terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A leseira que dá

Um ano cheio de agonias. Pessoais. Vou me limitar a isso. Daí o dia de vir a Belém passar as festas de final de ano começa a se aproximar. E dá uma leseira... Mas uma leseira... Algo assim: coração fica sem lugar; cabeça cheia de informações que se confundem. Decido fazer uma coisa, mas volto no meio do caminho, porque estou certa de que é melhor começar por outra. O ar, nessa altura do campeonato, o ar já começa a faltar. Dá uma espécie de cara branca. Melhor mesmo é sentar no sofá. Rio. Acho graça convicta de que não tem graça nenhuma. Convicta de que é preciso manter um mínimo de dignidade. Esfrego as mãos no rosto, pra sentir se limpa a confusão. Nessa hora, a fome aperta e nem sei de que tenho vontade de comer. Qualquer coisa serve. E por onde anda a muleta? Sim, porque as pernas estão bambas e as mãos tremulam. A bomba ansiolítica foi tamanha que o sono parecia arrebatador. Um dia inteiro em poucas horas da manhã. Encosta. Respira fundo. Dá uma tossidinha pra ver se a palpitação regulariza um pouco. Isso já não foi mais só leseira. Foi ataque histérico! Valei-me!

Balanço do ano? Só se for numa rede gostosa, com a costelinha da minha pequena que já está grande, sentindo o vento fresquinho amansar a pele e o som do bailar das palmeiras apascentando as ideias. Cheguei.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Era o inicio da travessia...

E mal começava 1982 e já tínhamos o ano marcado em nossos corações - hoje cinqüentões. Havia apreensão antes de o listão soar, mas era puro receio de deixar tudo na memória povoada de fantasmas. O ouvido incrustado no rádio seguia aos ovos espatifados nas cabeças cheias de trigo, escorrendo nos rostos estampados a alegria estendida a pais e amigos. Aquela gororoba no cabelo era reverência ao ano que começaria na dimensão da universidade, ou seja: cuca controlada e Pinduca na vitrola.
Foi o início da travessia, decerto. A partir dali não queríamos morrer na praia e apenas ficar olhando o mar revolto espumando sobre areias. Queríamos mais. Àquela altura tudo isso também tinha gosto de liberdade - emancipação, diria.
Inicialmente veio a satisfação de conhecer disciplinas básicas e amigos que passariam a ser grudes inseparáveis. Depois chegaríamos ao velho casarão de Santa Luzia para perceber que a maioria carregava as mesmas expectativas, esperanças e a sede de aprender. Fomo-nos conhecendo e formando bandos rumando num destino só, feito nômades. Umas mais tímidas, como eu, outros mais extrovertidos, engraçados, intelectuais. Mas todos no bando. 
A cada semestre de encontros e reencontros eram motivos de regozijo ao rever aqueles rostos que iríamos acompanhar por mais algumas escalas. Desencontros e partidas ocorreram - de fato, uns e outros tomaram nortes diferentes e se destinaram a outras aragens.
Os termos técnicos que paulatinamente íamos degustando e dicionarizando passavam a ser rapidamente incorporados aos diálogos. Aprendemos também, por força da necessidade, uma nova escrita, com abreviaturas horripilantes que só nós decifrávamos, sem falar dos desesperados em véspera de provas.
Amadurecemos mais quando conhecemos o sofrimento alheio, defrontando com a dor dos pacientes que nos fitavam com olhar suplicante, pedindo o colírio da cura. Tais marcas nos acompanham até hoje, cujas bases estão enraizadas nos porões da Santa Casa, onde regamos a misericórdia e nos escondíamos das greves até esta chuva passar.
Mas a viagem tinha tempo findo e chegava a hora tão esperada. Era canudo na mão, coração na boca, peito aberto, pernas trêmulas e alegria indisfarçável. Na voz de todos, cada pomo esbravejava na hora cálida da sintonia telepática do juramento de Hipócrates.
Findou quando descemos as escadarias do Theatro da Paz. Recomeçávamos outra travessia: alguns para terras mais distantes, outros mais pertos; alguns estiveram sempre juntos, outros nem tanto. Uns tiveram rotas alteradas, mas na esquina seguinte reencontramo-nos pela via virtual. E que felicidade quando esse encontro passou a ser físico e voltamos a ser bando.
Em cada ruga só víamos os mesmos rostos juvenis que nos transportavam à época, tão perfumada em nossa paisagem, levando a sensação que não existiam tais rugas e grisalhos cabelos. Estávamos realmente anestesiados pelo óxido do riso. A alegria que nos farfalhava também guardava a tez que ficou no retrato em branco e preto emoldurado na sala de jantar. Havíamos formado um novo elo de amizade e retomada a velha convivência, graças ao solavanco da tecnologia.
E estamos aqui...
E se a tal máquina do tempo viesse nos buscar pelo colarinho do jaleco, eu, particularmente eu, acocoraria-me diante da nobreza da amizade e me achegaria um pouquinho mais perto de cada precórdio para auscultar com mais intensidade o ruflar de cada sístole de cada outro-um.


Relato transepidérmico de Ana Rosa Bosi, médica na área de Saúde Pública, (Novo Repartimento, sudeste do PARÁ)

domingo, 6 de dezembro de 2015

O sopro de Ana

“Havia o céu. Eis tudo.”
Ruy Barata, poeta, em: “Linha imaginária”

Gente nascendo na Santa Casa de Misericórdia é cena corriqueira há século e meio. E quando crianças coroam por lá, o azul tende a ficar celestial. Até hoje, quando caminho por aquele entorno percebo, mirando o céu, sempre uma rodela azulzinha e sem nuvens. Penso logo que o firmamento anda se contraindo feito útero de parturiente.
Tudo isso me veio à memória porque nos idos de 1985 vivi momento de glória com a minha turma da disciplina de pediatria. Tínhamos aula prática de sala de parto na Santa Casa. Vi crianças nascendo a rodo. Sentia na sonoridade dos alaridos, assim como aquele inconfundível cheiro de placenta, um sentimento de me deixar estupefata e sem fôlego. Não saberia descrever por palavras, mas posso criar um estado de sentimentos, se permitirem, pois não é a história que me fascina, mas a alma que veste a história.
Os pirralhos já nasciam aos berros e logo-logo eram embrulhados pelas enfermeiras numa manta espessa para protegê-los do frio da sala de parto. Posteriormente eram colocados sob luz artificial para reaquecimento, afinal de contas abandonaram seus iglus onde tinham uma vida mergulhada numa piscina de água morna e diáfana. A partir de então assumiam um ritmo diferente daquele que a mãe natureza acabara de impor, ou seja, um frio equivalente ao do polo norte e um estridor ao respirar. Passado aquele momento o choro dava vez ao silêncio da respiração.
Houve o momento que o professor Maués, lendo meus olhos, chamou-me para “aparar” uma criança prestes a surgir pelo canal do parto. Num misto de sorriso pálido e satisfação, falei: - Eu, professor? “Você mesmo, Ana”, respondeu. Derreti-me por dentro. Estava apavorada, pois como qualquer um, tinha receio de deixar a criança cair e se espatifar no chão; foi o que me passou pela cabeça.
As lágrimas daqueles choros representam o apelo de se abandonar aquela vidinha suburbana latejando no líquido amniótico e ter que se agarrar no mundo, com unhas frágeis e sem dentes. Mas ali estavam os pediatras dispostos a recebê-los de mãos abertas e eu me via enluvada naquele ritual.
Até hoje nunca vi sofrimento nesse convívio, assim como soberba por parte de médicos e enfermeiras. O que via era dedicação e doação, extratos do altruísmo. Estava ali apenas para interpretar o que acabara de rabiscar na sala de aula, sem atrapalhar o sopro da vida. Eu era apenas uma curiosa menina apaixonada pela ciência e, ver aquilo me causou paixão. Foi o visgo que me atracou na profissão e até hoje respinga no meu sentimento e memória. Sinto saudade daquelas primeiras linhas tanto quanto os passos que agora desfilam pela lembrança fosca.
Graças a Deus tudo correu bem. Senti-me maravilhada por fazer parte ativamente desse momento mágico. Esse acontecimento consolidou minha vontade de ser pediatra e conviver com grandes mestres. Lembro desses passos, ainda como se fosse hoje, pois passei do pavor ao total deslumbramento quando segurei aquela vida. Portanto, nasceu o perfume com a floresta. E, seguindo orientações técnicas, foram tomadas todas as ações necessárias em uma sala de parto. 
No dia seguinte fui visitar a criança e, para minha surpresa, chamava-se Ana.
Sempre me pergunto: por onde andará aquela Ana?

Relato epidérmico de Ana Aparecida Figueiredo Seixas, pediatra