domingo, 19 de fevereiro de 2017

Cena de catedral



A cena é de dois cirurgiões maduros - em cada lado - iniciando jornada. Enquanto se curvam silenciosamente ao destino, há no centro um mais jovem enveredando-se pelos estridores da especialidade. Ele justapõe as mãos, entrelaça os dedos enluvados e ora antes de chegar seu primeiro momento. Cirurgiões rezam desde quando alcançaram o mundo; os de fé têm os joelhos doídos...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Minha mãe chorava

Minha mãe chorava. Lembro disso com um silêncio profundo no meu peito. Não era um choro qualquer. Afinal, todo mundo chora. Eu também choro. Mas minha mãe chorava um choro doído. Um choro corrente. Fundo. Um choro que eu nunca entendi. Eu olhava minha mãe apenas. Não sabia o que perguntar ou dizer. Lembro que certa vez ela estava na cadeira do escritório, com os joelhos encolhidos no peito, sabe? Eu estava na cama, logo ao lado da mesinha, brincando com o celular. Eu disfarçava pra olhar pra ela, porque ela chorava, derramava lágrimas sem dar nenhum piu; só se ouvia o som do nariz feito chupar cana com discrição. Estava abraçada às pernas e olhava pela janela. Era uma imagem que me perseguia, esta.

Cresci e entendi muitos motivos mais para chorar na vida. Mas minha mãe, ah, minha mãe seguia com aquele choro longo. O choro dela se demorava nela, parecia que se demorava mesmo quando ela não derramava lágrimas. O que passava com minha mãe? O que passava pelo coração dela? O que passava pela cabeça dela? Eu nunca perguntei. Eu só sentia vontade de estar perto. E a distância me afligia.

Lavar pratos. Fazer comida. Transitar de um lado a outro da cidade. Deitar para dormir ou para ler um livro. Coisas cotidianas que não pareciam dar motivos para minha mãe chorar. Mas ela chorava. Eu via. De soslaio. Não queria atrapalhar talvez...talvez não quisesse levar alguma bronca, sei lá. As lágrimas escorriam e seu cenho era triste. Eu ajudava minha mãe nas pequenas tarefas cotidianas. Gostava de cozinhar, de lavar pratos, de limpar a casa...mas não gostava de ver minha mãe chorar. Era uma incógnita sombria pra mim.

Depois que minha mãe se foi, eu lembro dela feliz e de muitos momentos alegres que passamos juntas. Mas do que mais me lembro é que minha mãe chorava. Essa imagem está marcada em mim.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A outra margem do rio

       Vejamos, uma pessoa pode chegar à nascente do rio, 
andando pela margem, não é?
José Saramago, em: "Democracia e Universidade"

        A gente se põe a ler uns e outros e acaba se entregando às ideias. Tum-tum-tum no coração, aí uma idéia puxa outra e tudo vai bater no olho d'água, donde a vida principia. Foi dia desses que me pus a ler "Democracia e Universidade", de José Saramago e acabei me entregando ao pensador e suas ideias sobre a nascente de um rio. Foi uma verdadeira saramagia nos meus glóbulos brancos - mais ainda por saber que Saramago jamais passou pelos portões de uma universidade e mesmo assim se tornou Nobel.
       Pra quem já passou por uma universidade, costuma-se aferir que é a página mais marcante da vida profissional. E para quem se tornou um escritor sem a sombra dos muros da academia, como Saramago, como então olhar criticamente para o interior da universidade? Eis a grande mensagem do livro (EDUFPA, 2O13), uma coletânea de discursos em salas universitárias por onde rodou.
        Durante a escavação da leitura, depara-se com a seguinte passagem subterrânea: "A universidade, na minha opinião, deveria reivindicar algo mais que aquilo que objetivamente, lhe é próprio: a qualidade do ensino a partir da nascente do rio". Parei. Lembrei-me do Diogo Pinheiro, um ribeirinho que conheci ainda criança. Diogo mora no Tucumanduba, às margens de um pequeno rio da grande bacia amazônica, que vai dar no Tocantins. 
      Filho e neto de ribeirinhos, a mãe pôs-se a ser professora de ensino público e o pai, apanhador de açaí e pequeno pescador de anzol e matapi, assim como o avô Bené. Até hoje, com mais de 70, Bené escala um açaizeiro como menino de 15. Diogo foi sustentado pelo rio e floresta, e sua mãe o amamentou com a leitura. Assim Diogo chegou à adolescência e, hoje, aos 16 anos, é um leitor contumaz.
      No Tucumanduba percebia-se que Diogo, desde menino, sempre esteve atado a um livro. Lia de tudo: literatura clássica e o que lhe dessem de presente. Confessa a mãe que ele tem paixão - mesmo, mesmo - é por Clarice Lispector; só largava Clarice quando a noite chegava, pois o lugarejo não dispunha de luz elétrica. O pai, homem reservado, falava da satisfação. Foi quando certa manhã, alguém sacou uma foto no momento de interação entre leitura e aquela paisagem bucólica, com trapiches e o rio logo ao fundo. 
     Certa vez, um casal de pesquisadores finlandeses foi visitar o lugarejo e viu aquele menino contemplando um livro. Deram-lhe uns dinheiros para ajudar nos estudos e aquele regalo ajudou Diogo a conquistar a aprovação em primeiro lugar para o curso de direito - Universidade Federal do Pará.               
      Diogo estudou numa pequena escola pública da periferia de Abaetetuba, a cidade mais próxima. O pai está eufórico e a mãe radiante, pois, pela beira de um rio, andaram na contracorrente do que se apregoa como caminhada linear para se chegar à universidade. Ou seja, estava de um lado da margem, enquanto avistavam o movimento da sociedade do outro, até alcançarem os próprios sonhos na vez do filho. Vô Bené chama isso de cuíra.
            Em “Democracia e Universidade”, Saramago dá voz a Diogo, que o Estado insiste em ignorar. Essa voz ecoa da nascente do rio - o umbigo da formação universitária. Então, quando Diogo puser os pés naquela universidade, que fica à margem de outro rio - mais largo, até -, certamente estará muito mais contribuindo para a universalização da academia, do que a academia para seu universo, afinal o tapuio leva na mochila o olho d'água do veio da vida.