Vejamos, uma pessoa pode chegar à nascente do rio,
andando pela margem, não é?
José Saramago, em: "Democracia e Universidade"
Pra quem já passou por uma universidade, costuma-se aferir que é a página
mais marcante da vida profissional. E para quem se tornou um escritor sem a sombra dos muros da academia, como Saramago, como então olhar criticamente para o interior
da universidade? Eis a grande mensagem do livro (EDUFPA, 2O13), uma coletânea de discursos em salas universitárias por onde rodou.
Durante a escavação da leitura, depara-se com a seguinte passagem
subterrânea: "A universidade, na minha opinião,
deveria reivindicar algo mais que aquilo que objetivamente, lhe é
próprio: a qualidade do ensino a partir da nascente do rio". Parei.
Lembrei-me do Diogo Pinheiro, um ribeirinho que conheci ainda criança. Diogo mora no Tucumanduba, às margens de um pequeno
rio da grande bacia amazônica, que vai dar no Tocantins.
Filho e neto de ribeirinhos, a mãe pôs-se a ser professora de ensino
público e o pai, apanhador de açaí e pequeno pescador de anzol e matapi, assim como o avô Bené. Até hoje, com mais de 70, Bené escala um açaizeiro como menino de 15. Diogo foi sustentado pelo rio e floresta, e sua mãe o amamentou com a leitura.
Assim Diogo chegou à adolescência e, hoje, aos 16 anos, é um leitor contumaz.

Certa vez, um casal de pesquisadores finlandeses foi
visitar o lugarejo e viu aquele menino contemplando um livro. Deram-lhe uns dinheiros para ajudar nos estudos e aquele regalo ajudou Diogo a conquistar a aprovação em primeiro lugar para
o curso de direito - Universidade Federal do Pará.
Diogo estudou numa pequena escola pública da periferia de Abaetetuba, a cidade mais próxima. O pai está eufórico e a mãe radiante, pois, pela beira de um rio, andaram na contracorrente do que se apregoa como caminhada linear para se chegar à universidade. Ou seja, estava de um lado da margem, enquanto avistavam o movimento da sociedade do outro, até alcançarem os próprios sonhos na vez do filho. Vô Bené chama isso de cuíra.
Diogo estudou numa pequena escola pública da periferia de Abaetetuba, a cidade mais próxima. O pai está eufórico e a mãe radiante, pois, pela beira de um rio, andaram na contracorrente do que se apregoa como caminhada linear para se chegar à universidade. Ou seja, estava de um lado da margem, enquanto avistavam o movimento da sociedade do outro, até alcançarem os próprios sonhos na vez do filho. Vô Bené chama isso de cuíra.
Em “Democracia e Universidade”, Saramago dá voz a Diogo, que o Estado insiste em ignorar. Essa voz ecoa da nascente do rio - o umbigo da formação universitária. Então, quando Diogo puser os pés naquela universidade, que fica à margem de outro rio - mais largo, até -, certamente estará muito mais contribuindo
para a universalização da academia, do que a academia para seu universo, afinal o tapuio leva na mochila o olho d'água do veio da vida.
"...harmonia...homem...ambiente..."
ResponderExcluir"...harmonia...homem...ambiente..."
ResponderExcluirQue reflexão e metáforas mais lindas, Roger. E, sabes, eu gosto muito, muito mesmo, do Eduardo Galeano, que tampouco é filho de universidades, mas dá um caldo e tanto em um sem número de acadêmicos. Geralmente isso causa surpresa. A mim surpreendeu. Talvez seja nossa formação urbanóide que nos ensina a dar valor apenas aos saberes produzidos neste lado do rio, infelizmente. Aos poucos e com alguma sensibilidade, podemos notar quão valiosos são esses outros saberes, os das nascentes dos rios, também das densas matas...
ResponderExcluirSorte a Diogo. E viva Saramago.
Salve, salve, Erica. Galeano vem lentamente habitando meu vasto silêncio sobre sua obra e o que encerra as veias porosas de nossa América de saberes e dessaberes. Diogo é essa espécie de caminho a remo, que costumo apelidar de "dessaberes" em que nossas universidades precisam se atracar, para não se deixar ser levada pela maré dos que desprezam essa outra margem do conhecimento.
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