domingo, 25 de junho de 2023

TRAQUEOPLASTIA: do projeto ao programa médico-social

              Traqueoplastia (ou laringotraqueoplastia) é terminologia médica, e significa restaurar e remodelar a traquéia e/ou laringe (vias aéreas) por meio de cirurgia e/ou endoscopia. É indicado em pacientes acometidos por  afecção inflamatória/infecciosa, traumática ou cancerosa.

Com número grande de doenças nas vias aéreas como resultado de internções prolongada em CTI, o governo do Estado do Pará criou um programa chamado TRAQUEOPLASTIA, por meio da Secretaria Estadual de Saúde (SESPA), após intervenção do Ministério Público Estadual (MPE) a partir de 2015 por meio judicialização. O programa social iniciou em 2016.

A história começa quando o MPE ouve a queixa de cerca de seis familiares, liderada por uma jovem estudante de direito, de origem marajoara, cujo irmão, um vaqueiro, havia levado um tiro na cabeça ao defender de assalto a fazenda de seu patrão. Foi acudido e levado ao maior centro de trauma de Belém. Lá ficou entubado por vários dias. Sobreviveu a todas as complicações possíveis, mas saiu com seqüela na respiração, por isso carregava uma cânula de traqueostomia no pescoço, que também ocultava a voz. A irmã, que tratou de procurar um serviço público para sanear a questão, achou no hospital universitário Barros Barreto (UFPA) a especialidade Cirurgia Torácica. Depois de quase um ano na lista de espera, resolveu procurar seus direitos no MPE.

Não obstante, a jovem estudante tentou avaliar a possibilidade de tratamento privado, mas logo percebeu que não tinha reserva financeira pra arcar com tantas despesas. A complexidade do caso, assim como o tempo necessário para o tratamento, deixou-a angustiada. Ganhou espaço num dos jornais da cidade para denunciar a lentidão do hospital e o grande drama que viviam esses pacientes.  A diretoria do hospital universitário nos convocou para responder à imprensa, pois aquele hospital não era referência em cirurgia para correção de defeitos da traqueia - aferiu o diretor. Em princípio discordamos, mas depois revimos as condições hospitalares, pois este tipo de operação precisa de material específico e cuidado diferenciado. Percebemos que ali estávamos diante de um tema complexo, cujas complicações são elevadas e graves, mesmo em centros mundiais referendados.

Pela falta de um centro de referência e o isolamento geográfico da Amazônia, o MPE impôs à SESPA a criação de um centro especializado em Belém. Coincidentemente, por ter expertise no tema, fomos convocados, agora para montar o projeto. Com multas bastante elevadas estipuladas pelo MPE, a SESPA teria que se desdobrar para montar o serviço, do contrário, o Estado teria que ressarcir aquele jovem vaqueiro e mais meia dúzia que amontoaram queixas ao MPE. Asfixiada, a SESPA se viu na obrigação de criar um programa para durar seis meses, especificamente para tratar aqueles pacientes judicializados e dar resposta ao MPE.

Demorou mais de ano entre idas e vindas à SESPA, pois o projeto teria que ainda tramitar por diversos setores do governo até se concretizar. Em agosto de 2015, recebemos chamado que havia sido aprovado. Em outubro de 2016 o serviço foi implantando, inicialmente para durar apenas seis meses.  

Seis meses após o início, mais de 20 pacientes traqueostomizados se apresentaram ao ambulatório. E o que era para seis meses dura até hoje, com novos e novos casos, cada vez mais complexos, até se transformar nessa representação nacional.       

Durante esse período já realizamos mais de dói mil procedimentos endoscópicos, o triplo de consultas e cerca de 120 pacientes com operações abertas complexas.

            Realizamos simpósio com transmissão ao vivo para todo o Brasil; recebemos mais de 20 cirurgiões torácicos brasileiros e alguns estrangeiros. Vários residentes já passaram por lá, de diversas especialidades ligadas às vias aéreas. Dois deles vieram do Chile, e passaram dois meses em atividade, participando dos procedimentos endoscópicos-cirúrgicos.

            Recentemente, durante o XXIII de cirurgia torácica da SBCT (Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica), realizado em São Paulo, fomos laureados com o prêmio Antonio Ribeiro Netto, pelo desafio social do programa social na Amazônia. Igualmente, ganhamos o terceiro lugar entre os pôsteres apresentado, que deverá se tornar um artigo científico.

O hospital Galileu, onde é desenvolvido o programa é um hospital de 100 leitos, localizado na Grande Belém, distante 20 minutos do centro.

No primeiro dia de atendimento, já havia vários pacientes. Escolhemos como primeiro caso para operar - o mais simples. Depois vieram mais casos, até pegar embalo. Nosso maior medo, o de encontrar casos bizarros e complexos, foi lentamente superado a cada resultado cadenciado pela boa resposta pós-operatória. Três elementos foram fundamentais, do ponto de vista técnico: estudar bastante, ler obstinadamente outros autores, praticar e convidar grandes cirurgiões de fora de nosso Estado para analisar criticamente o programa. Do Oiapoque ao Chuí, literalmente, fomos recebendo cada um. As operações complexas foram ficando simplificadas, até se tornar rotina. Outrossim, desenvolvemos adaptações às clássicas técnicas, a qual tomamos como melhoramentos.

O programa se desenvolve em apenas um dia da semana, aos sábados; realiza-se cerca de três a quatro procedimentos endoscópicos ou cirúrgicos por cada dia, mas sempre estamos ultrapassando a meta. O programa sobrevive com tecnologia básica, pois ainda não temos acesso a dispositivos de ponta. Ou seja, o lema é: fazer bem o básico.

Mais da metade dos pacientes procedem do interior do Estado, que é composto por oito milhões de cidadãos e tem o tamanho equivalente à vizinha Colômbia, o terceiro país em extensão da América do Sul.

Três cirurgiões titulados pela SBCT compõem o serviço e são os autores deste livro. Existe um CTI de cinco leitos específicos para cirurgia de vias aéreas, além de enfermarias com médicos clínicos, fisioterapeutas e fonoaudiólogos com vivência no tema e visitas diárias. O Hospital não dispõe de sala de emergência, mas há um CTI preparado para receber pacientes que necessitem de urgência e emergência, com todo material prontamente disponível para se realizar desde traqueostomia a dilatações e entubações, sempre com um dos cirurgiões de sobreaviso e a presença do intensivista.

O programa é administrado atualmente pela OS ISSAA, que sempre tem apoiado, juntamente com a própria SESPA, grande fomentador. Entretanto ainda estamos carentes de alguns pontos na área de tecnologia, por exemplo, ainda usamos cânulas metálicas em nossa rotina, já bastante ultrapassadas; carecemos de moldes laringotraqueais, de laser e de broncofibroscopia. Na área humanitária, ainda nos falta um serviço voltado para crianças, outra área delicada, pois não são poucas as que necessitam de uma abordagem com expertise.


Texto: Roger Normando, Responsável Técnico pelo Programa TRAQUEOPLASTIA e Professor da disciplina de Cirurgia Torácica - Curso de Medicina - Universidade Federal do Pará