quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Um caso argentino e as mídias

Muito previsível, ao meu ver, que a grande imprensa brasileira mantenha a difusão de notícias que remontem sempre a situações, no mínimo, duvidosas, se não acusatórias, contra o governo argentino. Afinal, ela tem interesse em sustentar políticas menos democráticas possíveis e o governo argentino tem buscado implantar políticas menos à direita, ainda que tenham lá sua série de percalços.

O rodeio foi para citar o caso mais emblemático que circula na mídia brasileira a respeito do país celeste e branco (refiro-me às cores da bandeira nacional, tão parecida com a do Papão da Curuzu): a morte do promotor Alberto Nisman. Tudo ainda muito nebuloso, quando tudo ainda é possível em termos de conclusões sobre a morte: foi assassinado? Suicidou-se? As acusações que fazia contra a presidenta foram determinantes?

Nesse meio de campo há alguns fatores a serem levados em conta e que não têm sido postos à mostra na nação canarinha com tamanha voracidade midiática. Fatores como as eleições de 2015, como as previsões frustradas da oposição...enfim, fatores que Forster bem destacou. Ainda que o filósofo esteja envolto na couraça oficialista, que costuma desqualificá-lo diante de opositores, e que, sim, pode fazê-lo preferir um discurso a outro, creio que é fundamental levarmos em conta suas considerações antes de adotarmos uma ou outra posição sobre o tema.

Como no Brasil, ler apenas El Clarín ou Página 12 não dá dimensões suficientes para ter mínimo domínio sobre um tema que se quer de fato conhecer. Sim, exige esforços de leituras e tensões sinápticas.

Traduzo livremente uma de suas manifestações e deixo o link para quem apostar na leitura em espanhol.

“Não houve rebeliões policiais, nem saques ou greves selvagens. Víamos que grande parte da sociedade atravessava com alegria o verão, com centros turísticos cheios e um mapa econômico mais estável que o de 2014. É preciso observar tudo isso, se não parece que um satélite saiu de órbita e caiu subitamente. Aqui existia uma história previa e é necessário vê-la no interior destes mecanismos de desestabilização e de um ano decisório para os argentinos”.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Cesta do enfraseamento: “Je suis Charlie”



“Os dois nasceram perdidos...”
Milton Hatoum, em: “Dois Irmãos”
Se poeta fosse, gostaria de fazer versos na ponta lápis. Acho o lápis, aquele que a gente se acostumou a usar na alfabetização, a forma primaz de se desenhar ou poetizar a liberdade. Vejo nos desenhos de Pablo Picasso, ou mesmo no “Homem Vitruviano”, de Leonardo Da Vinci, a expressão do lápis exatamente como eu gosto. Tenho a impressão, mal posso afirmar, que todas as obras de arte, mesmo finalizada a pincel, foram iniciadas a lápis, pois parecem ter a plumagem do desejo de voar na liberdade de criação.

O problema é que a mão que afaga o lápis é a mesma que engatilha o fuzil. E o que pode sair da ponta de fuzil é pólvora, culminando em desenhos bizarros, na cor vermelha, incrustados no chão.  

São duas mãos que desatinam ou dois irmãos que se digladiam: o islâmico fundamentalista que se caracteriza pelo comportamento sórdido, calculando friamente fuzilamentos sob as barbas de Maomé. Outro irmão, o cristão, que vive a liberdade de expressão, por isso paga com sangue todo o custo de tal liberalidade. Tal convivência caminha lado a lado e jamais imaginaríamos todo esse ódio flanando pelas margens do Sena a ponto de se ouvir estampidos além de suas imediações.

A Paris tão romântica de cenários de cinema, quadros impressionistas e romances viu-se pintada de vermelho rutilante, as cores da violência indomável e inescrupulosa entre dois irmãos de mesma identidade cromossômica.

Ao retratar “Dois irmão”, de Milton Hatoum, vê-se na Manaus de outrora um cenário paisagístico que escondia a difícil convivência entre dois irmãos de ascendência libanesa: “Lá fora piavam pássaros e pelo vão da janela eu via galhos envergados e frutas maduras espalhadas no chão sujo do quintal”. O quintal esconde, como o desenho de um lápis, o enxerto Naturalista da obra, cuja realidade é levada aos extremos da sede de vingança.

O simples olhar a este enfraseamento, revela a mais pura descrição de uma paisagem que habita qualquer quintal de cidade amazônica, mas que representa apenas flores escondendo uma obra espinhosa, ao revelar a alma perversa de dois irmãos (gêmeos) cujo ódio revela-se apimentado num e sórdido no outro. O interessante da obra e que me faz admirá-la é essa camuflagem bucólica que Hatoum prepara por trás de todo aquele sentimentos de ódio entre os gêmeos. Uma história que relembra os bíblicos Caim e Abel. Yaqub além de mais ressentido e rejeitado, era também o mais bruto, o mais violento, pois matutava o silencio como maneira mais eficaz que uma resposta escrita ou uma vingança esculachada. Yaqub tinha o perigo e a sordidez da ambição calculada, e caminhava seguindo os passos de seu irmão Omar, mimado pela mãe, fazendo lembrar a poesia oportuna de T.S Elliot (tradução de Ivan Junqueira): 
"Somos dois apenas, lado a lado,
mas se ergo os olhos e diviso a branca estrada,
há sempre um outro que a teu lado vaga
a esgueirar-se envolto sob um manto escuro, encapuzado."

sábado, 3 de janeiro de 2015

Bicho solto

Quatipuru fica na zona do Salgado paraense. Passando Primavera. Eu mesma só soube da existência dessa cidadezinha porque foi de onde saiu meu avô Tomé, atravessando rios e mares até Mirasselvas, onde encontrou minha avó Vinoca, e daí nasceu a primogênita Izabel, minha mãe. A família Santos de Souza seguiu o rumo do sítio por anos a fio, com intervalo maior depois do falecimento daquele doce senhor de olhos verdes. Sempre gostei de ir pra lá, ainda que não tivesse água fria e a luz fosse embora cedo, trazendo com a escuridão a lamparina e as histórias de fantasmas; o ronco alto do vovô e os carapanãs.

Voltei lá neste fim de 2014 e continuo apaixonada por Quatipuru, onde a festa da Marujada celebrou 177 anos de louvor a São Benedito. Muitos primos da mamãe continuam lá e nos recebem com todo afeto e fartura gastronômica. Caranguejo tirado, de fato, começou a mudar de proporções depois da dura do Estado em nome da higiene. Pra dizer a verdade, acho que eu nem me importava, talvez porque pensasse que era tudo boca de família. Piadas a parte, não faltou nadinha e só não voltamos mais carregados porque já não tínhamos como acomodar as gostosuras fresquinhas.

Lá se vive feito os bichos: solto. Chega um, se encosta na casa e fica pra uma tigela de açaí. Ou fica por mais tempo, como o Lucas, que já domina a arte do boi-bumbá e está no seu segundo Luminoso.
Conheci muito do Pará pelas oportunidades que minha profissão me deu, e voltei a várias cidades e reencontrei uma série de pessoas a partir dessas escolhas que fiz. Mas os encontros regados à emoção são impagáveis.

Os cliques são amadores, meus mesmo.