segunda-feira, 7 de maio de 2018

A cor da violência

Lúcio Flávio Pinto, na abertura de sua agenda amazônica, assim define Belém (e por quê não o Brasil?), frente a onda de violência que acarpeta de sangue a cidade: “Já não se sabe com exatidão quem está matando e quem está morrendo nesses homicídios por atacado. A confusão é grande. Podem ser milícias ou o tráfico acertando contas [...]. Até investigar a sério ficou difícil, tão numerosas são as ocorrências...”
Os textos do jornalista escapelam o couro cabeludo da grande mídia e afronta os senhores do poder. Seus pensamentos críticos cortam mais que faca amolada em esmeril. Quem lê suas dissecações textuais, vive com as idéias em constante fagulhamento.
Lembrei dele ao encontrar um adolescente, na BR, vendendo o jornal de domingo, numa gaza que separa a “civilização” da periferia - onde se diz que a barbárie tem a chamejante cor vermelha. A manchete berrava: “Belém do Pará, refém do crime”. Eu lia enquanto semáforo vermelho. Espirrei com um gosto de epistaxe. Não era alergia, mas elegia - esse poema policial enclausurado na melancolia das manchetes nossas de todo dia.
Como todo retorno de BR, o semáforo demora. Baixei o vidro do carro e uma lufada de ar quente veio no meu rosto, até o jornaleiro se aproximar. Puxei assunto, para amenizar o sol do equador - queimando a moleira do garoto, protegida apenas por um boné.
- “Com essa minha alergia, quase espirro sangue com a manchete de hoje”.
- “O governo não faz nada, chefia”, respondeu ele em tom de propaganda eleitoreira, e já me oferecendo o periódico, quiçá um voto.
- “A gente também não ajuda... Você, sim, está ajudando”.
Ele soltou um “obrigado”, sem eu saber se foi pelo troco que deixei ou pelo elogio. 
Fui. Ao chegar ao hospital Metropolitano de Urgência e Emergência, onde se recebe as vítimas da violência urbana, quis saber o saldo do sanguinário sábado, rutilante naquela manchete. Sobre o dito saldo, mais vale o silêncio das calçadas lavadas após a passagem do rabecão. 
Sigo na visita, cadenciada pelos residentes e estudantes. A convivência com eles me faz esquecer aquela estampa de jornal, aquele sol na moleira do menino, assim como a segunda-feira, vigiando o saldo de domingo. Tudo na vã esperança que a terça-feira seja véspera do amanhã e um elo do branco com o amarelo e outros azuis e verdes à sombra da esperança de outras cores. 
Na volta pra casa, redescubro que a violência viola as cores da vida: do vermelho ao violeta; do branco ao preto - principalmente.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Top Knife, jornada na poesia


Se um dia me perguntarem o que serei.
Digo: médico de palavras simples.
Dessas que usam no alicerce da vida...
Priscila Franco, poeta.

A gente vive mesmo é de calçar sandálias, vagar mundos e contar fatos. De vez em quando sobra um tempinho para trabalhar e dar de comer pros peixinhos. Contar fatos me parece combinar com chocolate quente, então deixemos a fumaça desenhar arabescos no ar e penetrar pelas narinas.
Aconteceu por volta de 2008, num congresso Pan-americano, em Campinas. Eu tive uma participação longe de ser modesta, mas o meu interesse maior era conhecer o Keneth Mattox, considerado o bardo da cirurgia mundial, e apertar a mão daquele caubói texano. Ele já escreveu vários livros; comandou o resgate das vítimas do Katrina; de quebra também escreveu um capítulo denso num livro de cirurgia que escrevi em 2007 (EDUFPA) - e ainda fez a introdução. 
Eu precisava agradecer...
Na mesma laçada Mattox havia lançado “Top Knife – a arte e a estratégia da cirurgia do trauma.” Claro que comprei e ganhei um autógrafo, além de uma foto ao lado do baluarte. Alto, largo e claro, trajava um paletó de marca, envergava uma gravata com a bandeira texana e um chapelão ao melhor estilo caubói; tinha um ar juvenil e vivaz de quem só envelhece pelas rugas, pois pela alma haviam esquecido de avisar-lhe que os anos se passaram. Tivemos um bom aproach, apesar do meu inglês açaí-com-tapioca, e o dele, de texano com voz de trovão em estilo teatral.
Já de volta a Belém, na sala de aula e em visita com os alunos às enfermarias - e o top knife mattoxiano sobraçado -, uma jovem me abordou e achou o título assaz interessante, pois não é comum livros acadêmicos com alcunhas roliudianas. Disse-lhe que havia conversado com o autor e que era uma homenagem ao filme Top Gun – ases indomáveis, cuja estratégia de guerra do filme poderia ser comparada à da sala cirúrgica em situações “in extremis”.
        A aluna se chamava Priscila.  Ela anotou aquilo tudo e me mandou no dia seguinte um texto curto chamado “Top Knife – jornada na cirurgia”. Era uma alusão ao livro de Mattox. O texto é simplesmente fantástico e representa o olhar de um estudante frente às ciladas cirúrgicas. Ele encontra-se afixado na porta do Serviço de Cirurgia e será abertura do manual de cirurgia da UFPA, endereçado aos alunos.
      Após se graduar, Priscila Franco pegou o beco e foi para São Paulo fazer residência médica. Seu último texto postado foi de julho de 2011 e nunca mais li mais nada. Fui para o noticiário e achei o motivo: depois de um plantão pesado, voltando para casa por uma dessas estradas paulistas, um caminhão invadiu sua pista e ceifou sua vida. Alguns acharam que ela estava cansada do plantão e havia perdido o reflexo. O que ficou da médica, escritora e poeta foram alguns versos, lembranças do internato e também essa pequena peça que dorme de luz acesa nas ideias de Keneth Mattox, e que será imortalizada em breve.
       O que temos agora é uma amostra grátis de tantos poemas que ela prescreveu. São textos incrustados na contextualização médica, com uma estética provocadora que invoca um transplante de ideias e de resistência à verborragia indolente, quase sangrante, que assola a linguagem médica - que ora dorme apedrejando o inconsciente, ora passeia pela poesia moderna jogando flores ao léu.

Se um dia me perguntarem o que serei
Digo: médico de palavras simples
Dessas que usam no alicerce da vida
Mas que andam ao descaso por aí...

A palavra paixão. 
Virou esquizofrênica! 
Anda tendo alucinações. 
Acha que é amor.

E o amor? Hipocondríaco! 
Deu-se mil doenças... 
E parece que morre amanhã...

A coragem, em regular estado geral, 
diz que contraiu o vírus da indolência 
e desmotivação.

A amizade nem se fala... 
Uma febre de origem desconhecida. 
Parece a palavra colega quando estava doente. 
Será que é a mesma coisa?

O respeito é o mais perdido. 
Não sabe nem que médico procurar. 
Pode ser o mesmo da educação, 
que anda se queixando,há tempos, 
de dores na sua espinha dorsal...

A fidelidade, por acidente de trabalho, 
adquiriu doença venérea. 
Queixa-se de esquentamento...

A gratidão. 
Diagnóstico a esclarecer. 
Parece doença rara.

A honestidade, coitada. 
Para essa, nem concorrência tem... 
Talvez a mais moribunda de todas...

E oxalá que ninguém morra dessas verdades...

Se um dia me perguntarem o que serei
Digo médico de palavras simples
Médico de palavras simples
Palavras simples
Simples!