Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
domingo, 6 de outubro de 2024
Made in Acre
Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
sábado, 21 de setembro de 2024
É tarde, escrevo: o porão convalesce de um luto
Para quê a gente escreve, senão para juntar nossos pedacinhos
Eduardo Galeano,
escritor uruguaio, em: “O livro dos abraços”
Se o conceito de acolhimento dorme no fundo do Caldas Aulete, seja como sinônimo de refúgio ou de guarida, ele acorda nos braços de dona Lourdinha.
Lourdinha e o Chavico moravam numa casa enorme na Gentil Bittencourt, e nela havia um porão, onde dormiam Luiz Pedro, o mais velho e estudante de engenharia, e o Luiz Gonzaga, sobrinho de d. Lurdinha. Assim como eu, Gonzaga migrou do interior, em busca de estudos. Éramos do mesmo colégio. Nossa amizade foi condecorada com futebol e quando fui convidado pra estudar naquele porão. No primeiro semestre eu passava por lá somente às vésperas de provas. No segundo semestre praticamente passei a morar lá, pois nossas notas haviam melhorado e começávamos a acreditar que aquela parceria daria passaporte para a universidade. Em que pese grande disputa por vaga e nossas fragilidades inerente ao ensino no interior, acabamos sendo aprovados, com alguma pitada de destaque.
Muitas lembranças ficaram daquele porão. Gonzaga seguiu no curso de farmácia e depois voltou para Balsas, seu interior do Maranhão. Eu segui para o Rio de Janeiro. Conheci uma carioca de laranjeiras e por lá me casei, logo que acabei o período de residência médica. Nunca mais encontrei Gonzaga – ou Silva Neto, como era conhecido no seio familiar. Também nunca mais voltei àquele porão. Ficou um agradecimento sem tamanho e uma dívida enorme de gratidão àquela família. Ali vivi um estado de espírito osmoticamente contraído pela servidão que me ofereciam.
Lembro bem a hora do café. Sentávamos em uma mesa grande em que “seu” Chaves ficava na cabeceira, de banho tomado, cheirando a patchouli, cujas costas se voltavam para os janelões amplamente abertos, por onde vazava o sol. Havia plantas naturais entre algumas samambaias. Já no carro, acho eu uma Caravan bege - ou marrom-, Chavico nos deixava na escola e seguia para o trabalho de bancário. Dona Lourdinha segurava a tarefa de casa, como tradicionalmente ocorria com as famílias de outrora.
Uma fotografia datada de 1982 e a outra recente de 2024 fizeram-me revisitar esse passado adocicado, que nunca quis me abandonar. Na de 82 estavam eu, Gonzaga, Jaques e uma moça de nossa idade, cujo nome não conseguirei lembrar. Estávamos abraçados, fazendo pose para a máquina. A imagem carregava o sol de um sábado de fevereiro. Era de manhã e acabara de sair, pelas ondas do rádio, o listão do vestibular. A comemoração na calçada foi regada a Pinduca com maizena e ovos crus nas cabeças raspadas. Eu havia levado uma topada minutos antes e esfolado um dos dedos. A fotografia ainda mostrava o sangue escorrendo pela calçada. Carrego a unha deformada até hoje. Mas se no lado de fora havia sangue e dor, no de dentro do casarão e do meu coração, d. Lourdinha e Chavico estavam eufóricos.
Já a fotografia de 2024 tem autoria de Nayara, neta de d. Lourdinha. Ela nos flagrou no leito do hospital conversando sobre a sua enfermidade e as perspectivas após cirurgia (paliativa). Já eram os primeiros sinais de desconforto respiratório. Mesmo gravemente enferma ela soltou um sorriso de passividade que surpreendeu a autora da fotografia: “rindo só pro dr. Roger”. Os filhos e netos entenderam, com a mesma sabedoria de seus pais, que a finitude, ao ganhar braços, pernas e asas, dá-nos a mão gelada tão somente para pedir passagem.
D. Lourdinha seguiu para companhia de seu esposo Chaves, que já mora há algum tempo no lado de lá. Ele foi funcionário do Banco da Amazônia. Lá conheceu meu pai, até findar nesse relato. Ele considerou a possibilidade de me ajudar nessa jornada pela terra. Tirei proveito e me encaminhei para esse destino: eu e Gonzaga - aliás, o Silva Neto.
Se tive a frustração de meu estetoscópio não conseguir escutar o murmúrio saudável da respiração de d. Lurdinha, salvaram-me os abraços dos filhos, que junto àquele destino, choramos as doces lágrimas da singeleza que a vida traça e nos encordoa.sábado, 27 de julho de 2024
Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o esterno
Há alguns dias um amigo anestesiologista parou-me no corredor para meia prosa, assaz inebriante, que lhe ocorreu após breve anamnese com seu paciente, na ante-sala de operação para retirada da vesícula biliar. Percebeu que o vovô de 82 anos tinha o peito escavado – conhecido como “peito de sapateiro”. Ele, fortuitamente, interrogou o paciente sobre aquela deformidade. Com intenção de dizer que existe solução cirúrgica moderna para o caso, o paciente respondeu na bucha: - Não faça isso dotô. Essa deformidade já me salvou de perrengues.
Segundo o vovô, certa vez sofrera um
acidente de carro e foi levado para o pronto socorro. Meio desacordado e sob
efeito do trauma psicológico, o jovem médico, desavisado, viu aquele defeito e achou que a concavidade seria por conta do acidente. Ensaiou chamar o cirurgião, mas o velho amigo de farra cortou e aparou: defeito de
infância! "Por um triz eu não fui pra sala de cirurgia".
- Tem mais uma, dotô! Fui nadador dos bons, e essa
deformidade dava-me maior tempo de apneia ao mergulhar. Sempre derrotava os concorrentes nesse quesito.
Para ele, o sucesso era por conta daquela afundamento. Leva a vida assim desde então. Para ele nunca foi doença. Só para os cirurgiões. Ou será que o amigo confundiu-se com Peito de Pombo (Pectus Carinado/Carinatum)
Fico a imaginar as histórias que cada médico carrega em seu jaleco. São vivências belas, brilhantes, arrebatadoras. Talvez até mesmo beatificantes. Cabe a cada um, detentor do conhecimento, apenas ter sobriedade para ouvir sem retrucar. Se outrora o espírito não era requerido por um estrito modo de pensar dentro da caixa científica, então a atividade consistia em imaginar símbolos e formas. Há de se perdoar. Não cabe virilidade.
Recentemente (2024), um estudo da University of Cincinnati revelou, com 274 adolescentes com Pectus Excavatum (peito escavado, peito de sapateiro) tiveram seus fôlegos avaliados. Observaram que os resultados em pouco mais de 20% demonstraram alguma pequena restrição na respiração, mas sem essa de melhorar o fôlego, conforme brandia nosso vovô.
O artigo já encanta no título: (F)utility of preoperative pulmonary function testing in pectus
excavatum to assess severity [(F)utilidade dos testes...]
O que se tem feito, e somos adeptos, é esclarecer à
família e tranquilizá-los da melhor forma possível, para que se sintam seguros
em ser submetido a uma operação que menos parece questão visceral e mais um
remodelamento anatômico.
O artigo é muito prático e carrega desde o título a proposta
de todo pensamento científico, ou seja, desvendar dúvidas atrozes que se carrega
no cotidiano acerca da uma deformidade que maltrata a cabeça dos pais e leva
crianças e adolescentes a sofrerem bullying, vergonha e até mesmo depressão.
E o pensamento clínico fica no meio disso,
procurando dar pirueta olímpica para decifrar os sentimentos adversários. Essa,
aliás, não é uma questão fácil de resolver pelos algoritmos da Inteligência
Artificial (IA), pois cada caso precisa ser interpretado de acordo com Inteligência Alheia (Também IA). Por isso devemos
agradecer ao grupo de Cincinatti e a grupos brasileiros que sabiamente buscam tais esclarecimentos.
Mas devo confessar que já não me angustia tanto os
enigmas em torno das fronteiras entre ficção e fatos científicos. Há médicos em que um
dos ouvidos dá voz à ficção; já no ouvido oposto, acústico ao saber erudito, prefere silenciar e deixar que o outro lado não desapareça, pois ainda se precisa
desses relatos para deixar a respiração da humanidade mais leve.
sexta-feira, 19 de julho de 2024
Mais que um caso clínico, o passado
Ao final dessa jornada
Onde posse vale um nada
Eu diga em contrapartida
Valeram as voltas da vida.
Corisco
"O paciente, em crise de loucura, tentou arrancar o dreno", retrata o cirurgião ao ver que seu paciente retirou o dreno de si, sem anestesia, e com requinte de crueldade. Foi autoflagelamento, diriam, mas por incrível que pareça, ele teve a consciência de não evadir. Relatos como esses não são raros em prontos-socorros.
Teria sido pesadelo? O pesadelo é um sonho desesperado, acordando suado no meio da noite. É quando o marinheiro escuta a tempestade em alto mar; ou barulho da pá do coveiro jogando terra virada para enterrar vítimas de uma pandemia. É o urso rosnando à sua frente numa estrada estreita e sem rota de fuga. É o que faz chorar o coração. É a abstinência dos adictos.
Levado ao setor de radiografias, o cirurgião ficou surpreso ao ver a imagem de parte do objeto no interior do tórax, cujo dispositivo havia sido colocado na sala de emergência, com todo capricho, por incisão de cerca de 2cm.
Decidiu-se pela reintervenção sob anestesia geral. Então o tórax do paciente foi aberto com incisão de quase um palmo, para a retirada daquele corpo estranho, de formato tubular, pouco maior que 30cm. Nessas operações, o que mais maltrata o paciente é a colocação de um afastador, que em metade dos casos acaba fissurando as costelas. A dor pós-operatória é lancinante e pode durar muito tempo. Descobri pela enfermeira de 40 anos de casa, que aquele instrumental ainda era o mesmo desde quando ela chegou, quando ainda era estudante, eu. Convidado, decidi ir ao hospital
para ver aquela situação inusitada em que o paciente entendia que ele mesmo
poderia dar destino ao seu destino. Fui e fotografei, mas o que me faz vir aqui
e relatar não foi o caso em si, mas o passado.
Antes de mais nada, gostaria de pedir
licença a esse passado. Até porque tenho muito mais de memória, do que possa ter
de vida pela frente. Creio que toda relação com o passado é o que tenhamos de mais afiado para enfrentar o que se enxerga pela frente.
Gostaria de seguir falando desse lugar
íntimo em mim, mas que infelizmente sempre foi abandonado pelo
poder público: o Pronto Socorro Municipal
da 14 de março, hoje conhecido com outro nome - que não o mesmo da minha época.
Guardamos tantos lugares profundos, que não dá para visitá-los toda hora, sob
pena de uma parede da tristura desabar sobre minhas costelas. O HPSM é um desses.
Neste momento, se há uma voz teclando essas palavras, digo-lhes: não é a minha voz. É um passado doce e suave no pé da orelha que há muito caminha sobre palmilhas, silenciosamente, como uma espécie de esquizofrenia organizada, em forma de crise existencial. Em verdade, quando tento explicar o que estou sentindo, já brota certa nostalgia, e não tem ortografia que me segure... Nem gardenal.
Foi nesse lugar que comecei minha
vida de cirurgião de trincheira, como peregrino em tantos desafios. De lá detenho gratidão, de lá escrevi livro e fiz muitos amigos. Esse texto é
aquilo tudo que a gente não precisa esconder do outro. Onde há sentimentos que
fingimos não ter e não saborear. Este diálogo está atado no lado oculto de todos nós, sem
precisar expressar que EU fiz isso, ou que ali EU fiz aquilo. Deixemos a
bravataria para quando estivermos na porta do inferno querendo escapar do fogo,
coisa que nem Giordano Bruno conseguiu.
Adentrei àquele hospital sem sequer me pedirem documentos. Desde a portaria e por todo o caminho para o centro cirúrgico fui saudado por todos aqueles funcionários de outrora. Velhos amigos, agora grisalhos. O Marco Fumaça, um técnico de enfermagem das antigas, me parou e não desgrudou. Ainda exala o cheiro de cigarro de outrora. Falamos do passado institucional e de várias outras amenidades. Por conta disso, quando cheguei ao quirófano, a operação já havia findado. Só vi o dito dreno fora do tórax, exposto em praça pública para todos verem.
Eu
me lambuzei nos relembrançamentos submersos naquele passado de encantamento. Pena que o cansaço foi mais forte e tive que pedir escolta ao caminhar para o esconderijo do tempo.
Deixei-me levar pela vida com menos tormenta e mais aconchego para a minha dor
lombar, que ora me pega pela proa e me deixa manco.
Mas devo esquecer as tantas madrugadas roubadas de meu travesseiro, para que possa transformar esse passado em amenidades e um pouco de apreço pelo que fui.
O passado, já sabemos por escrevê-lo ou lê-lo. Mais parece ficção reconstruída com pequenos pedaços de realidade, ou ilhas móveis em mar de memória, a depender dos ventos da saudade que se deslocam e se reconfiguram.
Lembrar-se vagamente é dos alentos que podemos nos propor, em prece, pedindo aos céus que a parte submersa seja sempre a mais contundente e expressivamente maior.
Texto impulsionado pelas palavras de Corisco e Sabá de Abadia, do bando de Corisco.
segunda-feira, 1 de julho de 2024
As trincheiras espinhosas da cirurgia
If didn’t kill you, surgical training made you stronger
Paul Riggieri, cirurgião e escritor em:”Confessions of a
surgeon”
Coisas
das que mais gosto é flanar por livrarias - ou bookstores para os amantes de viagens internacionais. Tenho
predileção pela livraria da Travessa, em Botafogo, quando visito parentes no Rio de Janeiro. É difícil sair dali sem deixar uns dinheiros por
lá.
Há as
bookstores, e a minha turma do “Urubooks
do Ver-O-Peso” bem sabe disso. Numa dessa viagens, no aeroporto de Quebec cujo
nome não vou lembrar agora - mas também não vou consultar o Google-, deparei-me
com o Medicine Walk, de Richard
Wagamese, escritor canadense. Era um quiosque comum. Acheguei-me pelo título, mas
comprei após biopsias retinográficas de algumas páginas - como sempre faço. Ademais,
gosto de autores desconhecidos. Nesta
ida, estava aventurando-me pelo Institut Universitaire De Cardiologie Et
De Pneumologie - Québec.
Por circunstâncias
outras, voltei a ler o bendito “Medicine Walk” (sem tradução para o português) recentemente e me vi num
fragmento que bem descreve as trincheiras de cirurgião.
No romance o jovem Franklin Starlight, 16 anos, sai em busca de seu
pai, perdido na floresta. Caminha montado num cavalo, por trilhas
estreitas. Numa delas depara-se com um urso. Percebe ameaça a uns oito passos. Para e fica no dilema entre voltar
para casa ou enfrentar a fera e tentar salvar o pai. Foi quando o animal rosnou forte à sua frente, obstruindo
toda a trilha. Ele manteve a posição, apesar de estar tenso. O cavalo, por sua vez, tremia. Resolveu lentamente se
achegar, a ponto de começar a sentir o pixé do urso. A primeira coisa que pensou foi
que suas costelas seriam esmisgalhadas e seu sonho de
achar seu pai ficaria ali. Manteve-se teso. O urso segurou o olhar e elevou o
focinho para farejar. O coração do garoto batia mais forte; ameaçava
sair pela boca. Entrou em outro plano e avançou pouco mais. De repente o garoto
exalou o ar pela boca, colocando pra fora o máximo de volume residual pulmonar,
ao mesmo tempo que levantou os braços. O urso “quebrou”. Virou-se e saiu andando lentamente para o interior da
floresta. O menino viu o caminho livre e seguiu mais aliviado. Olhou para trás
mais uma vez, de soslaio, mas com receio.
Continuou, mas ainda com a sensação de ameaça. O cavalo
permanecia assustado e aparentava estafa. O cheiro amargo do urso permaneceu em
suas narinas por toda a caminhada. Ao fim, ele encontra seu
pai desnorteado e saem dali. A primeira coisa que fizeram foi ir até um centro religioso
para agadecer.
A versão da literatura realista de Waganese realça a filigrana
do gesto, principalmente quando há adversidades. A palavra, por
vezes vira razão, por vezes salvação; vira
agressão, por vezes fracasso. O gesto não. Não há
dúvida que, se o jovem, em apuros, estivesse com uma bereta, ou mesmo um
estilingue, lançaria mão da arma para aniquilar aquela ameaça e salvar
seu pai. Não tendo arma e não podendo se comunicar
com palavras para explicar o seu objetivo, ele lançou mão de
gestos ameaçadores. Só assim viu seu caminho aberto.
Não
há dúvida que o jovem Franklin Starlight foi sobre-humano e já carregava luz e
estrela no próprio nome. Se o comum seria recuar, ele usou a força dos pulmões
para mostrar sua grandeza, mesmo sabendo dos riscos de expor suas costelas e,
por conseguinte, a respiração parar.
Cirurgiões
de trincheira são sobre-humanos? Têm luz e estrela no nome? Nada disso. Apenas aparentem super-homens, a despeito do ofício. Têm seus dias
que precisam decidir mais fora do que dentro do campo cirúrgico. Há dias em que precisam
explicar a uma família que o câncer está disseminado e não tem como erradicar a
doença com as mãos da cirurgia. Por outro lado, existem as decisões acertadas. Todos os dias enfrentam seus inimigos, sejam moinhos de
ventos ou um ser humano vestido de urso.
segunda-feira, 6 de maio de 2024
Um Rio Grande do surrealismo
Dá vontade de beber toda aquela água do Guaíba e
vertê-la no atlântico, por meio dos ductos urinários. Espera-se que em breve,
novos tons modifiquem a paisagem sulista para que passemos a nos locomover,
dançar, girar e ir a grenais; e desanexar de nossas retinas a cor barrenta dos tetos das casas para anunciar o fim da catástrofe ambiental.
Mas o que está acontecendo, afinal? Seria o homem perdendo o senso, o tino contra o destino, e depois cair de boca no mundo implorando para que a vida lhes seja leve, sem Rivotril?
Se de dia os deuses dormem e não se prestam a
atender pedidos vãos, eles castigam os humanos por suas escolhas, em grandes partes infelizes. E é isso que garante a perenidade dos deuses que, a
pedido, voltam às madrugadas para bolinar com meu sono, enfeitando-os com as
flores do amanhã que nunca chegarão.
Perseguido pela insônia, levanto-me e ponho-me a andar. A moldura da janela do apartamento é a mesma que enquadra o mundo que
meus olhos percorrem na madrugada insone. Olho para uma outra moldura, a Madona de Belini, e não consigo ver sorriso, tampouco euforia. Não ouço o barulho da chuva das ruas de Porto Alegre, alhures, mas se afoga em mim um mundo silencioso e soturno, salpicando água salgada, que escorre pelo canto do olho.
Ao redor, nossos prédios guardam pessoas que dormem, e muito me agradaria se, de uma janela qualquer surgisse o Esteves - aquele que Fernando Pessoa diz ser sem metafísica - para me acenar .
Será que Esteves me explicaria, por exemplo, como os Neardenthais
sumiram da terra? Yuval Harari pediria voz: viveram há cerca de 400 mil anos e extinguiram-se há 28 mil anos. As razões
para a extinção ainda são debatidas. As teorias mais aceitas apontam para
fatores demográficos: pequeno tamanho populacional, endocruzamentos, mudanças climáticas, doenças e combinação.
Mudanças climáticas? De novo o tema? Será que tais mudanças climáticas realmente abduziram nossos primos Neardenthais - em minha docta ignorantia? - Por que os Sapiens resistiram? O Sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, portanto, Neardenthais e Sapiens se cruzaram em algum lugar dos confins de Copacabana, naquele sábado que deveria para ser enlutado.
Quando minha vista não deu mais conta da paisagem, entra em cena a imaginação, pra enfeitar as horas do sono que não chegam. Olho para a noite estrelada de Van Gogh e um mundo novo e inebriante se descortina à minha frente em apresentações deslumbrantes, com astros vindos dos confins da eternidade em exibição celestial, exuberante, de sustar o fôlego.
Quando o domingo lançou os primeiros raios, as copas das mangueiras exibiram seus frutos em amarelices variadas. Ao nível das ruas o sossego brincava de esconde-esconde numa agitação invisível aos que não tinham olhos de ver. Esse conjunto de euforia me faz sentir paz. Melhor não ligar a TV. É hora de abandonar tudo e tentar dormir.
Ao deitar, uma motocicleta impiedosa passa. De sua
descarga saem imprecações monstruosas que desfazem toda a magia que envolvia
aquele momento da mais gloriosa comunhão entre mim e a natureza. Seria a tal
motocicleta responsável por tantos desastres naturais? Tão rapidamente foi a
cena, que não esbocei sequer reação à agressão e nem desejei que o infeliz fosse
contaminado com a peste negra ou pelo SARS-Cov2, a carcomer seus
pulmões a cada estada nos círculos do inferno descrito por Dante.
Não desças os
degraus do sonho
Para não
despertar os monstros.
Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não
subas, fica.
O mistério está
é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo…
Roger Normando é cirurgião torácico titulado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica e professor da Universidade Federal do Pará.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
A relativa idade de Tulu
Aos
28 anos a mãe colocou-o no colo, pegou o barco no Camará. Partiu. atravessou a perigosa baia do Marajó, até aportar no Porto do Sal, em Belém. Indagado sobre o endereço, repetiu várias vezes para
a recepcionista do SUS: Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila
Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.
Tulu
chegava para trocar a válvula do coração e se livrar daquele cansaço que exauria o corpo. A operação correu bem: válvula nova, coração novo.
Mas houve um sangramento inesperado horas após, com direito a parada cardíaca e
reanimação. Todos empenhados. Tulu tornou, mas o lado esquerdo estava totalmente
inundado por sangue coagulado, exaltava a radiografia e o recipiente que se conectava ao tórax. Restava-lhe o lado
direito para respirar. Foi levado para a sala de cirurgia para retirar coágulos e recuperar o
pulmão debilitado. Em dois dias o tapuio já era outro.
Prestes a ter alta do CTI ocorreu novo episódio de sangramento, agora em menor tormenta. Tudo por conta dos remédios para manter a válvula íntegra. Ele suportou mais essa abordagem para retirar os novos coágulos. Com o passar dos dias a cútis engelhara, o semblante caíra e a voz perdera enxame. Ele era muito diferente da paisagem humana geral naquela unidade. Envelhecera cem anos em dois meses de solidão.
Ensaiou os primeiros passos junto com a alta hospitalar. Agradeceu às enfermeiras, mas era hora de voltar para
Depois de desembarcar no porto Camará, da gigantesca ilha do Marajó, havia ainda a longa via, floresta adentro. Assistia pela janela da estrada os espaçados casebres de um lado e de outro, com cerca de varas protegendo terrenos longos e gordas mangueiras esgalhadas deixando sombras ao chão. O caminho de barro trepidava o peito de Tulu, amortecido por um travesseiro de espuma, que abraçava contra o peito, como se protegesse aquelas válvulas.
No dia seguinte partiu para terceira perna da viagem, montado em carro de roda-de-madeira tracionado por búfalo, que apanhou de carona na vila Bacuri. Cobria-lhe a cabeça um chapeu com abas avançadas para lhe proteger dos raios solares obliquantes do início da manhã. Enfiou-se por veredas, depois de uma estreita ponte cheia de remendos sobre um braço de rio. De imediato identificou sua casa pelo pé de jambo e, logo em baixo, um banquinho encostado à cerca para prosear. Demorou quase dois dias até chegar ao lugar.
Ao abrir a porta já era seu aniversário. Familiares e a vizinhança prepararam almoço surpresa. Havia suco de bacuri, muruci e paçocas. No centro um bolo de macaxeira para sobremesa. Sobre o bolo havia velas soltando faíscas na hora do parabéns. Ali relampejou a sua idade: 129.
Espaço e tempo, na verdade, são faces da mesma jornada. E o jeito que o tempo passa para o mundo pode ser diferente do jeito de passar para Tulu e o ramal Bom Jesus Primeiro.
sábado, 27 de janeiro de 2024
E o que Darwin tem a ver com pulmões e transplantes?
Na natureza não há velhice, não há decrepitude, há apenas plenitude ou morte
Juan Luis
Arsuaga, paleontólogo espanhol.
Mestre Quixote, um compositor de ritmos de carimbó, nativo de Benquerença, tinha uma respeitada história de apanhador de caranguejo. Ganhou a alcunha de Quixote por apresentar uma mancha vinhosa no pescoço que se estendia para o lado esquerdo da face -defeito de nascença -. Quem lhe codinomeou foi Corisco, parceiro letrista, para homenagear o engenhoso personagem de Cervantes.
Mestre Quixote tinha passado uma noite amaldiçoada e quase deita no caixote: viu a morte visitar seus pulmões. Sem gostar de médicos, decidiu procurar um por imposição de sua Dulcineia e de um amigo feirante.
Antes de alcançar o bico da ladeira, Mestre Quixote, que
tinha o peito magro, em formato de barril, parou ofegante, procurando inflar o fôlego
com o vento que descia do rio Caeté, ao ritmo da maré. A cada dez passos voltava
a sentir que não podia respirar. Parava. Viu que a respiração ficava encalacrada a cada
escalada e, como maneira de chegar ao destino, permaneceu imóvel com as mãos na
cintura, sobrancelhas travadas, fisionomia tensa, até que o ar, aos poucos,
devagarinho, tornou a passar pelas narinas.
Passada a ladeira, já no meio da praça, quase defronte à igreja, voltou a parar, pelo mesmo motivo. Passou o braço pelo pescoço da esposa e encostou-se a cabeça no ombro dela. Melhorada a respiração, aproveitou e esticou o olhar pelo entorno. Havia, entre as casas baixas em torno da Praça, a meia-morada de beiral saliente, doutor Labareda, especialista geral em falta de fôlego. Havia reinaugurado o seu consultório depois de uma temporada na capital e no estrangeiro.
- É uma-aquela de janela azul celeste, com uma placa junto à porta –
reconheceu. Chegou ao médico, içada por sua Dulcineia
apaixonada.
Na sala de espera refletia, à frente de "Cais de Sagração", ainda resfolegando ar. Tentou entender o livro, mas sua alfabetização e oxigenação não permitiram acabar a primeira página. Conseguiu apenas entender como regalo de um amigo assinado como Dom Elias de Pindaré.
Mestre Quixote estava naquele destino por ter passado
a noite anterior em claro, com a cabeça apoiada nos punhos da rede, pés roçando
a esteira de palha, no quarto iluminado pela chama da lamparina a queimar querose,
já que a luz elétrica acaba às dez. Em seguida sentiu o fôlego curto, numa
ânsia de sufocação. De cabeça levantada podia respirar melhor e a sensação
sufocante de arrocho, que por vezes o atormentava durante o sono agitado, foi
se espaçando, sem que o ar de todo lhe faltasse. Lembrou que havia iniciado uma
tosse desde alguns dias, que vinha acompanhando de forma sinistra e se agravara
na noite anterior.
- “Vá se consultar com o doutor amanhã, homem teimoso” — aconselhou-lhe a esposa, ao seu lado, numa noite que parecia não findar. Levantou-se para lhe trazer mais uma vez o chá de erva-cidreira e um gole d’água. Aquelas palavras tilintaram em seus ouvidos, conferindo lembranças de uma noite amaldiçoada. Havia de procurar um doutor, decerto.
- “Em dois tempos, o doutor dá um jeito nessa sua falta de ar. Aproveita e já pede logo uma chapa do peito, para ver se é só velhice ou se tem alguma mancha”, disse-lhe Dulcineia. E ele, levando à boca o teimoso porronca de suas incursões pelos manguezais, disse para a Dulcineia: - Se doutor desse jeito em doença, doutor não morria...
- "Deixa de ser teimoso. Doutor dá jeito em doença, sim; só não dá jeito pra morte".
Quando o dia amanheceu, mergulhou no passado e reviu seus conceitos. Durante suas incursões pelos manguezais
do Caeté, fumava seus porroncas para soltar o fumacê para afugentar mosquitos e
garantir seu apurado. Celecindo, o feirante que revendia sua produção, já havia lhe alertado que aquilo queimaria seus
pulmões e um dia a conta chegaria, sem direito a gorjeta.
Decidiu que no dia seguinte procuraria um doutor de respiração.
Em “A morte contada por um Sapiens a um Neandertal”
revela discussão sobre envelhecimento e morte pelos rastros da paleontologia
moderna, assuntada pelas descobertas da biologia molecular. O livro desvela o
neodarwinismo: “a natureza não envelhece". Ou seja, quem envelhece é o
homem e seus animais de estimação. "Há espécies que duram mais tempo
porque são mais fortes e são menos devoradas. Um tubarão vive mais que um polvo
porque não é comido. Há seleção natural, acidentes e inimigos. Um acidente é
uma tempestade ou um inverno muito frio; um predador é um inimigo". Essa é
a clássica lição darwinista, revela José Arsuaga, no livro acima citado.
Por esse ângulo todo médico seria neodarwinista,
particularmente os geriatras e os que se dedicam à longevidade, assim como cientistas
e veterinários. As chamadas doenças crônicas, próprias dos velhos, seria o
melhor exemplo para explicitar essa fronteira do pensamento evolucionista. Para o neodarwinismo a variabilidade genética atua sobre a seleção natural - campo minado para discussão com geneticistas. Conceitos como os de mutação e
recombinação gênica foram somados à clássica teoria da evolução de Darwin, com
o objetivo de ratificar e embelezar suas ideias, mesmo não tendo ele explicado
como a variabilidade surge nos organismos.
Por essa brecha é que emerge o neodarwinismo, que
certamente explica não só por que o tabagismo danificou a elasticidade pulmonar
de Mestre Quixote, capaz de alterar sua longevidade, mas também como os estudos
do britânico-brasileiro Peter Medawar, ganhador do Nobel de Medicina, ao pesquisar a rejeição de
enxertos e a descoberta da tolerância imunológica adquirida, foram fundamentais
para a prática de transplantes de tecidos e órgãos, e assim, prolongar a vida.
Quando Mestre Quixote faleceu, o mesmo Corisco que o codinominou, deixou em sua lápide um poema. Sabá de Abadia, sambista que viera conhecer Benquerença e visitar a praia de Ajuruteua, soube da história de Quixote, por meio de Corisco, numa roda de samba. Conheceu o poema e juntos compuseram um samba que sofreu mutação pelos nativos, e se tornou hino na marujada. Ficou eternizado na festa de São Benedito:
Morro devagar
Passo a passo
Sem importunar
Quem seja meu par
Não peço perdão
Se meu pulmão
Sem combinação
Parar de arfar
Parar pra dizer: "Pra mim bastou. Quem
ficou, ficou"
E a sobra é história
É pura memória
Sim, foi uma delícia o quanto durou...
sexta-feira, 12 de janeiro de 2024
A metalinguística pelos jardins da oncologia
A clever turn of phrase
From your vocabulary
Ingenuine desire
To know a little more
Leo
Sidran, na
música: The art of conversation
- Que espécie de tratamento eu vou receber?
- Injeções... Eu já disse antes.
- Mas... onde? No tumor mesmo?
- Não... via endovenosa.
- E... quantas...?
-Três vezes por semana.
- E uma... operação... seria possível ?
(“Por trás da pergunta estava um medo indisfarçável de se ver estendido numa mesa de operação. Como a maioria dos pacientes, ele [o personagem Pavel Nicolayevich] também preferia receber qualquer tipo de remédio por mais longo que fosse”).
O diálogo acima ocorre no jardim do
hospital-cenário em “Pavilhão dos cancerosos”, do escritor russo Alexandre
Soljenitze, Nobel de literatura. Revela os primórdios da quimioterapia na
esperança de frear o câncer e o caminho para a sala de operações.
O tecido social da obra é o Uzbequistão dos anos
1930 e 40, quando o mundo via nos tumores malignos um único destino: o
purgatório. A radioterapia, outra modalidade de esperança, ainda ensaiava os
primeiros raios no laboratório do casal Curie.
Eis ao hoje de ontem a beligerante jornada humana
em busca da cura do câncer.
A quimioterapia inicialmente foi utilizada como
complemento após ressecção cirúrgica de tumores. Por conta, passou a se chamar
adjuvante. Em seguida houve recombinação e se chegou à neoadjuvância (o
prefixo neo significa novo), forma de tratamento que precede a
operação exerética do tumor. O rearranjo obteve melhoras promissoras.
Não ficamos por aí...
Enquanto nós cirurgiões estivemos sentados no banco
de jardim, contemplando os ganhos da cirurgia minimamente invasiva, a
imunoterapia e outros grupos de fármacos começavam a ganhar raízes. Os
resultados promissores dos primeiros estudos com os programas Adaura e Pacific,
empregando novas drogas, enriqueceram o solo dessa nova oncologia, apesar do
alto custo.
Eis que a nova combinação entre imunoterápicos e
quimioterápicos ganha outra nova recombinação: o tratamento perioperatório. O novo morfema (modificação de uma palavra para
se transformar em outra) chega para representar esse salto clínico.
A trimodalidade (cirurgia, radioterapia e
quimioterapia), agora recheada pela imunoterapia, chega para reeditar o
tratamento do câncer pulmonar, e traz consigo, além da revitalização
linguística, a esperança de Pavel, o personagem. Basta acessar aos recentes
artigos Perioperative Pembrolizumab for
Early-Stage Non-Small-Cell Lung Cancer dos
investigadores Checkmate 671, assim como Perioperative
Durvalumab for Resectable Non–Small-Cell Lung Cancer dos investigadores AEGEAN, para comprovar o
dito. Aliás, AEGEAN poderia ser homenagem ao mar de Egeu, um apêndice do mar
Mediterrâneo localizado entre a Turquia e Grécia, onde nasceu Galeno, um dos
idealizadores de nossa profissão.
De volta ao tema, o tratamento perioperatório é
iniciado logo após o diagnóstico histológico e mutacional, em pacientes
ressecáveis (CNPC) em estádio II
ou III. Faz-se quimio e imunoterapia; vem a
pausa para tratamento cirúrgico e, após poucas semanas, reinicia-se a
imunoterapia, de forma isolada. O resultado foi melhora no intervalo livre de
doença e resposta patológica completa. Ou seja, melhora de resultados em longo
prazo.
Mas se um banco de jardim parece um artefato
completamente dispensável, contudo ele nos ajuda a reorganizar não só o
visível, mas também o modo de nos olharmos. À sua maneira, oferece-nos a
paisagem para a reconstrução de nosso cotidiano. Imagina, por exemplo, os
bancos de jardins da Provence, onde Van Gogh pintou a continuação da natureza,
salpicada de azul e amarelo.
Imagina, por exemplo, aquele banco de jardim, de Pavel,
no início do texto, que
sentiu queimar sua veia na insônia da
história, minuto a minuto, gota a gota. Reviveu-se a marca que hoje não se pode regredir. São ressignificações ganhando suspiros; são
palavras compostando-se no jardim da oncologia... e da expectativa da cura.
Razão, facho de luz que seduz a esperança.