quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Paz e democracia, em tese, em tese...


Postei aqui, em 2014, um texto sobre a desaparição com vida de 43 estudantes campesinos em Ayotzinapa (México), vistos pela última vez sob a atuação grotesca de policiais. Passaram-se dois anos e os estudantes seguem “desaparecidos”, num país onde, em tese, está em vigor a paz e a democracia. Em tese. A luta e a resistência de familiares e simpatizantes das causas humanitárias seguem firmes. É preciso ter olhos de ver e ouvidos de ouvir. Sobretudo, coragem para enfrentar a calamidade que ultrapassa fronteiras e revela a falência de um modelo de sociedade que não estou certa se funcionou algum dia. Construir é necessário e urgente.

Busquemos novas fontes de informação e brindemos a nós mesmos um mundo melhor. E como contribuição, deixo uma dica; na página, é possível observar uma sequência de imagens sobre manifestações realizadas no último dia 26.

domingo, 25 de setembro de 2016

Grandes incisões, grandes cirurgiões

Ponto: "Por isso, a história da Cirurgia Torácica confunde-se, em larga medida,
com a história dos artifícios técnicos, criados pelo humano engenho..."
Jesse Teixeira, 1979

Contra-ponto: "O presente se assusta com o futuro e desdenha o passado. Se não somos capazes de adivinhar a próxima descoberta, somos altamente capazes de subjugar o antigo pela coerção mais ignorante que a tecnologia não foi capaz e ofuscar: a que somos o estágio mais avançado da humanidade"
João Pedro Normando, historiador



Em 1978, logo que chegamos à cidade grande ainda éramos meninos, bem dizer, para entender o progresso e o peso da revolução industrial em nosso cotidiano. Costumávamos caminhar pelo centro histórico e rever cada pedra de lióz e comparar com a infância no interior de tempos idos e de textura brejeira. Hoje, andando pelas soleiras de modernas ruas, sob intervenção do progresso, percebe-se que a transformação – inexorável transformação – foi faca amolada em nossos sentimentos de outrora, ao mesmo tempo lentes para nossas retinas de cirurgião congraçado com o presente vistoso.
Esse prelúdio de pensamento ignora o tempo, para e pede silêncio, feito barco ancorado, mas reconhece que a vastidão da tecnologia lustra seus berloques, mesmo sabendo que o caminho por essa dualidade provoca sequidão na garganta.
Na cirurgia torácica, da ótica por onde olhamos, o velho e o novo nos tatuam com flores de ipê - talvez nem seja saudável a comparação -, mas insistimos nesse passado para evitar que nossa memória se desbote diante da avalanche de tecnologias inebriantes, pois há tendência de se descarregar esse decurso no expurgo - o que não é justo.
Destarte, nós, avatares da cirurgia, chegamos aqui por conta desses grandes homens que lutaram e nos deixam esse legado imensurável de bravura e ternura pela profissão. Jurgen Thorwald, em seu viscoso “Século dos cirurgiões”, relata que os grandes cirurgiões do passado se dedicavam a ser mais rápidos nas operações, diga-se de passagem, sem anestesia, sem luvas e sem assepsia. Realizavam grandes incisões e, por isso, poetizavam-se como grandes cirurgiões. Por vezes nos vemos nesta epopeia cuja realidade da época nos deixou estampados o folder da coragem.
Se nossos ancestrais abriam peitos por acessos extensos, com cicatrizes grotescas, fizeram por caminhos cavoucados na solidão do desamparo tecnológico e de novos conceitos. Ampla abertura era o único meio que dispunham para observar a cavidade em suas explorações e, como tal, fizeram muito bem, a ponto de nos beneficiar nos momentos mais críticos da abordagem atual - a do vídeo. O próprio Vicente Forte já nos alertava para a chegada da cirurgia vídeo-assistida, mas brandia para que não abandonássemos o velho traçado circum-escapular. Esse prelúdio de Vicente faz-nos crer fortemente que devemos ter muito cuidado com atitudes e palavras - por vezes jocosas -, quando recobramos o tema.
A operação por vídeo, popularizadas como “cirurgia a laser”, agora tirando onda com a robótica, se aproximou do tórax no final dos anos noventa, autorizada por Sauerbruch. O corte do tamanho de um band-aid trouxe no compasso da evolução tecnológica o passo da revolução industrial, mas toda gente deveria saber que incisão, instrumentais e os uivos de outrora abriram caminhos para o olho mágico de hoje, reduzida magnificamente a uma câmara de 5 ou 10mm, cujo contato entre o operador e o órgão acometido tornou-se por meio de instrumentais apropriados, guiados como um joystick
Portanto, faz-se mister uma postura crítica construtiva alinhavada aos cirurgiões de hoje, pois conquista e tempo são almas que se entrelaçam e se admiram. Para nossa relação com esses homens, valemo-nos da passagem bíblica, quando João Batista viu Jesus Cristo e disse: “Não sou digno de desatar as tuas sandálias”.

Os autores são Roger Normando (PA) e Elias Amorim (MA) são cirurgiões titulares da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica.

domingo, 18 de setembro de 2016

Perdidos em Abey Road; achados no Cavern Club

Andando pelo mundo, na lonjura dos meus rincões, vou beirando terras de outros, feito tapuio cosmopolita.  Ao descer do vagão e pisar no chão alheio, costumo atracar meu pericárdio com tachinhas de afixar recado na parede. Bastam quatro delas nos pontos cardeais e pronto, tá lá meu pericárdio, enraizado naquele pedaço de chão, deixando meu coração se levar no rumo das sensações sensoriais e no semblante da cidade. Os suspiros acompanham cada sístole, e a diástole, para cada sopro de emoção.
Foi assim da última, quando pisei na Liverpool Lime Street, a estação de trem da terra dos Beatles. Tinha vindo de Manchester, ao custo de três pounds, para conhecer o Museu da Indústria e da ciência - aquele da revolução industrial- e também para bater uma bola com Sir Alex Ferguson e Bob Charlton, no Old Trafford e satisfazer a felicidade de meu Danilo, torcedor do Manchester, mas um tantinho distante da história dos Beatles.
Para quem é fã, Liverpool dispensa apresentação: foi lá que tudo começou. Isso já é o bastante para uma passagem - ou peregrinação – a esta cidade britânica dentro de um clássico London Cab, modelo FX-4. Para quem não se importa tanto, Liverpool pode não ser uma escolha turística, já que não tem o charme das pequenas vilas do interior, tampouco a beleza e a tradição das grandes cidades, mas se andarmos por outros bairros percebe-se o ar de vilarejo. Essa atmosfera colimante foi onde se ameninaram Ringo e George Harrison.

Andamos por esses espaços para fazemos o trajeto da infância e adolescência dos garotos de Liverpool. Senti Penny Lane nos meus olhos e na minha audição; Strawberry fields ficaram eternamente tatuados no ponto mais alto do meu pericárdio. A minha respiração parou na paróquia onde está sepultada Eleanor Rigby. Lá Paul e John, por meio do Querrymen, celebraram a amizade. O nome do grupo foi inspirado na escola Quarry Bank, onde Lennon e os integrantes estudavam. A banda ainda existe e foi Paul quem o raptou do grupo, para renascer nos Beatles. A gente tinha a sensação de estar participando do clipe de Free as a bird, nas asas do corvo de Edgar Alan Poe.
Passamos o dia inteiro nesta jornada, mesmo no meu inglês reumático, misturado com tapioca e açaí do grosso. Ainda bem que tinha o Danilo me dando suporte na tradução, do contrário não me emocionaria com a história de In my life.  
Na volta sentamos na cavernosa casa de show onde tudo começou, e tomamos uma Pride a cinco libras, para comemorar o passeio. Depois saímos flanando pela Mathews a burilar souvenirs. Aquelas esquinas não escondem a felicidade de tê-los celebrado e, vez por outra, nos deparamos com alguém de jaquetas e óculos de Jonh, ou algum músico com o corte de cabelo do Paul a cantar Here comes the Sun, revigorados pelo tilintar de moedinhas.
Após a jornada, retomamos a estação. Percebi que Danilo começava a entender a minha geração, bitolada em tanta musicalidade. Mais que isso, ele se viu emocionado diante das pegadas deixadas por Lennon e McCArtney na casa da Forthlin Road, onde Paul viveu com a família adotiva. Considera-se que ali foi o nascimento da banda e reza que compuseram mais de 100 músicas.

A visita é restrita, mas juro que deu vontade de escalar aquele muro e entrar pela janela, como faziam Paul e John, matando aula. Não fiz pelo risco de machucar o joelho, que anda sentindo as dores das estripulias de outrora. Também tinha o risco de chegar lá e ter um espasmo coronariano. Foi melhor assim: enxugar a emoção desse passado com lenços da sonata de Let it Be.

domingo, 11 de setembro de 2016

Perdidos em Abbey Road

He wear no shoeshine...
“Come Together”, do disco: Abbey Road

Já passam das dez da manhã e o frio londrino de final de outono dá trégua. Partimos do sul de Greenwich, pela estação Blackheat, para então pegarmos o metrô no sentido leste e conhecer Abbey Road, a famosa travessia pela faixa de pedestres que ficou consagrada pelos Beatles, em 1969, na capa do Disco “Abbey Road”.
Acontece que, quando chegamos à estação só havia o silêncio do nada – estávamos perdidos em Abbey Road. Com algum custo identificamos uma placa pequena com dizeres: Get back, mas compre seu Ticket to ride até a estação St. John’ Woods, pela via Jubilee. Havíamos confundido a estação com o estúdio. Rimos da gafe e tivemos que suportar o humor londrino e engrossar os arquivos de viajante errante.
Meia volta volver quando, enfim, desembarcamos no sítio certo. Uma chuva fina avisa que um músico toca, indiferente ao alheamento, sua flauta à porta do metrô - por coincidência, Ticket to Ride. Ri pra dentro. Ao lado, um grupo de menininhos loirinhos vestidos de duques acabava de sair da escola e ululavam enquanto o chuvisco crispava. Ouvíamos o flautista, com longas tranças de cabelo afro, até a chuva ceder e retomarmos a caminhada até aportar, de vez, no destino certo. Abbey Road estava na próxima curva à direita, esperando-nos há quase 50 anos.
Por vários minutos, sentado no muro baixo e apreciando aquele movimento, em ponteiro de relógio tipo Big Ben, eu via naquela travessia os carros respeitarem a vez dos fãs-transeuntes. Entre tantos, esseunzinho, pensando naquela imagem "bitouniana" tão urbana.
Guimarães Rosa, em "A terceira margem do rio", relata que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Apesar da trepidação da partida e do freio estanque da chegada, é na travessia que nos fazemos gente para superar obstáculos não só pra memória em nossos slots cerebrais, mas pra sentir emoção, tormenta ou mesmo o labirinto da caminhada.
Calculei essa travessia como um simples topógrafo, ou seja, de algum ponto equidistante entre a partida e a chegada, desde que coubesse na minha geometria analítica que aprendi na cozinha de minha formação básica.
Talvez Abbey Road, na outra banda da terra, represente a travessia mais popular da historia da humanidade, se olharmos os pés descalços de Paul na capa do álbum. Não que Ringo, John e George estejam soberbos com seus pisantes, ou representem o dilúvio de nossos inconsistentes desperdícios, mas pés descalços sobre asfalto representam desassossego, desenxabimento, eterna inquietude de nossa jornada e dos que se arvoram a costurar desafios com as mãos da tecnologia ou com as próprias mãos - e pés -, deixando-se ser embrulhado pelas malhas abertas do desafio.
A jornada desse roteiro londrino, a cada passo serve para rever, feito os caminhos que os levaram de Liverpool, ou do Cavern Club, que existe em cada ermitão que nos domina e nos arrasta pelas frestas do espaço viscoso do subsolo da alma.
Mas o que vale mesmo, de permeio, são as ilusões escondidas em Strawberry Fields, que funcionam como combustível para a travessia, o mesmo que nos leva a Penny Lane e nos deixará descansando ao lado de Eleanor Rigby, feito o que não fomos e que ficou nos sonhos alados.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Brasil e Argentina: de golpe em golpe, que venha o povo

Marcha da Resistência está de volta depois de 11 anos Foto: Erika Morhy

Enquanto o golpe de estado se consumava no Brasil, neste dia 31 de agosto de 2016, eu terminava de escrever matéria sobre a extensa queixa por repressão de movimentos sociais argentinos no marco do governo neomenemista de Maurício Macri. E nesta primeira frase da postagem já estão embutidas várias concepções muito pessoais, claramente. Ainda que esteja disposta a discutir sobre cada uma delas, tomar partido também é necessário e quase inevitável.

É uma tolice enorme dizer que há quem queira politizar tudo. Ora, ora. Parece que é preciso então aclarar o que significa política, porque o que de fato não há é algo despolitizado nesta vida. E devemos estar bem ajambrados neste contexto.

Admiradora da nordestina Cátia de França, posso parodiar e dizer que, sim, minhas tristezas lavam pratos. Escutem “Ensacado”. É belíssimo. Tenho vivido muitas delas e não posso deixar de cuidar do cotidiano mais trivial. Ainda bem que posso fazê-lo, ainda que preferisse nestes momentos ter alguém a meu lado.

Feito estes convites, deixo essa amadora imagem que captei durante a primeira Marcha da Resistência depois de sua interrupção em 2005. Ela começou a ser realizada de 1981, para fazer frente ao governo ditatorial do país, e é retomada agora com a adesão de trinta organizações identificadas com o kirchnerismo, sob o lema “Pelo direito a trabalhar, resistir sem descansar. Cristina no comando”. Como é tradição, foram 24 horas de protesto em frente à casa de governo, mas desta vez reclamando contra um dos vários e graves problemas pelos quais vem sofrendo a Argentina desde dezembro, que é o desemprego em massa – depois de um grande lapso temporal, o macrismo informa que o índice é de 9,3% no segundo trimestre; há seis meses, estava na casa dos 5,9%. Faziam 7 graus, 5 de sensação térmica, debaixo de chuva e vento inclemente.

O presidente Maurício Macri teve a audácia de chamar de transtornada ("desquiciada") a principal dirigente da organização, Hebe de Bonafini, de 87 anos de idade. Pois o que eu vejo, dia após dia, é que transtornado está o país, ou quase todos neste país, exceto os poucos que se beneficiam de suas medidas neoliberais, excludentes e covardes. Mas esses transtornados estão no legítimo direito de se organizar, de protestar, de lutar por um mundo mais justo. Às Mães, que já foram taxadas de loucas pelos militares, meu mais profundo respeito e solidariedade.

Antes que eu me esqueça, esta a Argentina de Macri é a Argentina de José Serra, que disse em seu discurso de posse no governo do então interino, mas sempre golpista, Michel Temer: semelhante política e economicamente ao Brasil.

De golpe em golpe, que venha o povo!