segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Cesta do enfraseamento: Poeminha de Natal

 Minha poesia desditada olhará com meus olhos?
Pablo Neruda, em: livro das perguntas

Os meninos vão crescendo, os ideais amadurecendo e a gente roendo unhas. O fato é que chegou o natal e estamos mais uma vez em torno das rabanadas. Este ano, excepcionalmente, combinamos, com a permissão do bom velhinho da Lapônia, misturar crianças e adultos no tradicional amigo-oculto, tornando-o um movimento uniformemente variável na tintura do cabelo (variando de 11 a 80 anos) só para sentir o frenesi de cada um. Cada qual escolheu seu presente, pediu a “bença” da vó e mandou o verbo na hora da palavra.
A surpresa foi a pronunciação dos jovens, que até outro dia andavam de fraudas por nossos jardins da fantasia. O primeiro deu um indisfarçável abraçaço no irmão-oculto, disse palavras de afeto quando eu já ameaçava puxar o lenço do bolso para aparar as primeiras lágrimas; outro descreveu uma piadinha para a tia fora-de-série, daí voltamos a rir, engolimos as gotas de lágrimas e devolvemos o lenço para o canto do bolso. Por fim, unzinho de 13 anos largou, duma talagada só, um poema de natal.

Um poema? Sim, um “poema simpático”, assim respondeu. Pediu permissão para o respeitável público, puxou do bolso um pedaço de papel ternamente amassado e sapecou em forma de arauto, sem qualquer timidez, seu poema-mirim, em memória dos ausentes:
Seu pai era um homem forte
Que infelizmente encarou a morte
Poesias feitas pela mão
Sua morte nunca será em vão
Após os aplausos, pediu para ler mais um poema-mirim, dedicado aos vivos:
Quando todos estão unidos
Nenhum momento vivido
Jamais será esquecido
Porque todos somos amigos
 Sobrevoando “viver para contar”, de Gabriel Garcia Márquez, que narra a sua trajetória como embrião de escritor, fiz ranger a página que se segue, quando ele, já adulto, defrontou-se, ao lado de sua mãe, com seu médico de infância que tanto lhe fazia temer.

- Pois veja só, comadre – concluiu – médico eu sou, e cá estou, sem saber quantos de meus enfermos morreram pela vontade de Deus e quantos morreram por causa de meus remédios...
O doutor, pelo contrário, achou que era uma prova esplendida de uma vocação arrasadora [a de ser escritor]: a única que tinha capacidade para desafiar o amor. Em especial a vida artística, a mais misteriosa de todas, à qual se consagra uma vida inteira sem esperar nada em troca. 
- É algo que a gente traz dentro desde que nasce e contrariá-lo é a pior atitude – disse ele. E arrematou: - algo assim como a vocação para padre.

Ali, diante do dito: “o relógio cantou as horas; já era natal”
Labareda, do bando de Corisco

domingo, 21 de dezembro de 2014

Cesta do enfraseamento com Eliana Pichinine

coração
é pulmão
que absorve 
os ares
do amor

Eliana Pichinine

pulmão
é travesseiro
do coração
para noites 
de insônia


Labareda, do bando de Corisco

sábado, 13 de dezembro de 2014

Vida longa às ruas

Depois de tanto tempo ruminando uma série de assuntos sozinha ou entre amigos, ou mesmo que em poucas palavras escritas nas redes sociais, devo antecipar que me causa certa ansiedade escrever aqui neste espaço tão privilegiado. Talvez então eu possa resumir essas inquietações no marco de um tema amplo que escolho, por conta e risco, chamar de oposição.

Desde as manifestações que têm como centro o crime impetrado contra estudantes normalistas de Ayotzinapa (Guerrero/México), passando pelo aniversário do coletivo Luta Fenaj, no Pará, até o trivial bate-boca em ruas portenhas e as bestialidades ditas por Bolsonaro, no Plenário brasileiro, colocaria minhas reflexões todas nesse mesmo campo do embate de ideias.

Já comentei aqui o caso específico do assassinato e do desaparecimento de mexicanos após intervenção direta do Estado, por meio da polícia. Ainda que seja recorrente o uso da força bruta contra quem se opõe ao regime, em tese, democrático no país, a morte de seis estudantes – com requintes de crueldade – e o desaparecimento de outros 43 levantou protestos em todo o mundo. Considero que o crime mostrou como a população pode se organizar muito bem contra métodos de repressão já inaceitáveis na atualidade: fazem marchas paralelamente em diferentes países; articulam o apoio de pessoas que se tornaram referência de resistência, como é o caso de Estela de Carlotto, presidente da organização argentina Avós da Praça de Maio, de Nora Cortiñas, presidente da associação Mães da Praça de Maio, e de presidentes latino-americanos; garantem manifestações em jogos de futebol (a cada 43 minutos de jogo, um grupo começa a gritar por justiça); infiltram ativista na entrega do Prêmio Nobel da Paz, quando furou o cerco à Malala e pediu que ela falasse sobre o México, representado numa bandeira manchada de vermelho, e conseguiu a liberação do manifestante preso imediatamente com pagamento de fiança de forma anônima. Enfim, a luta continua e o presidente Peña Nieto está envolto em uma pesada crise. Salve a luta, eu posso dizer com o mesmo orgulho com que me vesti de catrina durante atividades organizadas por colegas mexicanos aqui em Buenos Aires.

Essa forma de expressar repúdio a um governo e às violações aos direitos humanos que ele patrocina, no entanto, não tem nada a ver com a maneira de se manifestar de um casal com que ocasionalmente cruzei na rua tempo desses. Aparentando uma idade que eu poderia classificar como de indispensável maturidade política, o casal começou a arrancar a unhadas pedaços de outdoor da presidenta que estava fincado mais abaixo que a altura normal das placas publicitárias. Pedaço por pedaço iam sujando a rua, em silêncio e como se estivessem prestando um grande serviço a uma revolução que, a meus olhos, é invisível. Achei tão infantil e tosco, que necessitei proferir alguns impropérios ao bem vestido casal. Onde eles pensam que vão chegar com essa atitude? Meu incômodo não foi o fato de serem contra a presidenta, mas a forma como se expressaram, que mais demonstrava porcaria ao sujar a rua do que seus ideais.

Poderia então, o distinto casal, mobilizar petição de repúdio por sei lá o quê contra a presidente, como está sendo feito no Brasil em nome da cassação de Bolsonaro. Particularmente, acho que nosso sistema político deveria agir prontamente diante das bestialidades do parlamentar, porque existem ferramentas para isso e que, portanto, tornam até estranhas as tentativas de criarmos condições para isso.

O fato é que as oposições, sejam quais forem, devem ser qualificadas. E elas são muito saudáveis para aperfeiçoar qualquer sistema. Sim, devo admitir que muitas vezes penso em desistir de fazer algumas delas. E talvez já até tenha abdicado de algumas no decorrer do caminho. Mas ainda persisto em uma e outra frente de batalha. Dá uma cuíra, sim. Que o diga o coletivo Luta, Fenaj!

No Pará, o coletivo completou quatro anos, recentemente, atuando com debilidades, mas muita dedicação e vitórias de alguns poucos idealistas que não estão nada de acordo com a posição da diretoria da federação nacional de jornalistas. Vitórias das quais se beneficiam a sociedade como um todo, que consome os serviços prestados pelos operários da informação. Eu poderia enumerar uma série de conquistas do coletivo, que foi também fundamental no processo que construiu a oposição à diretoria do sindicato de jornalistas do estado. Há muito tempo não se tinha uma chapa de oposição nas eleições e com membros tão aguerridos, tão bem formados e diversos politicamente.

Não há avanços sem enfrentamentos. E a constituição de uma comissão da verdade no Brasil não veio à tona por outro motivo, ainda que tanto tempo depois e tão cheio de lacunas. Na Argentina, o primeiro governo após a ditadura logo instalou a sua e, ainda que tenha sido melada por Carlos Menem posteriormente, garantiu uma série de prosseguimentos que fazem jus às lutas populares. Até porque os crimes de lesa humanidade não prescrevem. Caia ou não caia a lei de Anistia.

Vida longa às ruas!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

João Gomes, de arco e flecha, incrusta na poesia

Para que morras com a flecha encravada no peito
e a minha carne sangre por ti, 
atravessei a tempestade
Joãozinho Gomes, em : “A flecha passa e poemas diversos

        Se o poema credencia às artes, então sábado 6, quem esteve em Macapá, chão Waiãpi entre a fortaleza de São José e o Curiaú, celebrou a canonização de um poeta. Eis que se apresentou Joãozinho Gomes, tomando pelo ombro o poente nas cores do milagre de ser poeta de poesia.
      Joãozinho foi de arco retesado e flecha alvissareira para lançar palavras ao infinito devasso da página em branco. O título, “A Flecha passa e poemas diversos”, nasce da necessidade de se ocupar os espaços vazios com os passos esparsos do tempo em que cavalgou no rastro de sua órbita de compositor (Diga lá Nilson Chaves, Zeca Baleiro, Patrícia Bastos, Zé Miguel e tantos). Se a flecha passa, é por que o alvo é o peito dos que sofrem a ardência de amar até exaurir a alma, ou de sangrar por todas as veias. Esta é a mensagem de Joãozinho que emudece alaúdes, violões e atabaques e dá vez à palavra-pólvora incrustada na voz. Sim, sim. Falo do estalo que cada verso provoca no pomo, cujos estilhaços empalidecem a pele dos que se abraçam aos versos pontiagudos deste épico, que lembra Ilíada: “fez-se a guerra, a rosa de Ares, a bomba, volátil como a pomba).
        Se a música resplandeceu por primeiro, decerto a poesia estava incrustada entre um fá sustenido e a voz do cantor. Mas o que surge agora é alvo de Homero e João Cabral de Melo Neto, que o atingaram sem dó. Ou seja, João se desgruda das aldeias musicais e foge carregando Aquiles e Severina ao tiracolo, transformando-se em Poeta de épico.
      A obra é dividida em duas. A primeira é intitulada “A flecha passa”, épico que se passa na Grécia de Aquiles e Agamenon com parêntese dado à fortaleza de São José (em: Cantos do Tempo); o segundo, “Poemas diversos”, é uma ejaculação de palavras num aguaceiro de aliterações, esquartejando o ritual versejador tradicional, deixando nítido o contorno de sua pérfida caneta. Chama-me atenção duas fortes dores: a sensorial e a visceral. A sensorial é como uma flor que “fede” ou a dor de se “ouvir” a morte. A segunda é a dor orgânica, neurogênica, como se uma costelas estivesse estalando e, no momento da fratura o poeta, ao ouvir o estalido – como o som de um galho seco quebrando - provoca verso: “manadas taurinas\ estourando sobre nós \ esmagando as harpas\ ao tórax disto que ao sol se chama corpo”. Aqui, João compara o arcabouço ósseo do tórax às harpas, posto que o encordoamento do instrumento lembra a disposição anatômica obliquada das costelas, agora fraturadas, levando à desarmonia de movimentos. Ao que nós médicos chamamos de insuficiência respiratória.
        Assim, acidificando a dor, João é outro João – e está mais para Cabral de Melo Neto-, na dor doída que se assenta na poesia de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor\ Finge tão completamente\ Que chega a fingir que é dor\ A dor que deveras sente”.

       Como não sei tocar, tampouco cantar, prefiro João se fingindo Pessoa.

Texto publicado originalmente no Jornal "Diario do Amapá, em 7 de dezembro de 2014"

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Carta à minha amante inominada




Amor da minha vida - permita-me chamá-la assim!!??
Sei o quanto sofres nesta madrugada insone, e por isso te escrevo desta maneira, de bate-pronto, sem edição nem Photoshop.
Tudo o que quero te dizer é que tenho saudades, e que, como tu, sofro de atrozes dores, invisíveis aos olhos daqueles que julgam nos julgar.
Não importa o quão maravilhosa tenha sido a nossa tarde de ontem, nem o quanto nos amamos sobre os proibidos lençóis que miram a beira da Baía do Guajará - a dor de estar deitado ao lado de outro corpo me consome minuto a minuto.
Gostaria muito de te dizer que me mantive imaculado ao chegar em casa, enfrentando o marasmo da convivência com uma esposa quase-louca, disfarçando segundo a segundo o meu desinteresse pelo seu mundo pequeno e mesquinho de emoções. Mas tal não aconteceu!
Sim, minha amada, eu tive que te trair, tive que quebrar a promessa de não mais tocá-la com meus dez dedos, nascidos apenas para o TEU prazer.
Ao te confessar, entre lágrimas ocultas, não espero o teu perdão.
Ela me seduziu e sabes bem que após 24 anos de convivência os caminhos da conjunção carnal foram tão explorados que não é impossível trilhá-los quase que automaticamente.
Não espero teu perdão, mas caso possas cogitar essa possibilidade, mesmo que remotamente, considere me perdoar, pela última vez.
Te traí para continuar fiel a ti, ao nosso amor, aos nossos sonhos de viver um dia eterno, respirando o mesmo ar e bebendo do mesmo vinho. A possuí apenas para apaziguar suas dúvidas sobre a tua existência, amante fiel!
Chore, meu amor, pois choro em sintonia, numa sincronicidade tão paradoxal que é capaz de atravessar os cinco bairros que nos separam.
Amanhã estaremos juntos, trocando carícias e sonhando os sonhos mais reais, afastando assim o pesadelo que seria perdermos um ao outro.
Me dê uma chance, amada imortal. Só mais uma!!!
Afinal, eu te amo.
Feche os olhos e imagine que estou aí do teu lado.
Porque, na verdade, de certa forma, eu estou. 
Boa noite!

sábado, 29 de novembro de 2014

Cesta do enfraseamento: amor sob o céu de Manaus

Mais um beijo, 
agora breve, 
sem ânsia. 
Ela tirou a blusa, 
Omar bolinou nos peitos dela, 
sem pressa. 
Ela deixou, 
se entregou, 
meio deitada no banco. 
Depois a cabeça dela sumiu, 
e um dos braços, também. 
Não pude, 
não posso afirmar o que ele fez. 
Sei, ouvi ele miar que nem jaguatirica no cio, 
mas abafado, 
mordendo, 
engolindo os dedos da mão esquerda dela. 

Um bêbado apareceu no outro lado da rua. 
Bebia no garagalo,
cambaleava, 
soluçava sem alvoroço. 
Avançou em oito até parar pertinho do conversível. 
De soslaio, observou a bandalheira. 
Uma festa carnal ao ar livre. 
Estrelas piscavam lá em cima; 
um bêbado piscou aqui embaixo. 
Assim os dois até as cinco da manhã.
Milton Hatoum, em: "Dois irmãos".

domingo, 23 de novembro de 2014

Cesta do enfraseamento: Safári em terra de onças


Drive your work. Do not let your work drive you
Kenneth Mattox, 2008 (comunicação pessoal)

Nestor é um desses cirurgiões inquietos. Está sempre de olho no próximo desafio. Acaba um logo mira outro. Após longo período na rotina, sentiu cuíra e procurou aventura fora da raia clínica. Lembrou-se de um amigo espanhol que costuma ir à África para fazer safáris e do lendário texano Keneth Mattox autor do livro “Top Knife – arte e estratégia na cirurgia do trauma”, que não sai de sua cabeceira. Nele leu o provérbio chinês: “vá para o coração do perigo, porque ali você encontrará a segurança”. A epígrafe é do capítulo intitulado “Safári em terra de tigres”.

Toda vez que avistava o livro sentia palpitação, até ter a seguinte ideia: ir ao Pantanal. Queria - porque queria - dormir sob a batuta de uma onça pintada solta no próprio habitat e, de certa forma, por isso, tinha inveja de seu amigo espanhol.

Comprou duas passagens e programou a ida com seu amigo de trabalho mais Pi, o melhor guia de Corumbá. O nome Pi era uma homenagem ao premiado filme “As aventuras de Pi”, pelo fato de conhecer bem as onças do Pantanal. Seria aquele o último estágio de sua inquietude - o desafio que lhe enclasurava na terra.

Já no primeiro dia de selva encontraram pegadas do felino. Era ali o local ideal. Pi endossou. Empunharam as baladeiras na cumeeira de uma Sucupira e esperaram a noite estrelar e o sono afagar. O amigo, cansado, logo desmaiou e começou a roncar pesado. Nestor havia esquecido que ele era um trovão humano e Pi avisou que onças se tornam mais agressivas quando ouvem roncos.

Nestor mal cochilava e logo despertava com o ronco do amigo. Ansioso, voltava a dormir. A partir de certa hora passou a despertar não só com o ronco, mas com outro ruído estranho. Algo rosnava e patinava no pé da árvore tentando, ora subir pelo tronco, ora pelo galho mais baixo. Olhou para baixo e percebeu um par de brilhos que pareciam dois vaga-lumes no meio do escurão. Era ela, assustada. Confirmou Pi, já desperto. Viu que sem asas não tinha como incrementar um escape aéreo, portanto, procurou se acalmar e ficar acompanhando o movimento do bicho de um lado para o outro. Mais calmo, sacava fotos em baixa velocidade com o diafragma todo aberto. Aquele clique da Pentax K1000 já provocava alerta na fera. Pi voltou a dormir, mas o ronco do vizinho continuava e lembrava o Guariba. Quando aumentava o volume dos trovejos, a onça se irritava mais e forçava nova escalada, felizmente sem sucesso. Nestor, impávido, esperava passar, pacientemente, a noite mais longa de sua vida.

Ao amanhecer o ronco amainou e a onça, sedenta, resolveu beber água num riacho distante dali. Foi quando Pi determinou que descessem. Tremiam mais que bambu em vendaval. Pi usou a trilha de segurança, uma sequencia bem definida de passos que, com cuidado e velocidade guiaria-lhes de um marco a outro sem se perder. Assim, liderou a fuga quase aérea, mas deixaram para trás as redes e pertences.

Em Corumbá lembrou de sua Pentax, empunhada na rede. Programou a volta para resgatar os pertences. Agora mais preparado e com Pi no tiracolo, chegou ao local à luz do dia. Achou seus pertences apenas remexidos e sua K1000 intacta no cume da árvore. Voltou pra casa satisfeito. Guardou na memória o resgate e o momento de aflição sem precisar se deseperar.

Certo dia realizou uma operação chamada mediastinoscopia e, inesperadamente uma hemorragia avermelhou o campo visual. Nada enxergava e não conseguia controlar o sangramento, pois o espaço lembrava o buraco de fechadura. Inicialmente bateu-lhe um uma sensação de derrota, impotência, depois optou por uma manobra simples, retirada das cabeceiras de “Top Knife”: deixar um tufo de gazes comprimindo, até parar o sangramento. A hemorragia estancou, mas teve receio de tirar o tufo, ressangrar e perder aquele inocente. Lembrou-se do safári. Deixou a gaze comprimindo para voltar e retirar depois - dias depois-, quando tudo estivesse mais calmo.
Labareda, do bando de Corisco

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Dificil fotografar o silêncio

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto eu tentei. 
Eu conto.
Madrugada, minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.

Preparei minha máquina de novo.

Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume. 
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
 Fotografei o perdão.
Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. 
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre. 
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakoviski - seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

Manoel de Barros

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Virou Passarinho

Manoel chegando ao céu
deparou-se com Irene, a preta,
aquela mesma, do outro Manuel...

- Nem adianta, Manoel, falar
sobre nadas e desimportâncias
pois aqui és muito bem-vindo!

- Ah, Irene, e o que temos a fazer
nessa imensidão de espaço
e tempo ao meu inteiro dispor?

- Passarinho voa, Manoel,
e pousa e canta onde quer!

- E também se aninha onde
o coração lhe sugere?

- Como melhor te convier...

Assim, desde há pouco
um passarinho pantaneiro
tem buscado pouso e abrigo
para a sua terna poesia
no coração dos simples.

*Homenagem de Abel Sidney ao poeta Manoel de Barros (1916-2014)

domingo, 16 de novembro de 2014

Manoel foi pro céu: enfraseamento



Meu órgão de morrer me predomina.
Não posso mais saber quando amanheço ontem”
Manoel de Barros em: O livro das ignorãças

O meu mundo é pequeno. Tenho um rio que passa no meu quintal e escorrega pro mar, algumas mangueiras rechonchudas na varanda da minha cidade e muito pouca sabedoria: no máximo umas 400 palavras, mesmo assim em desacordo sintaxial.  
O que me queixo, mesmo, é de ser apreciador de gente.

Aí comecei a soletrar a poesia de Manoel de Barros como quem exagera no azul das pessoas. Descobri que todas as coisas do mundo se veem no peso da poesia, inclusive o que mastigo e engulo. Há aqueles que insistem em dizer que a poesia não serve pra nada; que toda poesia é conversa pra puxar descarga, e que nada tem a ver com ciência. Há outros que insistem em dizer que, não fosse a poesia, Adão e Eva seriam verdades; que o homem veio da evolução das espécies a partir de uma centopéia de dentro do DNA mendeliano, e não do pó... ou do barro. Este-um veio do barro, daí o nome: Manoel de Barros.

Manoel me convenceu: Adão e Eva existiram e o homem veio, ou do pó... ou do barro... ou ainda: do pantanal. E mais: que o céu era de Ícaro e não de Galileu. Foi de tanto lê-lo que me convenci. A partir daí vi outro mundo. Vi a gaita de Bob Dylan sonorizando um tamborim; vi pedras no caminho de Drummond até minhas retinas cansarem; vi as cores de Romero Brito numa curva do Araguaia e vi os passarinhos de Quintana passarando porriba de mim. Quintana é azul celeste e Manoel de Barros azul escuro. Ele acabou de se tingir em azul celeste para se igualar a Quintana e entrar no céu.


Todos são do meu tempo. O meu tempo é o deles, por isso me arvoro a ler Manoel de Barros como quem lê a mão do tempo para decifrar de que infância pernoito. A partir dele aprendi a entender um punhado de pessoas:
Jesse Teixeira certa vez me disse: “Não tem altura o silencio das pedras”; 
José Camargo outorgou: “as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis”; Rami-Porta sublinhou: “ao lado de um primal deixe um erudito”; 
Diego González sapecou: “ocupo muito de mim com o meu desconhecer”;
Raul Coimbra me confessou: “as coisas que não existem são as mais bonitas”; 
Paula Ugalde navegou: “minha canoa é leve como um selo”; 
Martins disse-me: " o escuro enfraquece meu olho".


São todos do meu tempo e todos têm nas mãos leves a poesia de Manoel de Barros sincopada em gestos nobres.


Muitos outros poetas de mãos leves e gestos me abriram portas, mas me escasseou Manoel neles. Não sei por que. Perdoem-me eles, sou vazio por fora de frases à Manoel de Barros. Quem sabe no rumo da copa das árvores eu me nivele e solte mais enfraseamento, tipo assim, como quem liberta um Curió cantador.

Portanto...


Se Manoel de Barros morreu-de-ter-existido foi para continuarmos enxergando, pela janela, a fronteira do céu, e pelas portas abertas do mundo o passeio de mãos dadas da poesia com a ciência. De portas fechadas eu morreria, pois descobri que a poesia da ciência é amarrar o tempo no poste e esperar que poetas acendam a luz quando a ciência obscurecer de idéias; que exista um facho de Manoel, pois o infinito do escuro perena no meu mundo pequeno, posto que, ao desenquanto, só sei o nada aumentado.

Labareda, do bando de Corisco