“Às tardes,
meu caminho encontrava um
casarão de esquina,
cinzento,
onde
via,
na porta,
pessoas que se inteiravam do mistério de curar.
Com a mente
cheia de sonhos
um dia entrei lá.
Aristóteles
de Miranda, médico e poeta.
Nestor perguntou à enciclopédia de História qual caminho para o Largo de Santa Luzia, pois sabia da existência de um rubi da ciência na Amazônia. A enciclopédia pediu-lhe para abri-la na página 1923 d.C.: vagalumiou uma seta que apontava para o norte.
Tomou a bússola e saiu, tal como um cão
farejador, pela selva de concreto permeada por mangueiras frondosas, na direção
almejada. Entre uma esquina e outra, pela calçada, Nestor achou capa de jornal velho
(janeiro de 1982), caroço de manga chupada, pedal de bicicleta – etc... -, até encontrar
uma biografia pelo caminho: era a rota certa.
De posse do Livro, no exato meio-fio
dos cruzamentos defronte do Largo, ele abriu na folha 52 e reviu o passado distante
do seu ontem. Empinou o olhar em direção àquela edificação de esquina, cinzenta
até hoje, saracoteando um segundo olhar à página, que dizia: “arquitetura
eclética, dois pavimentos com platibanda ornada em balaústres”. Não entendeu a
linguagem, mas parecia um palacete em art
noveaus, ou art déco, ou coisa
assim: eclética, amodernada.
Perguntou a um velhinho de sandália
de dedo, que vendia farinha ao seu lado: – Como se entra acolá? “Acolá” dava
sensação de distanciamento.
- Pela porta, moço, desde que saibas
ler com os olhos da ciência e do humanismo. Respondeu com intimidade.
Perpassando as páginas seguintes, recebeu
um choque nos nervos, um trisca. A obra radiografou o prédio da Faculdade de Medicina (e
Cirurgia, como no princípio). Em verdade, acabou por deflagrar um minuto do
momento mais doído da economia amazônica: a fratura exposta do ciclo da
borracha. “Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que
com a ‘quebra’ da borracha a sociedade empobrecera; ficara mais dificil, se não
impossivel, mandar os filhos para a Europa. E por que não criar, então,
condições para a elite estudar em casa, mesmo, permitindo, de qualquer maneira,
que se mantivesse o status quo?”, dizia
a página condutora de elétrons.
(A história é um fio desencapado e de
alta tensão, cuja tomada fica plugada na literatura. Ao tocar, a descarga atiça
os nervos. Só não fica magnetizado quem anda em desplugado da Literatura ou faz terra
com a História).
Portanto, a crise financeira fez “ovar” o curso de Medicina.
Começou num modesto espaço dentro Colégio Paes de Carvalho, em 1919, conforme
relatam Aristóteles de Miranda e José Maria de Abreu, médicos e membros do Instituto
Historico e Geográfico do Pará, no eletrocutante “Memória Histórica da
Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará”, (2010, UFPA). Citam Paes de Carvalho
como idealizador do curso (que era médico), mas que só foi implantado por abnegação
de um grupo de médicos incomodados com a espera do Governo, em farta crise. Camilo
Salgado usou seu prestígio para liderar a força-tarefa, quando o Governador era
Lauro Sodré.
Depois houve a
aquisição da atual sede, na página 1923. O local fora comprado de uma nobre família
e era conhecido como Palacete da Praça de Santa Luzia. Foi desembolsado
menos de 100 contos de reis, quando valia 200, pois a crise da borracha alfinetava
a bolha imobiliária. O Governo inteirou com cinco contos. O resto foi doação,
e muitas delas por anônimos em apreço aos médicos.
Ao findar a leitura, seis anos já se iam. Nestor
fechou o livro num sopapo, flexionou o tronco diante daquela arquitetura, fez o
sinal da cruz e pediu proteção aos “camilianos”. Depois comprou um quilo de
farinha e tomou o rumo do nariz. Voltou a freqüentar o casarão a partir de 1997, para
saber se os cômodos e as platibandas
ornadas em balaústres ainda estavam no seu
devido aconchego.
Para: Elias Pinto (Jornalista), Haroldo Baleixe, Maria Alice Penna e Cybelle Miranda (Arquitetos).
Artigo
recomendado:
Abreu
Junior JMC. A
Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará: da fundação à federalização 1919-1950.
Rev Pan-Amaz Saude 2010; 1(4):11-16.