A montanha era a última forma antes do fim de tudo o
que existia,
recortada no horizonte, corpo enorme que observava o
mundo.
José Luis Peixoto, em: A Montanha
Para quem viaja por estrada, o horizonte finda na montanha; não se enxerga além. E a montanha assiste-nos do cume. É a metáfora de José Luis Peixoto em seu novo livro “A montanha”, sendo cancro o pano de fundo da narrativa, além do horizonte.
Adendo: cancro, na língua portuguesa, usa-se em Portugal, enquanto câncer pertence ao Brasil, embora tenham significado e peso no mesmo calibre. É grafado da mesma forma em inglês, mas pronunciado com a língua meio dobrada. Em espanhol não muda. Em francês se diz "le cancer", como em "cancer du poumon", mas fazendo biquinho.
Tuberculose não. É a mesma grafia. No passado "tísica", hoje tuberculose, que ainda ceifa muitos. No passado, alvejou pulmão de poetas e de Simon Bolívar, no relato libertário (ou literário) de Gabriel Garcia Márquez.
Não é a escatologia em si, tampouco o estertor da última ausculta, mas a partida de João, um dos personagens de Peixoto, é sob calmaria. É uma novela sob o pendor do silêncio - diferente de luto. É a relação poética entre a doença e a montanha, vivida no romance. Lembra Hans Castorp, em "A montanha mágica", de Thomas Mann, sobre a tuberculose. É a vida fora do livro e dentro do livro.
Tuberculose e câncer já se emboletam pela medicina há algum tempo, mas distantes na literatura. Na ciência seus roteiros lembram o globo da morte dos circos, ou mesmo o modelo atômico de Bohr. Ambas circulam no mesmo espaço sem cruzamentos, mas vez ou outra se chocam e escalavram nossas vivências.
Ler José Luiz Peixoto, expoente da literatura mundial, fez-me lembrar outro: Aleksandr Solzhenitsyn, laureado pelo Nobel em “Pavilhão dos Cancerosos”. Li-o na íntegra para entender a história social do câncer, lá no começo de tudo. Dói. Peixoto, até dói, mas traz analgésico na ponta da caneta, com as tintas verde e encarnada de Pessoa, Camões, Sophia de Mello. Já o russo se veste de Maiakovski e Pushkin, ambos assassinados de forma vil, sangrando as artérias da poesia mundial, deixando-nos sem pulmões. A pari passu, cada página lida de Peixoto, passava-me pelo canto da memória o russo Solzhenitsyn.
No livro de Peixoto, há um personagem oculto: Gonçalo Paupério, cirurgião torácico do Instituto Português de Oncologia (IPO-Porto). Foi quem me presenteou a obra, pelas vezes me recebeu no IPO, quando morei com meus filhos no norte de Portugal. Ele permitiu-me ser amigo de Peixoto sem ele saber. Isso pouco importa, o autógrafo registra o fato e eu registro a leitura nesse ensaio.
Mas se Peixoto vem de Galveias, eu vou como aquele paraense estranho que Alice, em “A Montanha”, procurou saber: “provável
comedor de pato no tucupi, tacacá e maniçoba”, na página 107, esquina com a Perebebuí.
E se Peixoto não puder vir, que envie Bjorn Alepson, seu personagem predileto, para se deliciar com a desventura da arte de escrever sob o pendor da hemoptise, já que Saramago e José Régio já se foram, assim como Manuel Bandeira, asfixiado dentro do próprio poema “Pneumotórax”.
Vale relembrar a Bjorn que não temos montanhas. Aqui é plano e pleno e, no infinito, ainda se vê floresta. Aqui a vida ainda segue fora do livro.
















