Falamos para nos vermos,
para nos ouvirmos,
para nos ouvirmos,
para sermos instante e infinito
Abel Sidney, poeta
Estávamos escorados na sombra do mundo, sob a aba de um Jatobá, quando
ouvimos o chamado do tio: abandonar aquela vida interiorana e ganhar a
imensidão da capital. Justificou que a infância tinha findado e já era tempo de
estudo na cidade grande. Não poderíamos ficar mais ali a ver barquinhos,
sabendo desse tio que morava em Belém e que estaria disposto a nos albergar por
uns tempos, até tomarmos o próprio rumo e passarmos a ver navios.
Pegamos ônibus de Ji-Paraná até Porto Velho, varando a floresta. Lá amanhecemos,
fomos para um hotel de trânsito do Basa, descansamos, almoçamos e depois pegamos
um DC-3 até Manaus e pousar em Val-de-Cans, ao anoitecer. Tudo numa cipoada só.
No aeroporto tratamos logo de selar amizade com Juarez, hoje anestesiologista,
moço que carregava simplicidade e compaixão de doer o dedo mindinho de Cristo. A partir
dali nos apresentou para uma patota do Jardim Ipiranga e tudo virou festa,
principalmente quando o assunto era futebol.
Depois dessa primeira turma de amigos, outra que marcou foi a da
faculdade de Medicina, de 1982-87, que só acabou quando viajei de vez para o
Rio de Janeiro.
Desta fase lembro, ainda no ônibus, a descida no Guamá. No caminho
me esbarrava com a Anete (que abandonou o curso), Marília, Julinha e tantos outros
que a memória definhou e me passou sarrafo. Junto íamos regando amizades como
se regássemos crisântemos. Depois dos dois primeiros anos começamos a frequentar
o “mosteiro” de Santa Luzia e a Santa Casa, e a relação ficou mais prazerosa
até o sexto ano.
Na biblioteca, em torno da cantina ou nas salas do Matadouro buscávamos
a pedra filosofal escondida nos segredos hipocráticos, entre as paredes da faculdade. Max, Zé Pedro, João Carlos, Raynaud, Sergio Lima e Humberto foram meus maiores
parceiros de livro, mas sempre que podíamos, entre uma aula e outra, programávamos
os feriados - desde que o toc-toc das provas não reverberasse na porta da segunda-feira.
Também colecionamos diversas histórias, como por exemplo, o convívio
com o jubilado Fernando Arara, que chegava com aquele violão empenado e uma
gaita enferrujada cantando Blowing in the
Wind, no mesmo tom e harmonia de Bob Dylan. Ainda tinha o Felipe e o Peruquinha, figuras que destoavam no liceu, mas que carregavam paz no fundo de suas retinas.
Mas o que nos fortificou mesmo foi o final, depois daquela noite no teatro da Paz, quando entoamos “Rosa de Hiroshima” e nos
despedimos do Prof. Camilo Viana. Depois vieram reencontros, lembranças das
greves, abertura política e “diretas já” com Fafá de Belém, Tancredo Neves
e todos cantando “Coração de Estudante” pelas soleiras da Generalíssimo.
Hoje somos cinquentões e 1987 ficou na estrada do sentimento amarrado
na cordoalha tendinosa daqueles tempos idos. Alguns ficaram pelo caminho e
abandonaram o curso, como o Zeca Pimentel e a Anete, outros foram forçados precocemente
a ir pro segundo andar, como a Claudia Abe, Haroldo e o Altair.
Afora as avarias do tempo, estamos muito bem vivos e sempre nos
encontrando nos embalos das redes sociais. Neste fim de semana, por exemplo, a
Fátima resolveu comemorar seus cinquenta tons de vida e convidou a turma. A presença
foi massiva. Alguns vieram de longe, como o Mário Rubens e Socorro “Help”
Amoras (SP) e Sued (MG). O outro bando foi daqui mesmo. A Fátima, que dia
desses recebeu uma medula óssea por transplante, merecia comemorar com essa
turma que, durante o tratamento, fez figa e orava na basílica de Nazaré,
para que, com muita fé, ela voltasse a viver e nos encontrar... E voltou... e nos reencontrou.
Vez por outra vou ao velho
casarão de Santa Luzia e sempre me vem uma passagem machadiana: “Lá não via ninguém,
mas é certo que a sala [de aula] estava cheia de espíritos, repimpados em
cadeiras abstratas”.
Labareda,
do bando de Corisco
Emocionante Roger. ...
ResponderExcluirSem mais palavras!
Ana Cristina Tavares
Ana, Ana, quanto tempo! Por onde andas, Pequena! És uma dessas personagens dessas andanças entre o Guamá e a faculdade de Medicina. O que fiz foi apenas sobrevoar o passado nas asas da palavra. Volte sempre a este cantinho. Vez por outra vou aninhando o verbo no tempo passado só para jogar a isca e rever todos. Um forte abraço!!!
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