sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Praia de Copacabana, fundos.


 Viajar pelo Brasil requer paciência... mas muuuuuuuuita paciência. Os aeroportos cada vez mais desplugados do cidadão, que sente na epiderme da alma as chicotadas da escravidão moderna. Sobre estradas, então, nem se fala...

Na última, o avião me apanhou em Belém e me despejou em Brasília. Sim, um despejo que me fez lembrar os jogos da quarta divisão do campeonato brasileiro, quando o maqueiro da cidade sede, com o resultado adverso, cata o jogador visitante contundido, rola-o na maca e, à beira do campo, despeja o coitado, tal como se fosse jogar lixo num terreno baldio.

O jovem Caio, por mais que tenha tentado defender a sua empresa aérea, tenta criar um gabinete de crise para solucionar um voo suspenso desde quando ainda avistávamos, da janela, o lago Paranoá. Quando chegamos ao guichê da empresa, o caos começava a se instalar. Um verdadeiro parangolé. Mais e mais pessoas se juntavam na tentativa de obter o mesmo destino: Rio de Janeiro cuja pista de pouso estava suspenso por motivos pluviométricos, segundo os assistentes da empresa (ou seria pela chuva de gols que o Botafogo deixou no endiabrado Penarol?) Isso já era quase oito da noite depois de um voo de mais de duas horas. Com exercícios de paciência, conseguiram nos colocar num voo para campinas, pela empresa vizinha, para o dia seguinte, e depois aterrissar no Santos Dumont. Seriam 18 horas de atraso. Dava para chegar em Dubai pela Emirates, ou Gurupá, ilha do Marajó, de barco, com direito a 12 paradas, a favor da maré.

Isso porque haviam colocado à disposição um voo de quase 24 horas de espera em Brasília. Talvez fosse a chance de conhecer o belo Paranoá, rés ao chão. 

Quando tudo esteve mais calmo fomos encaminhados a um hotel de alto nível, com voucher da empresa. Pavulagem: o hotel não tinha recebido nenhum comunicado. Mais uma decepção. Mais um gol contra. Naquela hora ou voltaríamos para o aeroporto, ou encararíamos aquele pernoite por mil reais. A romaria de sem-tetos a cada momento aumentava no balcão do hotel. Eram os mesmos rostos bufantes de antes. Cansado, tirei o escorpião do bolso. Apesar de caro, era melhor lugar para rezar, esperar o amanhecer e depois partir.                              Na memória ficou a história do motorista da van. Ele nos aferia que aquilo acontecia todos os dias em Brasília. Ou seja, a empresa sempre estava ali pronta para enganar os bestas e manter esticada a corda de caranguejo, em que um está preso ao outro pelo cordão da convivência conivente, independente da empresa.

Então embarcamos às nove e chegamos a Vira-copos com a sensação de vira-lata de invasão, sem direito a um cantinho para descansar os ossos -já com algum grau de osteoporose - e sem sequer um cafezinho para melhorar humor e o teor sanguíneo de serotonina.

Como todo caos é pedagógico, vivemos uma experiência e um bom bate-papo com dois cariocas dos tempos do Brizola, que estavam conosco desde a fila do guichê. Libério e Robertinho Careca, engenheiro e geólogo, respectivamente. Profundos conhecedores dos cafundós da Amazônia, eles haviam embarcados em Laranjal do Jari, divisa do Amapá com Pará. Mantinham acesos o sotaque e humor carioca, além de efusivas histórias.

Entre horas e horas de conversas, do guichê ao pouso  em Santos Dumont, Rio de Janeiro, várias relatos foram perfilados, mas o de Copacabana, foi a mais sensacional. É a história de um prédio que fica na beira da praia, mas o apartamento adquirido fica de costas para o mar. Ele fez o investimento para agradar um amigo português, também geólogo, que havia conhecido em Maputo, capital de Moçambique, após ter saído de um coma de cinco dias por malária. Roberto lembrou-me o personagem Malaquias, de "Cem anos de Solidão", de Garcia Marques, em que sobreviveu a várias moléstias. Também lembra o esquisito Rasputin.

Mas essa história vai ficar para outro escrito. Não tenho tutano para escrever mais que 3 mil caracteres e transformar esse texto numa passagem aérea para concorrer ao prêmio Jabuti. Nessa situação eu até aguentaria dar duas voltas ao globo, mesmo nas asas da Gol.

domingo, 6 de outubro de 2024

Made in Acre



       Há os lugares que chamam Macondo, há os que nomeiam Pasárgada... Há os que se apaixonam por Benquerença. Vou ficar com Feijó, esse pedaço de minha viagem à infância no Acre. Que se danem Gabriel Garcia Marques, Manuel Bandeira e Corisco, respectivamente.
       Vou nesse voo pelas asas do Toninho, com quem hibridizo alguns alelos mendelianos. Toninho passou 50 anos longe do Acre, terra onde ele foi prosperado. Nesse meio século eu estive ao lado dele e vi que de lá ele nunca se desligou. Todo o azougue de vida que ele criou com o passado mora ali naquele cafundó do mundo, pedaço rico da Amazônia de Chico Mendes e minha também.  
         Então numa leitura perdida, eu me achara voltando ao Acre 50 anos depois, na vez do Toninho, que nosso pai chamava de Tilico.
          Lembro ainda de nossa partida. Só cabia viagem pelo ar. Era num monomotor Cessna. Agora já há um novo caminho, mas por estrada talhada pelo abandono. No céu há sinais de queimadas. É a Amazônia em chamas, visto do chão e da janela do avião. Não era esse o teto de outrora. São laivos de uma destruição que não poderíamos ignorar.
         Pela estrada, eu havia esquecido muitas outras coisas de uma vida que ia se tornando aterradoramente longa. Para mim, certas desmemórias funcionam como uma estratégia de sobrevivência: era preciso soltar lastro para se manter flutuando na languidez das lembranças de nossa infância sem encalhar nos rancores, nas contagens de ilusões truncadas, até partir dali pra cidade grande, na década de setenta.                                         Até um sujeito como Toninho, em que tomo emprestado suas retinas, obstinado recordador, quase um memorioso capaz de se lembrar de tudo, devia permitir à sua consciência certas varreduras, limpezas anímicas e psicologicamente higiênicas para tentar impedir que a carga das lembranças o enterrasse o lodo das aversões e frustrações, como a de seu irmão mais novo, quase morre num atropelamento irresponsável.                           Sobretudo, para não pensar que teria sido possível outra vida, Toninho largou de lado essa amargura e chegou a Feijó 50 anos depois. Levou-me em seu bolso. Mas aquela confluência específica, às margens do rio Envira, já quase na beirada com o Peru, é quase uma revelação mística. Os seringais, os Kaxinawás. É óbvio que se lembrava - tinha de se lembrar-, ele até consegue reproduzir em cores e com precisão de detalhes, ocasionalmente ornada com as rotas, brincadeiras de futebol, bola de gude, pira-esconde e trinta-e-um-alerta na hora que a iluminação dos postes findava.
Hoje retomamos a esse passado apaziguado pelo sentimento de infância; pelo reencontro com esse passado de fantasias, adormecido dentro do travesseiro antes de dormir.
        Se em Macondo existe um rio de águas diáfanas, se em Pasárgada sou amigo do rei, e se em Benquerença tem o Rex Bar, em Feijó tem o Orleylson e o Escurinho, outro elo com essa querência de repassar a limpo o que ficou tatuado nessas relembranças trincadas no meu cérebro, mas uniformes no do Toninho.
      Esse pedaço de vagomundo não se evapora no simples ribombar do passado autóctone. Ele fica vivo como afresco que se expressa na parede viva que acarpeta nossa pele. Não há queimada que apague. 
       É que: se o tempo nos desse a chance de,  na barra da saia de nossa mãe, sair para pescar de linha e anzol, essa gota viva de lembranças que escorrem pelo rosto, que nos isola de um tempo cujas densidade e matizes permanecem acesas, nós reconstruiríamos apenas com a luz de poronga toda essa vida novamente.



sábado, 21 de setembro de 2024

É tarde, escrevo: o porão convalesce de um luto

Para quê a gente escreve, senão para juntar nossos pedacinhos

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em: “O livro dos abraços”

 

Se o conceito de acolhimento dorme no fundo do Caldas Aulete, seja como sinônimo de refúgio ou de guarida, ele acorda nos braços de dona Lourdinha.

Lourdinha e o Chavico moravam numa casa enorme na Gentil Bittencourt, e nela havia um porão, onde dormiam Luiz Pedro, o mais velho e estudante de engenharia, e o Luiz Gonzaga, sobrinho de d. Lurdinha. Assim como eu, Gonzaga migrou do interior, em busca de estudos. Éramos do mesmo colégio. Nossa amizade foi condecorada com futebol e quando fui convidado pra estudar naquele porão. No primeiro semestre eu passava por lá somente às vésperas de provas. No segundo semestre praticamente passei a morar lá, pois nossas notas haviam melhorado e começávamos a acreditar que aquela parceria daria passaporte para a universidade. Em que pese grande disputa por vaga e nossas fragilidades inerente ao ensino no interior, acabamos sendo aprovados, com alguma pitada de destaque.  

Muitas lembranças ficaram daquele porão. Gonzaga seguiu no curso de farmácia e depois voltou para Balsas, seu interior do Maranhão. Eu segui para o Rio de Janeiro. Conheci uma carioca de laranjeiras e por lá me casei, logo que acabei o período de residência médica. Nunca mais encontrei Gonzaga – ou Silva Neto, como era conhecido no seio familiar. Também nunca mais voltei àquele porão. Ficou um agradecimento sem tamanho e uma dívida enorme de gratidão àquela família. Ali vivi um estado de espírito osmoticamente contraído pela servidão que me ofereciam.

Lembro bem a hora do café. Sentávamos em uma mesa grande em que “seu” Chaves ficava na cabeceira, de banho tomado, cheirando a patchouli, cujas costas se voltavam para os janelões amplamente abertos, por onde vazava o sol. Havia plantas naturais entre algumas samambaias. Já no carro, acho eu uma Caravan bege - ou marrom-, Chavico nos deixava na escola e seguia para o trabalho de bancário. Dona Lourdinha segurava a tarefa de casa, como tradicionalmente ocorria com as famílias de outrora.

Uma fotografia datada de 1982 e a outra recente de 2024 fizeram-me revisitar esse passado adocicado, que nunca quis me abandonar. Na de 82 estavam eu, Gonzaga, Jaques e uma moça de nossa idade, cujo nome não conseguirei lembrar. Estávamos abraçados, fazendo pose para a máquina. A imagem carregava o sol de um sábado de fevereiro. Era de manhã e acabara de sair, pelas ondas do rádio, o listão do vestibular. A comemoração na calçada foi regada a Pinduca com maizena e ovos crus nas cabeças raspadas. Eu havia levado uma topada minutos antes e esfolado um dos dedos. A fotografia ainda mostrava o sangue escorrendo pela calçada. Carrego a unha deformada até hoje. Mas se no lado de fora havia sangue e dor, no de dentro do casarão e do meu coração, d. Lourdinha e Chavico estavam eufóricos.

Já a fotografia de 2024 tem autoria de Nayara, neta de d. Lourdinha. Ela nos flagrou no leito do hospital conversando sobre a sua enfermidade e as perspectivas após cirurgia (paliativa). Já eram os primeiros sinais de desconforto respiratório. Mesmo gravemente enferma ela soltou um sorriso de passividade que surpreendeu a autora da fotografia: “rindo só pro dr. Roger”. Os filhos e netos entenderam, com a mesma sabedoria de seus pais, que a finitude, ao ganhar braços, pernas e asas, dá-nos a mão gelada tão somente para pedir passagem.

D. Lourdinha seguiu para companhia de seu esposo Chaves, que já mora há algum tempo no lado de lá. Ele foi funcionário do Banco da Amazônia. Lá conheceu meu pai, até findar nesse relato. Ele considerou a possibilidade de me ajudar nessa jornada pela terra. Tirei proveito e me encaminhei para esse destino: eu e Gonzaga - aliás, o Silva Neto.

        Se tive a frustração de meu estetoscópio não conseguir escutar o murmúrio saudável da respiração de d. Lurdinha, salvaram-me os abraços dos filhos, que junto àquele destino, choramos as doces lágrimas da singeleza que a vida traça e nos encordoa.

sábado, 27 de julho de 2024

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o esterno

             É sinal de sabedoria apreciar pequenas e inesperadas narrativas, mesmo que possa ser asneira científica. São interpretações benéficas e ofuscantes da arte de viver que derivam de outras épocas e de homens devotados à metafísica e à arte. Mangar disso é jogar pedra na Geni.

Há alguns dias um amigo anestesiologista parou-me no corredor para meia prosa, assaz inebriante, que lhe ocorreu após breve anamnese com seu paciente, na ante-sala de operação para retirada da vesícula biliar. Percebeu que o vovô de 82 anos tinha o peito escavado – conhecido como “peito de sapateiro”. Ele, fortuitamente, interrogou o paciente sobre aquela deformidade. Com intenção de dizer que existe solução cirúrgica moderna para o caso, o paciente respondeu na bucha: - Não faça isso dotô. Essa deformidade já me salvou de perrengues.

Segundo o vovô, certa vez sofrera um acidente de carro e foi levado para o pronto socorro. Meio desacordado e sob efeito do trauma psicológico, o jovem médico, desavisado, viu aquele defeito e achou que a concavidade seria por conta do acidente. Ensaiou chamar o cirurgião, mas o velho amigo de farra cortou e aparou: defeito de infância! "Por um triz eu não fui pra sala de cirurgia".

- Tem mais uma, dotô! Fui nadador dos bons, e essa deformidade dava-me maior tempo de apneia ao mergulhar. Sempre derrotava os concorrentes nesse quesito.

Para ele, o sucesso era por conta daquela afundamento. Leva a vida assim desde então. Para ele nunca foi doença. Só para os cirurgiões. Ou será que o amigo confundiu-se com Peito de Pombo (Pectus Carinado/Carinatum)

Fico a imaginar as histórias que cada médico carrega em seu jaleco. São vivências belas, brilhantes, arrebatadoras. Talvez até mesmo beatificantes. Cabe a cada um, detentor do conhecimento, apenas ter sobriedade para ouvir sem retrucar. Se outrora o espírito não era requerido por um estrito modo de pensar dentro da caixa científica, então a atividade consistia em imaginar símbolos e formas. Há de se perdoar. Não cabe virilidade. 

        Esse relato me espantou pelo fato de, na prática clínica, ocorrer exatamente o inverso. Pais chegam atordoados ao consultório com aquela imagem sinistra de seu filho. A sensação é que aquele esterno curvado para dentro possa espremer pulmão e coração. E não raras vezes o adolescente apresenta cansaços em que culpam a deformidade. 

Recentemente (2024), um estudo da University of Cincinnati revelou, com 274 adolescentes com Pectus Excavatum (peito escavado, peito de sapateiro) tiveram seus fôlegos avaliados. Observaram que os resultados em pouco mais de 20% demonstraram alguma pequena restrição na respiração, mas sem essa de melhorar o fôlego, conforme brandia nosso vovô.

O artigo já encanta no título: (F)utility of preoperative pulmonary function testing in pectus excavatum to assess severity [(F)utilidade dos testes...]

O que se tem feito, e somos adeptos, é esclarecer à família e tranquilizá-los da melhor forma possível, para que se sintam seguros em ser submetido a uma operação que menos parece questão visceral e mais um remodelamento anatômico.

O artigo é muito prático e carrega desde o título a proposta de todo pensamento científico, ou seja, desvendar dúvidas atrozes que se carrega no cotidiano acerca da uma deformidade que maltrata a cabeça dos pais e leva crianças e adolescentes a sofrerem bullying, vergonha e até mesmo depressão.

E o pensamento clínico fica no meio disso, procurando dar pirueta olímpica para decifrar os sentimentos adversários. Essa, aliás, não é uma questão fácil de resolver pelos algoritmos da Inteligência Artificial (IA), pois cada caso precisa ser interpretado de acordo com Inteligência Alheia (Também IA). Por isso devemos agradecer ao grupo de Cincinatti e a grupos brasileiros que sabiamente buscam tais esclarecimentos.

Mas devo confessar que já não me angustia tanto os enigmas em torno das fronteiras entre ficção e fatos científicos. Há médicos em que um dos ouvidos dá voz à ficção; já no ouvido oposto, acústico ao saber erudito, prefere silenciar e deixar que o outro lado não desapareça, pois ainda se precisa desses relatos para deixar a respiração da humanidade mais leve.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Mais que um caso clínico, o passado

Ao final dessa jornada

                     Onde posse vale um nada

Eu diga em contrapartida

Valeram as voltas da vida.

Corisco


"O paciente, em crise de loucura, tentou arrancar o dreno", retrata o cirurgião ao ver que seu paciente retirou o dreno de si, sem anestesia, e com requinte de crueldade. Foi autoflagelamento, diriam, mas por incrível que pareça, ele teve a consciência de não evadir. Relatos como esses não são raros em prontos-socorros.

Teria sido pesadelo? O pesadelo é um sonho desesperado, acordando suado no meio da noite. É quando o marinheiro escuta a tempestade em alto mar; ou barulho da pá do coveiro jogando terra virada para enterrar vítimas de uma pandemia. É o urso rosnando à sua frente numa estrada estreita e sem rota de  fuga. É o que faz chorar o coração. É a abstinência dos adictos.

Levado ao setor de radiografias, o cirurgião ficou surpreso ao ver a imagem de parte do objeto no interior do tórax, cujo dispositivo havia sido colocado na sala de emergência, com todo capricho, por incisão de cerca de 2cm. 

        Decidiu-se pela reintervenção sob anestesia geral. Então o tórax do paciente foi aberto com incisão de quase um palmo, para a retirada daquele corpo estranho, de formato tubular, pouco maior que 30cm. Nessas operações, o que mais maltrata o paciente é a colocação de um afastador, que em metade dos casos acaba fissurando as costelas. A dor pós-operatória é lancinante e pode durar muito tempo. Descobri pela enfermeira de 40 anos de casa, que aquele instrumental ainda era o mesmo desde quando ela chegou, quando ainda era estudante, eu.

           Convidado, decidi ir ao hospital para ver aquela situação inusitada em que o paciente entendia que ele mesmo poderia dar destino ao seu destino. Fui e fotografei, mas o que me faz vir aqui e relatar não foi o caso em si, mas o passado.

          Antes de mais nada, gostaria de pedir licença a esse passado. Até porque tenho muito mais de memória, do que possa ter de vida pela frente. Creio que toda relação com o passado é o que tenhamos de mais afiado para enfrentar o que se enxerga pela frente.

            Gostaria de seguir falando desse lugar íntimo em mim, mas que infelizmente sempre foi abandonado pelo poder público: o Pronto Socorro  Municipal da 14 de março, hoje conhecido com outro nome - que não o mesmo da minha época. Guardamos tantos lugares profundos, que não dá para visitá-los toda hora, sob pena de uma parede da tristura desabar sobre minhas costelas. O HPSM é um desses.

            Neste momento, se há uma voz teclando essas palavras, digo-lhes: não é a minha voz. É um passado doce e suave no pé da orelha que há muito caminha sobre palmilhas, silenciosamente, como uma espécie de esquizofrenia organizada, em forma de crise existencial. Em verdade, quando tento explicar o que estou sentindo, já brota certa nostalgia, e não tem ortografia que me segure... Nem gardenal.

           Foi nesse lugar que comecei minha vida de cirurgião de trincheira, como peregrino em tantos desafios. De lá detenho gratidão, de lá escrevi livro e fiz muitos amigos. Esse texto é aquilo tudo que a gente não precisa esconder do outro. Onde há sentimentos que fingimos não ter e não saborear. Este diálogo está atado no lado oculto de todos nós, sem precisar expressar que EU fiz isso, ou que ali EU fiz aquilo. Deixemos a bravataria para quando estivermos na porta do inferno querendo escapar do fogo, coisa que nem Giordano Bruno conseguiu.    

            Adentrei àquele hospital sem sequer me pedirem documentos. Desde a portaria e por todo o caminho para o centro cirúrgico fui saudado por todos aqueles funcionários de outrora. Velhos amigos, agora grisalhos. O Marco Fumaça, um técnico de enfermagem das antigas, me parou e não desgrudou. Ainda exala o cheiro de cigarro de outrora. Falamos do passado institucional e de várias outras amenidades. Por conta disso, quando cheguei ao quirófano, a operação já havia findado. Só vi o dito dreno fora do tórax, exposto em praça pública para todos verem.

            Eu me lambuzei nos relembrançamentos submersos naquele passado de encantamento. Pena que o cansaço foi mais forte e tive que pedir escolta ao caminhar para o esconderijo do tempo. Deixei-me levar pela vida com menos tormenta e mais aconchego para a minha dor lombar, que ora me pega pela proa e me deixa manco. 

    Mas devo esquecer as tantas madrugadas roubadas de meu travesseiro, para que possa transformar esse passado em amenidades e um pouco de apreço pelo que fui. 

     O passado, já sabemos por escrevê-lo ou lê-lo. Mais parece ficção reconstruída com pequenos pedaços de realidade, ou ilhas móveis em mar de memória, a depender dos ventos da saudade que se deslocam e se reconfiguram.

        Lembrar-se vagamente é dos alentos que podemos nos propor, em prece, pedindo aos céus que a parte submersa seja sempre a mais contundente e expressivamente maior.


Texto impulsionado pelas palavras de Corisco e Sabá de Abadia, do bando de Corisco.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

As trincheiras espinhosas da cirurgia


                                                                                If didn’t kill you, surgical training made you stronger

Paul Riggieri, cirurgião e escritor em:”Confessions of a surgeon”

 

Coisas das que mais gosto é flanar por livrarias - ou bookstores para os amantes de viagens internacionais. Tenho predileção pela livraria da Travessa, em Botafogo, quando visito parentes no Rio de Janeiro. É difícil sair dali sem deixar uns dinheiros por lá.

Há as bookstores, e a minha turma do “Urubooks do Ver-O-Peso” bem sabe disso. Numa dessa viagens, no aeroporto de Quebec cujo nome não vou lembrar agora - mas também não vou consultar o Google-, deparei-me com o Medicine Walk, de Richard Wagamese, escritor canadense. Era um quiosque comum. Acheguei-me pelo título, mas comprei após biopsias retinográficas de algumas páginas - como sempre faço. Ademais, gosto de autores desconhecidos. Nesta ida, estava aventurando-me pelo Institut Universitaire De Cardiologie Et De Pneumologie - Québec.

Por circunstâncias outras, voltei a ler o bendito “Medicine Walk” (sem tradução para o português) recentemente e me vi num fragmento que bem descreve as trincheiras de cirurgião.

No romance o jovem Franklin Starlight, 16 anos, sai em busca de seu pai, perdido na floresta. Caminha montado num cavalo, por trilhas estreitas. Numa delas depara-se com um urso. Percebe ameaça a uns oito passos.  Para e fica no dilema entre voltar para casa ou enfrentar a fera e tentar salvar o pai. Foi quando o animal rosnou forte à sua frente, obstruindo toda a trilha. Ele manteve a posição, apesar de estar tenso. O cavalo, por sua vez, tremia. Resolveu lentamente se achegar, a ponto de começar a sentir o pixé do urso. A primeira coisa que pensou foi que suas costelas seriam esmisgalhadas e seu sonho de achar seu pai ficaria ali. Manteve-se teso. O urso segurou o olhar e elevou o focinho para farejar. O coração do garoto batia mais forte; ameaçava sair pela boca. Entrou em outro plano e avançou pouco mais. De repente o garoto exalou o ar pela boca, colocando pra fora o máximo de volume residual pulmonar, ao mesmo tempo que levantou os braços. O urso quebrou. Virou-se e saiu andando lentamente para o interior da floresta. O menino viu o caminho livre e seguiu mais aliviado. Olhou para trás mais uma vez, de soslaio, mas com receio.

Continuou, mas ainda com a sensação de ameaça. O cavalo permanecia assustado e aparentava estafa. O cheiro amargo do urso permaneceu em suas narinas por toda a caminhada. Ao fim, ele encontra seu pai desnorteado e saem dali. A primeira coisa que fizeram foi ir até um centro religioso para agadecer.

A versão da literatura realista de Waganese realça a filigrana do gesto, principalmente quando há adversidades.  A palavra, por vezes vira razão, por vezes salvação; vira agressão, por vezes fracasso. O gesto não. Não há dúvida que, se o jovem, em apuros, estivesse com uma bereta, ou mesmo um estilingue, lançaria mão da arma para aniquilar aquela ameaça e salvar seu pai. Não tendo arma e não podendo se comunicar com palavras para explicar o seu objetivo, ele lançou mão de gestos ameaçadores. Só assim viu seu caminho aberto.

Não há dúvida que o jovem Franklin Starlight foi sobre-humano e já carregava luz e estrela no próprio nome. Se o comum seria recuar, ele usou a força dos pulmões para mostrar sua grandeza, mesmo sabendo dos riscos de expor suas costelas e, por conseguinte, a respiração parar.

Cirurgiões de trincheira são sobre-humanos? Têm luz e estrela no nome? Nada disso. Apenas aparentem super-homens, a despeito do ofício. Têm seus dias que precisam decidir mais fora do que dentro do campo cirúrgico. Há dias em que precisam explicar a uma família que o câncer está disseminado e não tem como erradicar a doença com as mãos da cirurgia. Por outro lado, existem as decisões acertadas. Todos os dias enfrentam seus inimigos, sejam moinhos de ventos ou um ser humano vestido de urso.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Um Rio Grande do surrealismo


         Passo as horas da insônia espremendo a madrugada desse sábado, pra dela tirar o melhor sumo, mas me vem os gaúchos. Viro de um lado para o outro da cama... e nada! Os Guaíba e Taquari não me saem da cabeça, assim como o rio Acre, na capital Rio Branco, o Itacaiaúnas, em Marabá - em seus passados recentes; assim como todas as enchentes que vivemos na Amazônia dos ribeirinhos.

Dá vontade de beber toda aquela água do Guaíba e vertê-la no atlântico, por meio dos ductos urinários. Espera-se que em breve, novos tons modifiquem a paisagem sulista para que passemos a nos locomover, dançar, girar e ir a grenais; e desanexar de nossas retinas a cor barrenta dos tetos das casas para anunciar o fim da catástrofe ambiental.

Mas o que está acontecendo, afinal? Seria o homem perdendo o senso, o tino contra o destino, e depois cair de boca no mundo implorando para que a vida lhes seja leve, sem Rivotril?

Se de dia os deuses dormem e não se prestam a atender pedidos vãos, eles castigam os humanos por suas escolhas, em grandes partes infelizes. E é isso que garante a perenidade dos deuses que, a pedido, voltam às madrugadas para bolinar com meu sono, enfeitando-os com as flores do amanhã que nunca chegarão.

Perseguido pela insônia, levanto-me e ponho-me a andar. A moldura da janela do apartamento é a mesma que enquadra o mundo que meus olhos percorrem na madrugada insone. Olho para uma outra moldura, a Madona de Belini, e não consigo ver sorriso, tampouco euforia. Não ouço o barulho da chuva das ruas de Porto Alegre, alhures, mas se afoga em mim um mundo silencioso e soturno, salpicando água salgada, que  escorre pelo canto do olho.

Ao redor, nossos prédios guardam pessoas que dormem, e muito me agradaria se, de uma janela qualquer surgisse o Esteves - aquele que Fernando Pessoa diz ser sem metafísica - para me acenar .

Será que Esteves me explicaria, por exemplo, como os Neardenthais sumiram da terra? Yuval Harari pediria voz: viveram há cerca de 400 mil anos e extinguiram-se há 28 mil anos. As razões para a extinção ainda são debatidas. As teorias mais aceitas apontam para fatores demográficos: pequeno tamanho populacional, endocruzamentos, mudanças climáticas, doenças e combinação.

Mudanças climáticas? De novo o tema? Será que tais mudanças climáticas realmente abduziram nossos primos Neardenthais - em minha docta ignorantia? - Por que os Sapiens resistiram? Sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, portanto, Neardenthais e Sapiens se cruzaram em algum lugar dos confins de Copacabana, naquele sábado que deveria para ser enlutado. 

Quando minha vista não deu mais conta da paisagem, entra em cena a imaginação, pra enfeitar as horas do sono que não chegam. Olho para a noite estrelada de Van Gogh e um mundo novo e inebriante se descortina à minha frente em apresentações deslumbrantes, com astros vindos dos confins da eternidade em exibição celestial, exuberante, de sustar o fôlego.

Quando o domingo lançou os primeiros raios, as copas das mangueiras exibiram seus frutos em amarelices variadas. Ao nível das ruas o sossego brincava de esconde-esconde numa agitação invisível aos que não tinham olhos de ver. Esse conjunto de euforia me faz sentir paz. Melhor não ligar a TV. É hora de abandonar tudo e tentar dormir.

Ao deitar, uma motocicleta impiedosa passa. De sua descarga saem imprecações monstruosas que desfazem toda a magia que envolvia aquele momento da mais gloriosa comunhão entre mim e a natureza. Seria a tal motocicleta responsável por tantos desastres naturais? Tão rapidamente foi a cena, que não esbocei sequer reação à agressão e nem desejei que o infeliz fosse contaminado com a peste negra ou pelo SARS-Cov2, a carcomer seus pulmões a cada estada nos círculos do inferno descrito por Dante.

    Tornei. Já era hora de ver o almoço. Mais imagens, agora via Reuters, mas é Mário Quintana quem me reconecta ao domingo minguado. 

Não desças os degraus do sonho

Para não despertar os monstros.

     Não subas aos sótãos – onde

Os deuses, por trás das suas máscaras, Ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica.

O mistério está é na tua vida!

E é um sonho louco este nosso mundo…


Roger Normando é cirurgião torácico titulado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica e professor da Universidade Federal do Pará.


quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A relativa idade de Tulu

   Um vagalume
Em soluços de luz
Escreve na noite:
"Na dúvida, viva".

Corisco


     Tulu nasceu cansado; cresceu cansado. Não teve chance de ter ofício. Até tentou capinar o quintal da casa onde nasceu, mas ficava sem fôlego. Vivia na barra da saia da mãe. Tulu se enxerga na Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

    Aos 28 anos a mãe colocou-o no colo, pegou o barco no Camará. Partiu. atravessou a perigosa baia do Marajó, até aportar no Porto do Sal, em Belém. Indagado sobre o endereço, repetiu várias vezes para a recepcionista do SUS: Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

    Tulu chegava para trocar a válvula do coração e se livrar daquele cansaço que exauria o corpo. A operação correu bem: válvula nova, coração novo. Mas houve um sangramento inesperado horas após, com direito a parada cardíaca e reanimação. Todos empenhados. Tulu tornou, mas o lado esquerdo estava totalmente inundado por sangue coagulado, exaltava a radiografia e o recipiente que se conectava ao tórax. Restava-lhe o lado direito para respirar. Foi levado para a sala de cirurgia para retirar coágulos e recuperar o pulmão debilitado. Em dois dias o tapuio já era outro.

    Prestes a ter alta do CTI ocorreu novo episódio de sangramento, agora em menor tormenta. Tudo por conta dos remédios para manter a válvula íntegra. Ele suportou mais essa abordagem para retirar os novos coágulos. Com o passar dos dias a cútis engelhara, o semblante caíra e a voz perdera enxame. Ele era muito diferente da paisagem humana geral naquela unidade. Envelhecera cem anos em dois meses de solidão. 

    Ensaiou os primeiros passos junto com a alta hospitalar. Agradeceu às enfermeiras, mas era hora de voltar para Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

   Depois de desembarcar no porto Camará, da gigantesca ilha do Marajó, havia ainda a longa via, floresta adentro. Assistia pela janela da estrada os espaçados casebres de um lado e de outro, com cerca de varas protegendo terrenos longos e gordas mangueiras esgalhadas deixando sombras ao chão. O caminho de barro trepidava o peito de Tulu, amortecido por um travesseiro de espuma, que abraçava contra o peito, como se protegesse aquelas válvulas. 

    No dia seguinte partiu para terceira perna da viagem, montado em carro de roda-de-madeira tracionado por búfalo, que apanhou de carona na vila Bacuri. Cobria-lhe a cabeça um chapeu com abas avançadas para lhe proteger dos raios solares obliquantes do início da manhã. Enfiou-se por veredas, depois de uma estreita ponte cheia de remendos sobre um braço de rio. De imediato identificou sua casa pelo pé de jambo e, logo em baixo, um banquinho encostado à cerca para prosear. Demorou quase dois dias até chegar ao lugar.

    Ao abrir a porta já era seu aniversário. Familiares e a vizinhança prepararam almoço surpresa. Havia suco de bacuri, muruci e paçocas. No centro um bolo de macaxeira para sobremesa. Sobre o bolo havia velas soltando faíscas na hora do parabéns. Ali relampejou a sua idade: 129.

    Espaço e tempo, na verdade, são faces da mesma jornada. E o jeito que o tempo passa para o mundo pode ser diferente do jeito de passar para Tulu e o ramal Bom Jesus Primeiro.

sábado, 27 de janeiro de 2024

E o que Darwin tem a ver com pulmões e transplantes?

Na natureza não há velhice, não há decrepitude, há apenas plenitude ou morte

Juan Luis Arsuaga, paleontólogo espanhol.

Mestre Quixote, um compositor de ritmos de carimbó, nativo de Benquerença, tinha uma respeitada história de apanhador de caranguejo. Ganhou a alcunha de Quixote por apresentar uma mancha vinhosa no pescoço que se estendia para o lado esquerdo da face -defeito de nascença -. Quem lhe codinomeou foi Corisco, parceiro letrista, para homenagear o engenhoso personagem de Cervantes.

Mestre Quixote tinha passado uma noite amaldiçoada e quase deita no caixote: viu a morte visitar seus pulmões. Sem gostar de médicos, decidiu procurar um por imposição de sua Dulcineia e de um amigo feirante.

Antes de alcançar o bico da ladeira, Mestre Quixote, que tinha o peito magro, em formato de barril, parou ofegante, procurando inflar o fôlego com o vento que descia do rio Caeté, ao ritmo da maré. A cada dez passos voltava a sentir que não podia respirar. Parava. Viu que a respiração ficava encalacrada a cada escalada e, como maneira de chegar ao destino, permaneceu imóvel com as mãos na cintura, sobrancelhas travadas, fisionomia tensa, até que o ar, aos poucos, devagarinho, tornou a passar pelas narinas.

Passada a ladeira, já no meio da praça, quase defronte à igreja, voltou a parar, pelo mesmo motivo. Passou o braço pelo pescoço da esposa e encostou-se a cabeça no ombro dela. Melhorada a respiração, aproveitou e esticou o olhar pelo entorno. Havia, entre as casas baixas em torno da Praça, a meia-morada de beiral saliente, doutor Labareda, especialista geral em falta de fôlego. Havia reinaugurado o seu consultório depois de uma temporada na capital e no estrangeiro.

- É uma-aquela de janela azul celeste, com uma placa junto à porta – reconheceu. Chegou ao médico, içada por sua Dulcineia apaixonada.

Na sala de espera refletia, à frente de "Cais de Sagração", ainda resfolegando ar. Tentou entender o livro, mas sua alfabetização e oxigenação não permitiram acabar a primeira página. Conseguiu apenas entender como regalo de um amigo assinado como Dom Elias de Pindaré.

Mestre Quixote estava naquele destino por ter passado a noite anterior em claro, com a cabeça apoiada nos punhos da rede, pés roçando a esteira de palha, no quarto iluminado pela chama da lamparina a queimar querose, já que a luz elétrica acaba às dez. Em seguida sentiu o fôlego curto, numa ânsia de sufocação. De cabeça levantada podia respirar melhor e a sensação sufocante de arrocho, que por vezes o atormentava durante o sono agitado, foi se espaçando, sem que o ar de todo lhe faltasse. Lembrou que havia iniciado uma tosse desde alguns dias, que vinha acompanhando de forma sinistra e se agravara na noite anterior.

    - “Vá se consultar com o doutor amanhã, homem teimoso” — aconselhou-lhe a esposa, ao seu lado, numa noite que parecia não findar. Levantou-se para lhe trazer mais uma vez o chá de erva-cidreira e um gole d’água. Aquelas palavras tilintaram em seus ouvidos, conferindo lembranças de uma noite amaldiçoada. Havia de procurar um doutor, decerto.

    - “Em dois tempos, o doutor dá um jeito nessa sua falta de ar. Aproveita e já pede logo uma chapa do peito, para ver se é só velhice ou se tem alguma mancha”, disse-lhe Dulcineia. E ele, levando à boca o teimoso porronca de suas incursões pelos manguezais, disse para a Dulcineia: - Se doutor desse jeito em doença, doutor não morria...

    - "Deixa de ser teimoso. Doutor dá jeito em doença, sim; só não dá jeito pra morte".

Quando o dia amanheceu, mergulhou no passado e reviu seus conceitos. Durante suas incursões pelos manguezais do Caeté, fumava seus porroncas para soltar o fumacê para afugentar mosquitos e garantir seu apurado. Celecindo, o feirante que revendia sua produção, já havia lhe alertado que aquilo queimaria seus pulmões e um dia a conta chegaria, sem direito a gorjeta.

Decidiu que no dia seguinte procuraria um doutor de respiração.

Em “A morte contada por um Sapiens a um Neandertal” revela discussão sobre envelhecimento e morte pelos rastros da paleontologia moderna, assuntada pelas descobertas da biologia molecular. O livro desvela o neodarwinismo: “a natureza não envelhece". Ou seja, quem envelhece é o homem e seus animais de estimação. "Há espécies que duram mais tempo porque são mais fortes e são menos devoradas. Um tubarão vive mais que um polvo porque não é comido. Há seleção natural, acidentes e inimigos. Um acidente é uma tempestade ou um inverno muito frio; um predador é um inimigo". Essa é a clássica lição darwinista, revela José Arsuaga, no livro acima citado.

Por esse ângulo todo médico seria neodarwinista, particularmente os geriatras e os que se dedicam à longevidade, assim como cientistas e veterinários. As chamadas doenças crônicas, próprias dos velhos, seria o melhor exemplo para explicitar essa fronteira do pensamento evolucionista. Para o neodarwinismo a variabilidade genética atua sobre a seleção natural - campo minado para discussão com geneticistas. Conceitos como os de mutação e recombinação gênica foram somados à clássica teoria da evolução de Darwin, com o objetivo de ratificar e embelezar suas ideias, mesmo não tendo ele explicado como a variabilidade surge nos organismos.

Por essa brecha é que emerge o neodarwinismo, que certamente explica não só por que o tabagismo danificou a elasticidade pulmonar de Mestre Quixote, capaz de alterar sua longevidade, mas também como os estudos do britânico-brasileiro Peter Medawar, ganhador do Nobel de Medicina, ao pesquisar a rejeição de enxertos e a descoberta da tolerância imunológica adquirida, foram fundamentais para a prática de transplantes de tecidos e órgãos, e assim, prolongar a vida.

Quando Mestre Quixote faleceu, o mesmo Corisco que o codinominou, deixou em sua lápide um poema. Sabá de Abadia, sambista que viera conhecer Benquerença e visitar a praia de Ajuruteua, soube da história de Quixote, por meio de Corisco, numa roda de samba. Conheceu o poema e juntos compuseram um samba que sofreu mutação pelos nativos, e se tornou hino na marujada. Ficou eternizado na festa de São Benedito:

Morro devagar

Passo a passo

Sem importunar

Quem seja meu par

Não peço perdão

Se meu pulmão

Sem combinação

Parar de arfar

Parar pra dizer: "Pra mim bastou. Quem ficou, ficou"

E a sobra é história

É pura memória

Sim, foi uma delícia o quanto durou...


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

A metalinguística pelos jardins da oncologia

 A clever turn of phrase

From your vocabulary
Ingenuine desire
To know a little more

Leo Sidran, na música: The art of conversation

 

- Que espécie de tratamento eu vou receber?

- Injeções... Eu já disse antes.

- Mas... onde? No tumor mesmo?

- Não... via endovenosa.

- E... quantas...?

-Três vezes por semana.

- E uma... operação... seria possível ?

(“Por trás da pergunta estava um medo indisfarçável de se ver estendido numa mesa de operação. Como a maioria dos pacientes, ele [o personagem Pavel Nicolayevich] também preferia receber qualquer tipo de remédio por mais longo que fosse”­).           

     O diálogo acima ocorre no jardim do hospital-cenário em “Pavilhão dos cancerosos”, do escritor russo Alexandre Soljenitze, Nobel de literatura. Revela os primórdios da quimioterapia na esperança de frear o câncer e o caminho para a sala de operações.

O tecido social da obra é o Uzbequistão dos anos 1930 e 40, quando o mundo via nos tumores malignos um único destino: o purgatório. A radioterapia, outra modalidade de esperança, ainda ensaiava os primeiros raios no laboratório do casal Curie.

Eis ao hoje de ontem a beligerante jornada humana em busca da cura do câncer. 

A quimioterapia inicialmente foi utilizada como complemento após ressecção cirúrgica de tumores. Por conta, passou a se chamar adjuvante. Em seguida houve recombinação e se chegou à neoadjuvância (o prefixo neo significa novo), forma de tratamento que precede a operação exerética do tumor. O rearranjo obteve melhoras promissoras.

Não ficamos por aí...

Enquanto nós cirurgiões estivemos sentados no banco de jardim, contemplando os ganhos da cirurgia minimamente invasiva, a imunoterapia e outros grupos de fármacos começavam a ganhar raízes. Os resultados promissores dos primeiros estudos com os programas Adaura e Pacific, empregando novas drogas, enriqueceram o solo dessa nova oncologia, apesar do alto custo.

Eis que a nova combinação entre imunoterápicos e quimioterápicos ganha outra nova recombinação: o tratamento perioperatório. O novo morfema (modificação de uma palavra para se transformar em outra) chega para representar esse salto clínico.

A trimodalidade (cirurgia, radioterapia e quimioterapia), agora recheada pela imunoterapia, chega para reeditar o tratamento do câncer pulmonar, e traz consigo, além da revitalização linguística, a esperança de Pavel, o personagem. Basta acessar aos recentes artigos Perioperative Pembrolizumab for Early-Stage Non-Small-Cell Lung Cancer dos investigadores Checkmate 671, assim como Perioperative Durvalumab for Resectable Non–Small-Cell Lung Cancer dos investigadores AEGEAN, para comprovar o dito. Aliás, AEGEAN poderia ser homenagem ao mar de Egeu, um apêndice do mar Mediterrâneo localizado entre a Turquia e Grécia, onde nasceu Galeno, um dos idealizadores de nossa profissão.

De volta ao tema, o tratamento perioperatório é iniciado logo após o diagnóstico histológico e mutacional, em pacientes ressecáveis (CNPC) em estádio II ou III. Faz-se quimio e imunoterapia; vem a pausa para tratamento cirúrgico e, após poucas semanas, reinicia-se a imunoterapia, de forma isolada. O resultado foi melhora no intervalo livre de doença e resposta patológica completa. Ou seja, melhora de resultados em longo prazo.

Mas se um banco de jardim parece um artefato completamente dispensável, contudo ele nos ajuda a reorganizar não só o visível, mas também o modo de nos olharmos. À sua maneira, oferece-nos a paisagem para a reconstrução de nosso cotidiano. Imagina, por exemplo, os bancos de jardins da Provence, onde Van Gogh pintou a continuação da natureza, salpicada de azul e amarelo. 

Imagina, por exemplo, aquele banco de jardim, de Pavel, no início do texto, que sentiu queimar sua veia na insônia da história, minuto a minuto, gota a gota. Reviveu-se a marca que hoje não se pode regredir. São ressignificações ganhando suspiros; são palavras compostando-se no jardim da oncologia... e da expectativa da cura.

Razão, facho de luz que seduz a esperança.