diziam que o Cramulhão tinha aparecido em
bosques e em lugares secretos às margens de rios e enseadas, e semeado praga
pelas redondezas.
Durante aqueles
dias, o céu escurecia de dia, e, à noite, estrelas caíam no choro, jorrando lágrimas, de modo que até foi visto um
cometa anunciando o Armagedom.
No ano anterior,
as colheitas nos campos já estavam minguando por conta das queimadas ressaltadas pelas
intransigências na calota craniana dos homens e da Antártida. Isto já era prenúncio
de nuvens cinzentas carregadas de furor.
Choveu como
nunca, e junto com o desgelo da Cordilheira, Satã assoprou, o rio
encheu e arrastou por sua corrente pontes, casas, ruas e esperanças. Humanos
desapareceram junto com as últimas galinhas daqueles quintais.
Quando as águas baixarem e a trégua for dada,
vou escrever um poema que fale da vida acreana, onde meu DNA plantou um pé de
flor que carrega espinho no talo.
Labareda, do bando de Corisco.
Não será por falta de notícias que você empunhará novamente o lápis para falar do seu Acre menino.
ResponderExcluirMeu cunhado chegou de lá e disse que águas baixaram.
Aguardaremos, portanto, que mantenhas a palavra em pé!
Estou sem fôlego. Quando melhorar - o fôlego - e entrar em sincronia com as águas, desgarrará de mim o talo da palavras. Deixa vir.
ResponderExcluirGente, mas que texto bacana! Parabéns a Labareda. Que mande notícias sempre, pra meu deleite.
ResponderExcluirLabareda só se arrisca por aqui, aos domingos, quase sempre. Quando desaparecer é por estar incrustado em textos científicos. Foi de lá que Labareda, filho da liberdade de escrever, começou a mundiar. Depois vocês me receberam por aqui: encostei, gostei, flanei e por aqui fiquei. Tal como Forrest Gump, nunca mais parei de andar com as palavras... Vocês foram os culpados. Obrigado. Suas palmas também me são deleites.
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