segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Bananeira, Baudelaire e Bandeira. Exatamente nesta ordem

        Aprende-se com Charles Baudelaire que a literatura é o espaço para estender o imaginário e possibilitar a crítica ao real. Por isso hoje me achego ao pé do ouvido deste flâneur para narrar a morte de Bananeira, um miserável que tomou destino embrulhado no famoso poema "Pneumotórax" de Manuel Bandeira.

      Bananeira era um sexagenário guardador de carros que vivia pelas imediações da Bráz de Aguiar. Tinha as barbas por fazer, a lembrar Hemingway; era maltrapilho, mas tinha alma boa e guardava humor nas idéias. Contam que carregava na cintura um objeto para espantar pivetes. Quando pediam para mostrar, sacava um pente. Segundo ele, funcionava bem.  

     Amigos lembram que Bananeira tinha apenas o defeito de torcer pelo Paysandu e, quando seu time vencia saia plantando bananeira pela calçada, daí o cognome. Mas o que ele não tinha de bom, mesmo-mesmo, eram os pulmões sapecados da fuligem do tabaco.  

      Certa manhã, ao despertar de sono no próprio casebre, tossiu e escarrou sangue. Sem conhecer Bandeira, “Manuel” Bananeira fez auto-diagnóstico de Tuberculose, sem ter a chance de dizer trinta e três.

      Compenetrado na própria semiologia resolveu procurar o SUS na doce ilusão de que apenas meia dúzia de pílulas resolveria tudo. Começou pelo posto de saúde, mas ali ficou sem sentir melhora. 
   O sangramento se avolumava a cada dia, a cada tosse. Desesperou-se. Resolveu lançar sua dor no peito dos amigos da Bráz.

   Rena, comerciante local em quem depositava profunda confiança, foi seu ouvido. Sensibilizara-se ao ver raios de sangue num lenço, cujo relato era turvado de lágrimas. Dentro de seu altruísmo procurou ajudar o camarada que, dada gentileza, costumava, cedo-cedo, acompanhá-la para abrir a porta de seu comércio e trazê-la de volta até o carro, quando o expediente encerrava. Para os pingos da tarde, sempre havia o guarda-chuva-amigo do Bananeira.

    Rena pagou pelos exames, que chegou ao especialista em velocidade de 50 gigabytes, por fiar amizades. Diagnóstico diferencial: câncer avançado de pulmão.

    Do Hospital Barros Barreto, para recomeçar o périplo, foi encaminhado ao Ofir Loyola, aonde se confirmou o diagnóstico por biopsia. Era tarde. Bananeira faleceu com a pele do peito toda marcada para radioterapia que vislumbrava. Entre os primeiros sintomas e a caixa-grande o abraço durou 40 dias. Morte trágica em menos de 12 horas após a falta de ar instalada, destino comum ao tumor que mais mata homens.

    Bananeira foi um homem que viveu, ao sol, rodeado de amigos e, entre lua e estrelas achava no tabagismo, e muito provavelmente em outras fumaças, o grande companheiro para o vasto céu de sua solidão. O apurado foi apenas um detalhe nas calçadas da Bráz.

     Diante da surdez do SUS, os amigos da Braz acompanharam toda a peregrinação até sua chegada ao esquife. Viram também a Medicina anestesiada, pois os médicos se acostumaram a viver com esse caminho chafurdo que o sistema impõe.

    Diz-se que “Manuel” Bananeira morreu na ilusão da Tuberculose ao ser embalado no poema de Bandeira, mesmo sem saber dançar tango argentino.
Mas o que isso importa, se a lembrança maior era a de plantar bananeira?

Labareda do bando de Corisco

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Formigamento de adolescente - Reminiscencias de Belém

“...És minha morena, és a flor que cheira o Grão-Pará”
(Chico Sena, em: "Flor do Grão-Pará")

      Mulher nenhuma tem sentimento na mesma concentração química, na mesma osmolaridade, por isso, mulher não tem fórmula, não se reza cartilha. Decora-se tabuada, rua e a capital da Síria, mulher não. A poesia, assim como mulher, assim como o amor - também não. Poesia é o retumbar no peito ao se ler Drummond e Leminski. Mulher também. E beber o caldo da mulher desejada como se fosse todo o licor do amor pode causar formigamento incurável pelo resto da vida.
      Tenho um desses formigamentos para contar - comicha há tempo. Começou quando eu ainda morava no interior do Acre. Lá tive infância calma, mas já abicorava umas pequenas de longe. Algumas me viam como aquele riacho de águas calmas que passa por debaixo da ponte do Jardim de Monet, em Giverny, apreciada naquela pintura impressionista do museu D’Orsay. Às vezes eu também era poço fundo, feito cacimba de quintal. Neste eu me via em outras meninas. 
    Tenho essa pagina a ser colada no futuro do pretérito do verbo hoje, assim, fatalmente assim, entre o singular e o plural de minha memória, pois degustei benquerenças no escuro de minha alma ressabiada; escorreguei em fartas coxas divagadas em sonhos; brechei vazios da minha de minhas mãos cálidas e lambi os beiços da euforia com mel de açucena.
        Em seguida mudei pra cidade grande e senti a catarse. Foi um choque em alta voltagem de corrente alternada. Tudo é mais voraz, célere. Desde buzina dos carros, arranha-céus e do amasso nas meninas. Desta parte de Eros relembro que conheci o cinema de Maria Schneider, em “último tango em Paris”. Nela revi amores morais e imorais.
         Foi quando certo dia, empurrado pelo Tico-Mico, parei nas imediações da primeiro de março, centro da cidade, ao lado da sede dos correios, logo após a sessão de “último tango...”. Era domingo tarde da noite. Lá havia umas luzes vermelhas que borravam os batons rútilos das putas. Rolava muito brega alteado em estridentes agudos e, à meia luz, cigarros esfumaçavam a penumbra. Dedos e unhas pintadas estavam em consonância com lábios chameguentos, demasiadamente pidões. Era o beco onde procurava minha Schneider.
          Eu me achegava, em passos tímidos, àquele destino. Já próximo, ou melhor, com um pé dentro, um estampido ressoou da esquina... Gente corria pra todo lado. Fiz os kilômetros de vantagem que separavam meu quarto daquela cena de faroeste em velocidade de raio. Nem vi Tico-Mico. quando olhava à frente, parecia que a terra, ela sozinha, corria em errância. 
       O meu quarto, por uns tempos, transformou-se em cárcere privado. Papai e Mamãe desconfiaram, os irmãos não. Sempre que recordava o zunido, vinha-me o pensamento daqueles lábios cheirando espoleta dos revólveres da infância. Quando me deparava com o escuro dos rincões de minha casa me encontrava frente a frente com o terror. Sonambulei dias, pois a cidade eriçava meus pelos.
         Duas semanas depois botei a cara na rua. Vi Tico-Mico pelo canto de olho. Nunca mais tocamos no assunto. Tinha a sensação que havia mais ontens do que amanhãs e o que desejava mesmo era que o tempo se adiasse.
      Dia desses nos reunimos na esquina da padaria "a Bijou" e retomamos conversas pregressas. Ao tomar uns goles de cervejas puxei pela memória. A dele falhou, mas no olhar por cima dos óculos houve denúncia. Ele ainda está encarcerado no próprio passado, apesar de escapado daquela bala perdida. Percebia apenas sombra nas respostas dele.
         Belém espavoriu minha adolescência e me faz, nesse canto do relembranças, tentar ser abduzido àquela vida brejeira de rever amores vis que a precederam. Mas a Morena cidade cravou em mim a adolescência e os ganhos, de tal forma que eu não mais suportaria abdução e distância e, tal como um cego no meu próprio destino misturei os tempos do passado com os tempos vigentes. Deu em saudades polvorosas...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

De tanto falar à ousadia de não silenciar

Apresentar um livro sobre segurança pública, justiça e direitos humanos na Amazônia é uma ousadia. Não pelo tema em si. Afinal, falamos dele todos os dias, usamos diferentes ferramentas para discutir sobre ele, sentimos na pele a presença dele. Mas é por isso mesmo que o tema é ousado. A naturalização da violência é vil demais para cruzamos os braços e calarmos a boca, num esforço de avançar para uma transformação digna em sociedades que se crêem avançadas em tantos setores - sim, calar pode ser o mesmo que repetir exaustivamente, por isso empreguei aqui a palavra, que de pronto é antítese do falar.

Pessoalmente, poderia definir assim, como ousada, a iniciativa da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), que apresenta pela segunda vez uma obra com esse perfil e definida no formato de caderno.

Abro um parêntese para o termo caderno. Ele pode ser vulgarmente compreendido como uma compilação de folhas a serem lidas e obedecidas, após milimetricamente copiadas numa clássica sala de aula. Eu prefiro acreditar que a obra foi batizada assim por sua livre construção, e construção de uma obra que instiga a expansão das idéias, não sua mera reprodução ou relatoria. E digo isso porque a organização desta obra, sob batuta da advogada Anna Lins, coordenadora do Programa Acesso à Justiça (PAJ) mantido pela entidade, foi feita de forma coletiva. Contou com a colaboração de diferentes segmentos sociais, movimentos populares, instituições de diferentes matizes e pessoas com diversos níveis de inserção política e compreensão dos assuntos que atravessam a questão da violência e da justiça no Pará e na região. Um método louvável, trabalhoso e principalmente responsável diante de tamanho desafio que é vencer a crueldade das violações que nos assustam a cada dia.

Em artigos coletivos ou individuais, o caderno “Segurança pública e justiça: direitos humanos na Amazônia” revela o compromisso de todos e cada um, aliados a uma entidade que se mantém e se renova há 38 anos na região. Aborda desde a criminalização de movimentos sociais a conflitos fundiários; do controle social frente à segurança pública ao papel da Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública no Pará; da polêmica redução da maioridade penal ao genocídio da juventude negra; do controle da letalidade policial à tortura; do lugar da mídia nesse contexto às audiências de custódia; da desmilitarização da segurança pública ao atendimento a vítimas de violência no Pará. Dentre outros temas, também está a reflexão sobre grupos de extermínio e milícias no Estado, pauta que já rendeu a formação de uma comissão parlamentar de inquérito e a entrega do respectivo relatório ao governador do Pará. Pauta que ontem mesmo acrescentou um dedo de prosa nesta história.

Pulsante, a discussão sobre intolerância religiosa, ataques a terreiros e suas lideranças é assinada por Arthur Leandro. Ele abordará o mesmo tema na sede do Instituto Nangetu, durante a apresentação do livro ao público, amanhã (08), às 19h. A obra foi lançada no último dia 09 de dezembro e está à venda por R$30.

É meu convite aos leitores do Flanar. Vamos?

| P.S: Atualizado para revisão dos temas abordados no livro.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Dois mil e qualquer coisa

                                                   "mantinha os livros que se deveria ler para sobreviver aos remorsos”
Garcia Marquez, em: “Viver para contar”

       A gente vive vestindo o ano novo e desvestindo o velho toda vez que cruza por essa fronteira do tempo (tempo esse fatiado no poema do Drummond que vive rondando as redes sociais). Apaguei as velas de 2015 certo de acender a de dois mil e qualquer coisa engajado na fé do horizonte adiante que meu nariz.
         Se vou conseguir? Ainda não sei, mas soprei. E, confesso: fiquei ofegante, esbaforido. O problema maior é que a gente não consegue separar a vida, vis-à-vis, da poesia. É um avalanche de otimismo que ronda a virada de ano e aí tudo se mistura e vai dar nas sobras do banquete do primeiro de Janeiro.
      Mas não desdigo: 2015 foi um ano que não vai se acabar da memória. Ficará rastejando entre cochicho de rapariga e comentário de economista na GloboNews. Ano que a gente, quando lembrar, vai gerar um friozinho na espinhela e o trunfo final: EU SOBREVIVI. Isso mesmo, vencido no gogó, no peito e na etnia de cada brasileirinho pé-de-chinelo que nem eu.
        Vencer o quê? Toda essa corrupção sem meter uma bala na cabeça ou uma faca no precórdio. Se bem que ainda vem o imposto de renda e mais lava-jato. O projétil ainda pode estilhaçar meu cérebro, pois o tambor do revolver estará girando com o cano apontado para o céu da minha boca.
       Quem poderá me aliviar desse infortúnio será Moro e a Policia Federal, nossos heróis republicanos dos tempos modernos. Eles têm a chave do milagre da cadeia para 2019, pois dezesseis e os outros anos, segundo os babalorixás da economia, já foram pro ralo e só veremos resquícios dele nos anais de história do futuro - mesmo que os anais fiquem pra frente e nos acerte na ampola do Reto.
       Para me refazer dessa ziguezera até dois mil e qualquer coisa vou-me empanturrar de versos dos grandes poetas para sacudir minha alma, dar a volta por cima lá em Pasárgada. Também tomarei uns comprimidinhos de prosa anti-melancolia, à prova de bala, mas em doses máximas de Sildenafil, para sobreviver aos anos vindouros. Se resistir terei bom prognóstico e futuro ereto.
      Para isso convoquei os livros que ainda não li e meus parceiros de literatura, como José de Jesus Camargo (Zero Hora, Porto Alegre), Raimundo Sodré, Amauri Braga e Paulo Renato (O liberal) e o Elias Pinto (Diário do Pará). Também tem as subversões do Antonio Corisco, que diligencia os versos do Canil, essa ONG de vira-latas que vez por outra rosna à porta de boteco e nos faz rir feito Papai Noel.
        No campo assistencial tem ainda o Chico Chiquinho, filho da Margô que vive longe e fica me dizendo que o depois de amanhã é logo amanhã, só para eu logo visitá-lo. Tem ainda o natal dos ribeirinhos, que o meu irmão David faz no Tucumanduba e, como diz o Berê, é sentimento altruísta injetado direto na veia, com jelco 14, o mesmo que se usa nas salas de emergência. Sem esquecer o Abel Sidney, de Porto Velho, que carrega sua sagacidade nas palavras desde quando nos conhecemos às margens do rio Machado, que vai dar no Madeira.
        Para esses tenho endossado o fervor da fé nas palavras e ações. E que resolvi tomá-las pra mim, como o vinho do cotidiano, e fazer dessa cantilena a água de beber no cantil do meu imaginário de escrevinhador de bugigangas.
          Então, que venha 2016.

Labareda do bando de Corisco