sábado, 26 de novembro de 2016

Linha mediana

                                          “Nesse tipo de vida é difícil curar uma doença. Ela se instala e não larga mais. Aí você morre”
Fiodor Dostoiévski, em: “Notas do subsolo”

Esta narrativa poderia sair de “Notas do subsolo”, de Dostoievski, ou do realismo auspicioso de Edyr Augusto ou mesmo de Tess Garritsen, médica e escritora californiana com forte temática policial, autora do extraordinário The surgeon. Na realidade é um relato extraído de vozes do anfiteatro da cirurgia, vivido por mãos enluvadas que, juntas, vivem a conter gotas de sangue que escorrem de punhais e balaços que atravessam mediastinos e flancos.
Dionísio Maldrán, homem de 50 anos, meia altura, com traços andinos fortes, adentrou pela emergência cirúrgica do hospital de Miami como um phantom dos subsolos de Dostoievski. Falava castelhano e nenhuma vírgula de inglês. Apresentava abdome distendido, bastante doloroso e ânsia de vômito, após ter sido esfaqueado na boca do estômago por meliante no Opa Loka, bairro considerado perigoso.
Após examinar e fazer algumas perguntas, o médico calmamente desfez o curativo e percebeu um talho de cerca de três polpas digitais na linha mediana, no abdome. Não pôde aprofundar a inspeção por conta da dor. Preferiu levar ao centro cirúrgico. Chamou-lhe atenção, como experiente profissional, a linearidade de corte.
Descobriu-se, no caminho para sala de cirurgia, a origem equatoriana de Maldrán. Em trânsito para Nova Iorque, ele dizia que iria morar no Brooklin e viver como handyman em Manhattan. Vivia o sonho de atravessar diariamente aquela ponte que unia duas geografias humanas bastabte distinta.
Após iniciar a anestesia, o cirurgião, já paramentado, começou a explorar o ferimento, até perceber que o golpeio era superficial, indo só até a camada gordurosa. Ficou em dúvida se seguiria na operação ou se faria apenas pequenos reparos, e por ali mesmo findasse a missão.
Mas e a dor? E o abdome empachado? A curiosidade aumentou, pois o ferimento era superficial, linear e causava toda aquela celeuma clínica. Mesmo com o ponteiro das horas espreitando o borboleteio do nascer do sol, o cirurgião, aguçado de curiosidade, resolveu aprofundar e ampliar o corte. O auxiliar, fadigado, achava que não, que deveria encerrar a peleja por ali, apoiado pela benção do anestesista. A sonda, passada pelo nariz até o estômago, retirava apenas algum muco insuspeito Uma fumaça de silêncio embaçava os primeiro raios de sol.
Acossado pela dúvida, resolveu seguir, como faria qualquer líder, entre os biombos da emergência. Lá encontrou um estômago tufado, abarcando todo o campo visual. Apalpou e percebeu o órgão duro, pedrado. Tumor? Câncer? Normalmente o estômago em situações de urgência fica distendido de ar, oco - jamais consistente daquela forma. Ao abrir o estômago com o bisturi pularam várias petecas de Cocaína. Calculara mais de trinta, mais de quilo.
No meio da manhã, já desperto e algemado na enfermaria, Maldrán confessou que era "mula" e fazia parte de uma nova rota internacional, mas passou mal no avião e seguiu direto para a casa de um conhecido em Opa Loka, que tentou, com navalha e sem anestesia, fazer o destripamento para retirar a droga, pois o filme “Mestre dos mares”, mostra uma cena e aquilo lhe dera algum aprendizado. A dor tamanha não permitira que a manobra medieval transcorresse na calada da noite, quando pensavam que os demônios da cirurgia estivessem distraídos ou sob pesada narcose.
Ficamos sempre vigiando, tentando ouvir conversas para buscar algo que represente a dura caminhada de um cirurgião pelas noites vividas ao fio da ciência dos desafios. Na coxia dos congressos, às vezes me distraio na vigilância e grudo a orelha na prosa de um e de outro. O bago dos olhos esbugalha quando um pedacinho de literatura é encontrada numa prosa frajola entre cirurgiões de vanguarda, mesmo os amigos que vivem alhures. Neste momento a folha em branco pede clamor e se torna ungüento para aliviar nossos pruridos e lubrificar todos os poros de nossas agonias. Eis a biopsia que não sangra: a literária.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Entre o Bar do Parque e o Central Park



O parque central de Nova Iorque só me levava ao festival de Woodstock e ao edifício Dakota. O Bar do Parque, não. Este, apesar do bar não ter parque, mas uma praça-quase-parque, leva-me ao bafafá e ao Ruy Barata, poeta de “Antilogia” que escreveu uma das mais belas peças sobre o tempo, em Pauapixuna: “O tempo tem tempo de tempo ser; o tempo tem tempo de tempo dar, ao tempo da noite que vai correr, ao tempo do dia que vai chegar.”
Vi-o algumas vezes por lá com suas pernas enoveladas, conspirando seus segredos com a fumaça de de seus cigarros. Essa é uma das lembranças do nosso Paranatinga, que dava impressão de estar apenas se deliciando de seus poemas e composições musicais ao lado de um copo de uísque com gelo entre baforadas.
As leiras e esteiras do Central Park, não. Este eu não tinha ideia de sua grandeza iconográfica, até caminhar por seus trilhos acarpetados por folhas mortas que despencavam a todo momento, denunciando a virada da estação e a nossa presença. Feito um flaneur agarrando-se ao frio pisamos sobre aquele silêncio apreciando a biografia do lugar e seus museus ao redor. Entre uma página e outra desta biografia, um esquilo cruzava nossa trilha.
Nossa? Sim, nosso caminho: meu e de minha namorada, afinal era comemoração de 25 anos de casamento e a viagem valeria uma ação de graças de tal peso. Já era tempo de tempo ser, diria Ruy, por isso dei a mão ao meu amor e sai a pé no rumo do destino, pisando em folhas caídas e cruzando com esquilos naquele jardim urbano de tantas produções cinematográficas e literárias.
Lá fora, New York fervia. A quinta avenida pegava fogo com a trump-revolution, que sacodia o mundo (e ainda sacode) a ponto de trepidar a ponte do Brooklin e recolher os bagos do touro de Wall Street. Eu preferi ficar entre selfies, juras de amor eterno e os últimos raios de sol daquele outono novaiorquino, cujas cores se empaletavam num amarelo vangoghiano, pintando algo impressionantemente belo para o eterno sabor da vida a dois.
Levamos tempo para completar esse caminho e esse destino - sina de gente marcada para a eternidade. A medida que parávamos para novos cliques, em torno do lago central, reconstruíamos aquele sino que "blem-blem-blou" na hora do “sim”, quando éramos apenas dois jovens em busca do futuro perdido em cada sonho dormido com travesseiro feito da própria mochila, descascada de desafios e das estepes por onde tudo começou, sob a assinatura do Cristo Redentor.
Na caminhada pelo parque, reservamos uns passos para conversar sobre a prole que engole parte de nosso temperado sentimento, mas que aduba nossa jornada para uma finitude plangente, que ali parecia não findar - não fossem as rugas.
Passava por nós gente correndo, gente andando. Todos ditavam, ao seu jeito, o final daquela tarde. O nosso ritmo parecia diferente, pois acompanhava o de Agnes Martin (1912- 2014), em exposição no Guggenheim, logo ao lado. Ela transmitia uma espécie de pacto com silêncio das artes. Sim, sim, tudo a ver com quem gostaria de ficar em silêncio ouvindo o passado construído e reconstruído entre vários senões, para refletir sobre a riqueza imaterial adquirida ao longo da jornada, prateada de chamego.
Uma observação: não visitamos o edifício Dakota, em acordo tácito. Entendemos que aquela bala que abalou o mundo embotaria nossas bodas. Preferimos sair cantarolando All you need is love, love... love is all you need.. 

sábado, 12 de novembro de 2016

Linfonodo sentinela

Berto, garçom de pouco mais de 30 anos que costumava fazer bicos em festas de famílias adentrou ao ambulatório. Carregava um tumor de baixo do braço, como se fosse uma bola. Tinha fascies de dor e, antes de sentar para confessar sua doença, percebia-se que escorriam lágrimas de suplício. Fez o pedido: "-dotô, me tire esta coisa; me tire esta dor."
Conseguiu-se a internação de urgência, indo pra sala de cirurgia na manhã seguinte, impelido pelo apelo. Na operação tirou-se quase um quilo de tumor e outra pequena amostra do tamanho de uma bola de gude (linfonodo sentinela1). Com sangramento controlado, a operação terminou em pouco mais de uma hora e o paciente seguiu para enfermaria, que dividia com mais quatro, num calor infernal. A felicidade no rosto da esposa, após a boa notícia, foi convertida em lágrimas de esperança, apesar de ainda ser necessário o exame do tumor extirpado.
Lesões como esta devem inicialmente ter biopsias e só então se decidir pelo tratamento – clinico, cirúrgico ou misto. Neste caso, a regra foi atropelada por conta da dor lancinante. 
A alta ocorreu sem complicação. Berto saiu servindo sorriso.
Após dois meses, a esposa volta chorando ao ambulatório:
- "Berto está à beira da morte no Pronto-Socorro."
- "Como assim? Cadê o resultado da biopsia?" Perguntou o cirurgião.
A esposa soluçava muito até chegar ao fim da história, deixando ar de apreensão na narrativa. Com dinheiro curto para pagar o exame das duas peças, escolheu a mais barata - a menor - e mandou ver. Esperou o resultado e, para alegria deu que não fora encontrada doença feia, contrariando a evolução clínica.
- "Mas esse é apenas o linfonodo sentinela. Onde está o resultado da peça grande, o tumor?"
- "Dotô, eu deixei a peça dentro do saco com formol e guardei na geladeira da mãe dele, até que tivéssemos o apurado para pagar o exame, já que o estado não dispõe. Quando arrecadamos fui pegar a peça, mas chegando lá nada mais havia. Indaguei a todos os cinco irmãos e ninguém se acusou, nem os pais. Então achei que a peça tivesse sido extraviada e ido pro lixo. Sem saber o que fazer,  deixei de lado, confortada pelo resultado da peça menor, o tal linfonodo sentinela. Depois de mês o tumor de Berto voltou no mesmo lugar, junto com a dor. Fiquei desesperada. Era dor demais pra pouco tamanho." 
- "Numa dessas madrugadas, ele já internado no corredor do Pronto-Socorro, vi a mãe sentada num canto da casa, choramingando, sem aparente explicação. Cheguei perto e forcei. Ela me confessou que abriu um pequeno buraco no fundo quintal e enterrou “aquela coisa”. Na cabeça dela tudo que é tirado do corpo da gente deve ser logo enterrado."
Berto ficou a base de morfina, até morrer uma semana depois.
No caminho de volta pra casa aquele cirurgião viu as ruas vazias, sentinelas vigiando a cidade que dormia no ritmo monótono da noite ameaçada de chuva. Lá fora um marinheiro tropeçava, discutia com o poste, errava o coice e caia de nariz sobre o esgoto aberto. Lambeu água da vala e ali mesmo incinerou a ciência pela absurda forma de olhar a vida amazônica. 
É na volta pra casa que os náufragos da cidade se encontram. Durante a madrugada, antes de o sono chegar, o céu ribombou e, pela vidraça, escorria o soluto e a ventania fazia a janela tremular. Existia uma lâmpada amarela, de luz doentia, no outro lado da rua, que o espreitava. Foi o último facho de luz daquela dia.

1. O linfonodo sentinela é aquele que primeiro recebe a drenagem linfática de um tumor maligno.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Sem pudores. Ler.



É incrível notar como meu estado de ânimo interfere e é influenciado imediatamente pelas experiências cotidianas. Digo: se estou saindo de um relacionamento traumático, não quero ouvir nem ler nada que me faça lembrar disto! Passados mais remotos também marcam presença firme e forte. Certo, eu sei que é meio óbvio, mas costuma me surpreender. Ponto. E devo reconhecer que alguns sentimentos são muito intensos no momento, o que não vem exatamente ao caso ao observar a beleza dos livros “Catarina” e “Jesse”, da historiadora Bruna Guerreiro, que acabo de ler. Ambos. Num tapa. A vivência vibrante de dois jovens de gerações diferentes é contada de um jeitinho inebriante. Ela com 18, ele com quase 40. Me reconheci em muitas situações. Sim, muitas. E talvez por isso ache que, para escrever algo assim, como os livros descrevem, só alguém que também já sentiu algo parecido minimamente e, principalmente, se permite ter claro tantos detalhes que costumamos esconder despudoradamente: os conflitos mortais, os morais, os desejos, as situações... Tudo soa muito real e não me sinto tão segura se quero sentir, ainda que de relance que seja, o que sentem alguns personagens, em especial os protagonistas. Emoções eu revivi e foi diferente do que senti quando também revivi algumas delas em “Ao som do mar e à luz do céu profundo”, de Nelson Motta. Mas este eu li em 2007.

Curioso é que sempre me vangloriei de poder dizer que nunca senti nostalgia do meu passado, nem sentia ansiedade pelo meu futuro. Em tese, eu estaria mergulhada lindamente no meu presente. E sempre comparei, mentalmente ou não, com as fases de crescimento da minha filha. Amei todas. E digo até este exatíssimo momento: amo todas, cada uma de sua maneira muito particular, com suas dores e especialmente suas delícias. Estava eu, neste molde, contemplada, em minhas diferentes faixas etárias. Poderia gritar aos quatro ventos, sem pestanejar, que estou muito bem, obrigada. O que passou, okey. O que vivo, beleza. O que virá, que venha. Mas a deixa está logo ali no começo do texto, meu estado de ânimo. Comecei então a pensar tanto na vivacidade e dramas de Catarina. Égua! Acho que bateu saudade da audácia. Deu medo também de não poder viver mais isso.

Pauso para desviar estas linhas para minha relação com a Bruna. Fomos colegas de turma, em um curso de espanhol. Como ela deve saber, sempre admirei muito a Bruna, seu charme, sua segurança, sua ousadia. E, quando avalio o perfil da personagem Catarina, pluft! Não é que parece que eu vejo a Bruna? Não importa muito o que isso signifique. Sempre vai significar algo para cada pessoa por diversos motivos. O que vale mesmo é o prazer da leitura e até onde ela pode te levar. A mim, cutucuou. Vou guardá-los, autografados, para minha filha ler (daqui a mais alguns anos).