segunda-feira, 23 de maio de 2016

Yes, nós temos jazz

 Tem que ter pulmão, resistência física. E isso está acabando.
Já escrever não requer tanto esforço físico”
Luis Fernado Veríssimo, músico e escritor.

Preservation Hall, New Orleans-LA, EUA
Enquanto a flecha zune e atinge o braço estendido da população desavisada eu me liberto da notícia indi-gente e me apresento disfarçado para tamborilar textos autóctones sobre jazz, feito quem entende de música, mesmo em saber que nada sei. Não-não, eu não entendo de música e, no máximo, pago ingresso, bato palmas e grito: Bravo!  É o que tenho feito quando a mão do tempo afasta-se do meu copo de cerveja, e me deixa de bandeja tertúlias com amigos de bar, sem ter que olhar para o ponteiro das horas e para as dissonâncias do tema.
Sempre que posso, aos sábados acordo cedo, cumpro com as obrigações e rasgo para o Igarapé das Almas, não em busca de alma penada, ou de reminiscências da cabanagem e dos cabanos que por lá teriam escondido suas armas (ou alma?), mas em busca da alma da música, ou a música da alma: o jazz. Disfarçando, e como se fosse comprar parafuso pro meu hardware, sento e dou ouvido à blue note em formato HD em 3D, no epicentro do blues, quando o sol do meio-dia beira a linha do equador a ponto de derreter meu toutiço.
Para escrever sobre jazz, precisaria vestir-me de Eric Hobsbawn e ter neurônios alongados para analisar o entorno da historiologia. Sem deixar de falar do Luis Fernando Veríssimo, que escreve com frequência, paixão e profundidade sobre sua maior inclinação musical, retratando grandes nomes como Miles Davis, Charlie Parker, Chet Baker e Gerry Mulligan, entre outros. Veríssimo trata o jazz como se fosse seu prato predileto, antes de começar a escrever seus textos vibrantes, sonorizado em grandes idéias - longe, estou longe disso. Escrevo como um reles cabano, a procurar vestígios de conhecimento entre uma prosa e outra diluída no meio de tanta gente bamba.
A começar pelo Paulinho Assumpção, que sempre me percute de informação; também preciso ouvir Nego Nelson e a sua forma de se comunicar com o Violão e os próprios sentidos. Tem ainda muito mais gente: o Bob Freitas, por exemplo, que toca como se tivesse degustando um Malbec argentino. E por aí vai, estes me dão a liberdade do abraço e a prisão de meu respeito. Nego Nelson quando me encontra sempre tem uma piada encaixotada para contar, certamente para disfarçar aquele pedaço de pulmão que dele tirei e joguei no laboratório para dar crédito à vida... e deu!
Quando todos esses jazzistas de alma se reúnem assim quando o sol do meio-dia nos tempera, a gente sente que New Orleans está mais perto, e que a Bourbon e a Perdidos Street saem da sombra da memória, vestem-se de personalidades e vêm bater aqui no Igarapé das Almas, armadas do sentimento de Grandpa Elliot e Kzan Gama. Sim, Elliot deu à rua alma e deu ao jazz rua. Foi quando as ruas começaram a ter consonância com a sonoridade e passaram a andar despidas do sossego.
Yes, nós temos jazz, nós temos alma, "invés" de só osso. Apenas falta-me tutano para escrever sobre tantos talentos e fôlego para respirar tanta musicalidade. Por enquanto fico com as palavras de Hobsbawn: “o fã do jazz, portanto, raramente é músico”. Aqui estou, então, entre palavras, disfarçando minhas palmas.

domingo, 22 de maio de 2016

José Serra é recebido com protesto em Buenos Aires





A agenda argentina de José Serra, ministro interino de Relações Exteriores do Brasil, mobilizou dezenas de jovens para uma vigília, no início da noite deste domingo (22), em frente à residência da Embaixada do país em Buenos Aires, no refinado bairro da Recoleta. O tucano foi designado pelo presidente interino, Michel Temer, a fazer uma visita ao país "com o qual passamos a compartilhar referência semelhantes para a reorganização política e da economia", conforme definiu Serra em seu discurso de posse.

Além dos tradicionais cartazes e faixas, tambores e apitos, carros-sons e bandeiras, também foi preparada uma boa quantidade de inusitadas bolinhas de papel, para lembrar ao ilustre visitante as eleições de 2010, quando o então candidato pelo PSDB se dedicou a uma série de exames médicos depois de receber uma bolinha de papel na cabeça, atirada por manifestantes contrários à política tucana.

Além de brasileiros, argentinos também participaram do protesto, que seguirá o trajeto do ministro interino na capital azul e branca. A impopularidade de ambos os governos é notória.

O recado foi claro: não reconhecem um governo nascido de um golpe no Brasil e reprovam a sinalização positiva do governo macrista a ele. O enfrentamento pacífico vai continuar e ninguém vai se intimidar com policiais que mantiveram distância estratégica dos manifestantes.

Tomadas as duas entradas principais de veículos tanto na Embaixada quanto na residência – que se comunicam estruturalmente -, Serra entrou no prédio pelo caminho da cavalaria, mais utilizada por pedestres em ocasiões festivas. Na manhã de segunda-feira (23), as agendas prometem se cruzar novamente. Vai ter luta, garantem. E eu acho ótimo!

Fotos: Erika Morhy

domingo, 15 de maio de 2016

Sejamos selvagens sob controle?


Raúl Zaffaroni, entre representates de Clacso e Umet (Foto: Erika Morhy)

Alguém aqui se preocupou com o que acontecia no Brasil em 1964? Pode-se ouvir um curto e fundo silêncio no participativo plenário, quebrado pelo próprio Raúl Zaffaroni: temos uma consciência regional para ser fortalecida.

Lá vem textão!

A terceira aula do curso internacional “América Latina: cidadania, direitos e igualdade”, ministrada pelo juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte DH), em Buenos Aires, no último dia 13 de maio, foi tão incrível quanto as duas primeiras: a do ex-presidente uruguaio José Pepe Mujica e a do professor da Universidade de Coimbra, Boaventura de Sousa Santos. Fiquei tão encantada que senti dificuldade para escolher por onde iniciar este brevíssimo relato.

Mas se eu tive dúvidas, os apresentadores da aula foram seguros e unânimes em deslanchar seus discursos levando em conta o golpe no Brasil como exemplo de que é redobrada a necessidade de pensarmos criticamente o estado da América Latina nos dias atuais e alguns caminhos para tornar a região mais habitável universalmente, aspecto que, aliás, foi seguidamente citado pelo advogado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, no decorrer da aula.

Não quero me deter em todas as linhas de discussões abertas tão refinadamente pelo ex-ministro da Corte Suprema de Justiça e suas ironias requintadas, ainda que vá citar algumas delas. Gostaria mesmo de compartilhar referências que me soaram muito familiares. Referências a questões que são atuais para a Argentina, para o Brasil e muitos outros países.

Um dos problemas que devemos observar e levar em conta, segundo Zaffaroni, ao nos depararmos com a fala de gestores e grandes meios de comunicação é o conflito dentro de uma mesma classe social. O juiz reitera, com uma série de exemplos inclusive, que provocar e acentuar contradições internas são estratégias muito funcionais e que devemos nos recusar a aceitar. Ele explica os altos índices de homicídios na capital argentina a partir das tensões dentro das periferias. “O fator que mais influencia no número de homicídios em Buenos Aires é o conflito dentro dos bairros periféricos. Matam-se entre si. Não é como querem que acreditemos: que saem de seus bairros para cometer assassinatos na classe média, em bairros mais abastados”, finca pé e acrescenta que este é um quadro característico dos países da América Latina como um todo.

Num panorama onde 30% da população estão incluídos entre os beneficiários do Estado e 70% estão excluídos, fazer com que cometam assassinatos entre si ganha cores de controle da desfuncionalidade. É terrível ouvir isso, mas é necessário sabê-lo.

Tóxico? Cocaína?

Esses elementos precisam ser bastante relativizados no processo de compreensão dos responsáveis pela violência, afirmou Zaffaroni. Primeiro, porque boa parte dos países da América Latina não é produtora da matéria-prima. Na Argentina, ilustra, no máximo pode existir algum laboratório na região norte, fronteira com Bolívia. Segundo, porque os estados da região têm se dedicado a proibir o consumo de tóxicos – a cocaína entre eles – e a proibição só agrava o cenário, defende. “Produzir a cocaína é barato, porque não tem valor agregado. Se proibimos a cocaína, fazemos subir de preço o que mais vale, que é o serviço de distribuição”.

Adivinhem, leitores, quem sai ganhando nesse jogo, entre os países da América? Isso, Estados Unidos. “Não produzem; não competem por mercado; detém uma rede de distribuição que deixa 60% do valor comercializado dentro do país; arrecadam com a venda de armas a narcotraficantes; e ainda dominam 100% do negócio da reciclagem”, elenca o juiz.

Concentração dos meios de comunicação

Mas eu havia dito que Zaffaroni citou os meios de comunicação. Volto ao ponto. A concentração dos veículos não apenas detém o monopólio da informação, pura e simplesmente; ela provoca um monopólio da construção de realidade.

Entre nós, da área da comunicação, pode parecer algo óbvia a afirmação do juiz, mas para uma platéia ampla, ainda que majoritariamente da área de Ciências Sociais, é um aspecto que precisa ser mais detalhado. E ele não se intimidou. “Eu moro no bairro de Flores e não sei o que acontece no bairro de Matança, por exemplo. No México, os homicídios – muitos deles com requintes de crueldade - são divulgados tão cotidianamente pela mídia que as pessoas passam a crer que a violência é normal, que os mexicanos são violentos”, disse ele, com um leque de ilustrações sobre vários países. Um segredo: aqueeeele, aqueeeele oligopólio do Brasil também foi citado [não contem pra ninguém, porque é uma suspeita muito recente – contém ironia].

Tal reducionismo sobre a população de um país é definido por Zaffaroni como fruto de racismo, ainda que devamos considerar a natureza selvagem do ser humano. Alguém discorda? Muitos e por diversas razões. Eu estou com ele.

Reducionismos

Aproximando-se mais de sua área imediata de atuação, o juiz da CIDH faz lembrar que a humanidade carrega o fardo de um poder punitivo que é seletivo, de acordo com os estereótipos negativos construídos pelas sociedades. Seletivo e corrupto, complementa. E nem é com ele que temos de contar, muito menos para controlar a violência, os homicídios, o genocídio.

Não vou me arvorar a descrever a aula de criminologia e sistema penal oferecida generosamente e com tanta clarividência por Raúl Zaffaroni. Mas vou tomar dele uma certeza que é muito difundida nos meios acadêmicos: necessitamos enfrentar a realidade desde um conhecimento construído no trabalho de campo, caso queiramos prevenir a violência.

Pra mim, ficou uma dica: sejamos os selvagens que somos, mas sob controle, pela construção de um mundo em condições de permitir que todos vivamos bem. Será que é isso?

Boa luta para nós!

domingo, 8 de maio de 2016

São tristes os invernos

Marcelo, no Benguí, cultiva um pequeno jardim na frente de sua casa. Dia desses me ligou relatando febre, dor de cabeça e lassidão extenuante, compatíveis com essas viroses soltas por esse Brasil varonil. Ele me pergunta: Chikungunya, Zika ou Dengo meu? Impossível responder por telefone, apesar de seu bom humor, já que no ouvido clínico elas têm mais semelhanças que diferenças.
João, vozinho que mora em Ipiranga (SP), também zelava por seu jardim. Apresentou o mesmo quadro clínico, mas necessitou ir urgente ao Hospital do Servidor Estadual. O diagnóstico diferencial fechou em Dengue hemorrágica por conta da queda de plaquetas (células da coagulação) e falência multi-orgânica fulminante.
Ah! Como são tristes nossos invernos de norte a sul.
Ambos teriam que fazer exames para definir o diagnóstico, mas a mira era o algoz Aedes. Marcelo lembrou-se de sua infância interiorana e teve uma epifania: mesmo abatido pegou ônibus no rumo da Castilho França e tratou logo de aviar um mosquiteiro - sim, um mosquiteiro. Até procurou DTT, mas disseram que há anos não fabricavam.
Na manhã seguinte, Marcelo observou que o teto de seu mosqueteiro estava repleto de carapanãs. Também viu que sua vizinhança não havia controle dos criadouros, sem falar do lixo e esgotos a céu aberto, que pioram no inverno. Daí, para não encrencar com vizinhos resolveu apenas se defender com mosqueteiro. João, em São Paulo, não teve a ideia e sucumbiu.
Aedes aegypti, o vetor desses males, depende de condições sanitárias. Quanto mais precariedade, maior será sua condição de sobrevivência e multiplicação. Calor, água e gotícula de sangue humano são os ingredientes encontrados na natureza que lhes dão sustância. Acrescenta-se aí o tempo das chuvas. Os ovos colocados na superfície de um depósito de água parada eclodem e dão origem à larva, de onde saem adultos entre sete e dez dias. Quando a fêmea pica um “dengoso”, contrai o vírus, depois ela infecta – somente a fêmea – uma pessoa saudável com nova picada.
A estratégia de combate ao mosquito ficou clara tão logo o ciclo biológico foi esclarecido, há mais de cem anos pelos brasileiros Adolf Lutz e Emilio Ribas, na época da febre amarela. É bem mais fácil derrotar o criadouro do que a legião de vampirinhos sedentos, pois seus ovos são resistentes e podem ficar viáveis por meses, segundo Ricardo Lourenço, da Fiocruz. Pior foi ouvir dos sanitaristas que 80% dos criadouros estão nos lares. Isso dói. É como se fôssemos culpados da convulsão febril de uma criança, ou da morte do vovô João.
Ah! Como foram tristes nossos invernos...
Com esse diapasão, Oswaldo Cruz erradicou o mosquito em 1903, no Rio. Ele dirigiu a “brigada mata-mosquito”, plano de higienização da cidade. Adentrou nas casas valendo-se de um tribunal exclusivo para esta causa. Erradicou o Aedes, ganhou estátua de herói, mas mesmo assim cidadãos viram sua privacidade invadida.
Os mosquitos zumbizando e a nossa modorra intelectual estão deixando rastros de negligência na escalada de mortes nesse país, a ponto do mosquiteiro ser quesito básico de segurança. Se o discurso político é o da anti-pobreza, desfechos como o do vovô João revelam notas fúnebres das mortes inaceitáveis.
Noves fora: zero. Faltam-nos Oswaldos e sobram cruzes em nossos quintais. Como ainda serão tristes nossos invernos!

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Iguana iguana

Imagem: Scylla Lage Neto


Terra natal
lugar para morrer
Waremoko*

Mansaku Itami

*nome japonês da planta pimpinela (homófono da frase "eu também, portanto...")



domingo, 1 de maio de 2016

Entre bananeiras que separam quintais

...mas o avanço da ciência esmaga as obras-primas
Julio Verne, em: “Da terra à lua”

Vivia noutras esferas, o menino. Sempre que o chamavam para jogar bola de gude ele se esquivava e danava-se a trancafiar-se no quarto que dividia com três irmãos. Na boca da noite se esgueirava pela janela da casa a apreciar lua e estrelas. Vez por outra ia à varanda olhar a rua ou ao quintal apreciar o céu, sem passar além das bananeiras que dividiam o quintal vizinho, onde guardada estava a surpresa dos anos vindouros...
Ficou assim depois de ler Julio Verne. Passou a desejar sondar mundos abissais e interestelares quando a noite vestia aquele mundo.
Após mirar céu e seus olhos serem invadidos pela escuridão do lugar, baixava a cabeça e dava noutra varanda, pegada à sua. Lá ele descobriu que tinha uma luz de vela dentro de uma menina que crescia e sonhava com livros. O menino Julio no nome estava sempre a olhar aquela menina que, no facho de suas retinas, achava foco na pele da leitura dela.
Quem seria?
Foi depois de uma estação chuvosa de inverno amazônico, em que corpos adolescentes arrancaram suspiros de árvores, bichos e crepúsculos cúmplices; que muros romperam-se por entre bananeiras. Eis que iniciaram conversas.
Ele dizia que a lua não era longe e, subindo num balão cheio de um gás obtido do azoto, trinta e sete vezes mais leve que o hidrogênio, atingiria a lua após dezenove dias de travessia.
Ela suspirou; ar lhe faltou; quase desmaia. Ele a acudiu com água da cacimba, que havia numa cumbuca ao lado; achou que tivesse falado alguma asneira.
Ela recobrou-se depois de duas goladas, e disse:
- Não. Nada de asneira. Foi um certo Hans Pfael, de Roterdã, quem disse isso.
-Sim, é verdade, respondeu Julio, estupefato e com os olhos arregalados.
- Agora entendo o porquê de seu nome. Uma homenagem a Julio Verne?
-Sim. Foi meu pai quem alcunhou. Ele costumava lê-lo.
Já recuperada, retornaram ao livro de Verne. Leram juntos: “Assim, há alguns anos um geômetra alemão propôs enviar uma comissão de sábios para as estepes da Sibéria. Ali, em vastas planícies, deviam fazer desenhar imensas figuras geométricas, por meio de refletores luminosos, entre outras, a do quadrado da hipotenusa. Qualquer ser inteligente, dizia este geômetra, deve compreender o destino científico dessa figura“.
Assim se descobriram leitores. Assim descobriram a química do amor entre páginas de ficção científica.
Eles não se abalaram com o vendaval de palavras que ululavam pelos quintais, entre bananeiras, feito cercas que separavam os dois terrenos. Palavras novas eram agraciadas com beijos demorados e abraços em redemoinhos.
Os curumins cresciam e continuaram lendo a dois. Seus amigos não entendiam aquela mistura de sentimentos.
Outros curumins surgiram após desenlaces de DNA. As horas suprimidas a passar, de uma âmbula para a outra, feito relógio de marcar tempo, transformaram-se em livros espalhados pela casa, alargando-lhes o quintal e a vida.
Hoje as histórias contadas inundam a varanda de lembranças tantas. Lembram juntos e acompanhados dos filhos a epopeia das bananeiras que faziam fronteiras e se tornaram ninho de aventura quando olhavam para o céu.


Em parceria com Abel Sidney