sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A luz bruxuleante de uma poronga - parte II

 Feito menino que se lambuza com melado assaltado da despensa do avô seringueiro, nalgum canto das florestas da Amazônia Ocidental, eis-me aqui contrito, lacrimejando alegrias imponderáveis, celebrando junto a todos nossos ancestrais, grato pela oportunidade de comungar com esta gente bandoleira que se alimenta de luz coruscante e calor humano.

Quando os espelhinhos e miçangas são postos ali nas bordas da terceira margem, na confluência de um ponto qualquer do espaço-tempo, estou sempre atento. Ora pescando, ora mergulhando, ora descansando nalguma praia, ao amanhecer, colho palavras orvalhadas de profundo senso estético. Lambuzo-me novamente. Abro o coração e a vida toda ao meu redor vem me habitar. 

Corisco, Labareda e outros tantos que riscam no céu e na terra prosas e versos, depositam suas armas, arrancam as roupas e caem n'água. Meninos e meninas, um a um, mergulham de cabeça, uns voando de castanheiras altas, outros vindo em voos rasantes, rio acima, outros se teleportando... 

Poucos se conhecem, mas nos confraternizamos feito criança nos parquinhos da infância primeira quando somos todos livres para amar e dar inocentes beijos babados...

Sigamos entrelaçados, letra a letra, raio a raio, calorosamente irmanados!

(Sabá de Abadia, das Terras de Rondon, contente e grato)

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

A luz bruxuleante de uma poronga

O meu amor se magicou no dia que o arco íris lambeu as pontas do Rio e os dedos do Cristo. Feito esfinge, de braços abertos, mergulhou nas águas salgadas, desaguou preto, retinto - pra devoção dos homens afeitos ao sol da cor e veio varar em boca de rio.

Este dito mundo nasceu do abraço entre o rio e floresta, lá pelas ilhargas do rio Acre, donde me vi pedaço de gente carnificado sobre osso. Depois esses dois mundos, floresta e rio, se amaram, se encantaram, frutificaram em seres, mangues, mitos e nas ocas e malocas dois curumins brotaram feito gente grande de minha mistura afro-disíaca. Hoje eles ganharam mundo na barcarola daquele Acre-manifesto, a bem do amor e do conhecimento.

É desse mundo que venho, de mistureba de cores - é o mundo que tenho guardado, imaginado, imaculado, que serve de porto quando a noite de sábado chega imprevista e tudo que resta é beber um vinho e assentar sobre o colo da terra que, feito mãe, estende o abraço pro filho que berra e se esconde dentro dos poetas e dos sofrimentos alheios...

Venho aqui, afeito à poesia de Corisco, para falar deste mundo alheio e do abismo que alberga o sofrimento, que se esvoaça no pensamento: “O abismo olha de volta, com uma flor nas mãos.”  

Há um lustro, subsidiado por essa poesia de Corisco, que desferi de meu parabelo feito devaneio pelos renováveis palimpsestos atemporais, assim como pelo pergaminho de Sabá de Abadia e pela alegria de Zabelê, criei uma lista de transmissão para fins de desejar bom dia: bom dia!

Inicialmente era uma forma de dar bom dia aos, aos sábados. Depois passou a incluir a sexta, assim que os primeiros grânulos do sol abraçavam a minha floresta, até findar em domingo. Na medida do possível, sempre muito cedo. Cognominei de Bando de Corisco em homenagem ao poeta, que vive escondido nas redondezas, e que me batizou de Labareda.

A coisa foi crescendo e me absorvendo. Fui pondo mais amigos que respiram literatura e a lista foi ganhando megabites, giga e tera - tomando fôlego e virando rotina. A cada um deles foi sendo batizado com a alegria que merecem: Os nomes seriam uma forma de imitar “Grande Sertão: Veredas”. Fui sendo consumido pela poesia, pelos incrementos pontuais de Sabá e por aqueles que arvoravam a escrever para nossa bandoleiragem. Cada vez mais ficou puro-malte conversar com cada um que responde às postagens.

Não sou da poesia, mas em algumas oportunidades, como esta, Labareda se verga pelas letras e posta aqui e ali um modesto texto. É quando desopilo de minha rotina escaldante, agora recheada pela pandemia.

Já tem tanta gente, que perdi o controle. Vez por outra mudo o telefone e acabo perdendo alguns números e a lista fica desfalcada e emudecida de pessoas que tanto estimo. Nesses cinco anos, perdemos Zabelê para um entupimento nas coronas e o Paulo Bandeira para o abecedário do AVC, mas a lista também ganhou ilustres e virtuosos ligados às letras. Alguns músicos, como o Nemequi e Nilson Chaves. Sim, o Nilson, que sempre estava participando, enviando sinal de positivo, aprovando cada texto e cada resposta. Nunca escreveu, mas sinalizava.

Certa vez, no meio da pandemia, ele me ligou para pedir ajuda sobre alguém que precisava de meu estetoscópio - alguém contaminado pelo Corona. No final da ligação, ele me perguntou se aquela lista de transmissão havia acabado, pois nunca mais recebera os textos. Ele fora um desses que acabou escapando de minha atenção.

Fiquei apequenado, porque jamais imaginei que ele fosse sentir falta de nossas postagens, afinal, o Nilson representa claramente a voz da Amazônia, pois suas canções voam por esses recantos, entre floresta e rios.

Sei que nestas próximas semanas o Nilson não estará nos encontros do bando, mas queira ele saber, ao ler esta, que estaremos orando para que logo se recupere e abandone aquele vírus, pois o Bando tem a certeza absoluta que porá tapioca e farinha d’água no caldo da bandoleiragem e seguirá firme pelas ribeiras da poesia destemida de Corisco.


domingo, 8 de novembro de 2020

Passeio dominical de um apanhador de mangas.

Não me venha com loxias! 
Conselho que não entendo, 
não me praz: é agouro!
Guimarães Rosa, em: "Urubuquaquá, no pinhém

    Recebi de um amigo, neste domingo, ainda cedo, um texto do excelente Alexandre Garcia sobre a pandemia. Craque com as palavras, Garcia é capaz de driblar nossos neurônios com frases estonteantes e fazer gols de letra: “higiene neurótica impede que o corpo crie anticorpos”.

Mas não é pelo fato ser craque que eu não possa roubar-lhe a bola, mesmo que tenha que dar uma canelada - ou uma caneta. Faz parte do futebol; é do jornalismo.

Recebi o texto quando já estava de volta para casa nesta manhã de domingo, após passar visita em meus pacientes operados e em alguns amigos que foram infectados pelo SARSCoV2, mas que andam pagando uma etapa no CTI e Unidades Intermediárias.

Deixei aquele texto pregado na tela do computador e saí para dar a caminhada. Nesta época gosto de voltar pela Generalíssimo para apanhar mangas que vão ao chão e se debruçam sobre as calçadas. Juntei umas cinco entre bolso e a própria mão. Pra semana já tenho boa sobremesa.

Enquanto juntava as mangas cegava-me a imagem do texto. A dúvida era hamletiana: respondo ou não. Será que meu amigo ficaria aborrecido... O Alexandre sei que não, pois ele já deve estar acostumado a ler estes escritos das cavernas e levar botinadas de zagueiros sem recursos nas letras, tal como eu. Mas queria mesmo era falar ao amigo, que segue enclausurado com RT-PCR positivo para o dito-cujo. Diga-se: está enclausurado para não contaminar mais ninguém.

Então juntei umas palavras toscas e uns pensamentos de jogador-sem-recurso e pus no meu alforje, que carrego à sombra da ciência. Decidi responder ao amigo.

Segue...

O Garcia escreveu um texto jornalístico, não um texto científico. Isso é a primeira coisa que vi, apesar de ter feito poucas referências a artigos. Mas escreveu com uma primazia que certamente deve ter deixado meu amigo desassossegado. Tem mais: ainda escreveu acima do cabeçalho com esferográfica: “eu já sabia desde o dia 19/03/2020”. Pergunto por onde anda a verdade e essa tal sabedoria embasada no texto jornalístico.

Como o meu lado dominante é a ciência, sob a base socrática “Só sei que nada sei”, nem por isso deixo de ler outras coisas que representem o pensamento da humanidade. Pus-me, sem infectar ninguém, a buscar saber o que é SABER ou VERDADE, nesse terreno baldio da epidemia.

Repensar todos os caminhos percorridos pela ciência ao longo de tantos séculos, assim como leituras filosóficas, era minha missão quando chegasse em casa. Lá terei cancha para rever o tema. A começar por Karl Popper, fundador do cientificismo, a Mario Bunge, que conceituou cientificismo como “a concepção segundo a qual a investigação científica é o melhor modo de se assegurar um conhecimento factual preciso”. O cientificismo vem do positivismo lógico como braço do Iluminismo, na incessante busca da razão. Sou fã não só desses dois estudiosos, mas também de toda corrente positivista fundada por Augusto Comte, cuja razão, sob o pêndulo do Garcia, mais parece loxia, se consultarmos o léxico de Guimarães Rosa.

Portanto, voltando a apanhar mangas, posso dizer que a dita-verdade apregoada no texto em epígrafe, não é absoluta, independente de não discordar, mas ver os amigos de futebol olhando pelo canto do olho para o tubo, ou seja, à beira da entubação - ou da cova, como ele mesmo cita – me faz rever as verdades daquele texto. O que precisamos, de fato, é de um registro científico acerca do tema, ou seja: vamos sendo imunizados pelas ruas ou preferirmos nos trancafiar em casa a esperar a vacina. Mas não é só ciência por ciência, é pôr o registro do Campelo em parelha com uma revisão sistemática, ou outro pesquisador, para se tirar conclusões do que é melhor.

E sobre as máscaras. Perguntei ao prof. David Normando, da UFPA, dada nossa convivência bem próxima e que recentemente publicou um artigo internacional de revisão sistemática sobre o uso de máscaras. Ele me respondeu o seguinte: “Prefiro a filosofia do só sei que nada sei”. Completou: “Estou cansado e até impaciente com o descarte da ciência.” Embora seja um pensamento de Sócrates, a frase é um trocadilho proposital com Reneè Descartes.

Mas tudo bem... É jornalismo e o dom de conseguir driblar os pensamentos com as palavras só pertence a craques. Entretanto para ele me fazer acreditar precisamos pesquisar e a pandemia criou um campo com arquibancada bastante adequado para isso, mas o que fazemos é apenas negar a ciência, ou seja, deixar a arquibancada vazia de verdades. Precisa-se das revisões sistemáticas, se tiver, e citar outros estudos. Neste casos, para mim, estamos abjurando a filosofia positivista.

Se chamarmos as universidades para produzir essa resposta, quem surgirá será Drummond: “Minas não há mais, José, para onde...”. Porque  não há pesquisa e aí não posso desdizer o que o Garcia escreveu, mas me dêem o direito também de desconfiar, pois do outro lado tem o humanismo, irmandade e um bando de gente jovem no meio da rua, pagando uma etapa nos hospitais para serem imunizados em doses cavalares, sem direito a pinote - Aí ninguém merece chupar essa manga!

sábado, 7 de novembro de 2020

Encontros e desencontros, parte III

 Se o "amor é um fogo que arde sem se ver" não desacredito de mais nada! Fogo que cauteriza, que faz ferida cicatrizar. Amor e perdão conjugados, como boa receita de viver. 

O amor à vida - nossa e alheia - torna-se aventura nos ensaios poéticos do Corisco e do Labareda. 

Um risca o chão com o giz mágico já provado por Zé Ramalho e provoca o outro para trocar figuras poéticas. 

O outro saca o punhal da palavra e revolve mundos e fundos, delicadamente, pois evocar passados idos, porém fincados na memória, é desentranhar relíquias que merecem carinho antes de serem expostas... 

Do baú destes dois tem de tudo. Muito mais coisas que o regateiro do Alayde tinha a oferecer. Coisas etéreas, do reino da imaginação, que se tornam reais como rapadura ou melado. Adoçam a vida e dão sustância! 

(Sabá de Abadia clamando por dias mais amenos em que a poesia nos embriague e faça morada em nosso coração). 

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Encontros e desencontros, parte II

            Ontem, ao desfolhar Corisco, revi meu passado às margens do Envira, das terras de Galvêz Imperador. Foi como lambesse a pele dessa infância cheia de perebas, mordida de pium e rasgos da rua - e ainda sentir gosto adocicado.

Remeti-me ao passado no interior do Acre, acreditem, pois é bem difícil frear esse oração da infância, que descarrega todas as sinapses da candura ao refazimento dos dizeres de Corisco. Nos refazimentos, há sempre uma das minhas pernas procurando a do Saci; a Matinta Pereira, que sempre me fez medo em noites de alagamento, ou mesmo o temido Mapinguari, que se escondia entre uma touceira e outra quando íamos apanhar goiaba no sítio do seu Guimarães, do outro lado da pista do aeroporto. 

Naquele interior tinha mundo: o terçol era tratado apenas aquecendo a aliança da d. Marina na barra da saia: “difícil explicar essas coisas pros não iniciados”, diria o poeta. Talvez seja essa minha ojeriza ao “ralo-ruim”.

Então... Por desadestramento literário, surrupiei este do Corisco, cuja infância beirava a minha, a de Tom Sawyer, Pedrinho do Sitio, Huckleberry Flinn ou mesmo Oliver Twist e David Copperfield. Todos eles dormem no interior de semelhanças... ou no sonambulismo de Manoel de Barros: “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”

No meu quintal de vestígios, o Mississipi de Sawyer também se junta ao Envira do Orleilson. O Tâmisa de Oliver se converte no Juruá e se estica até o Purus do meu portão, que ficava confronte a uma praça, cujo coreto servia de palco para encenarmos nossos sonhos. Naquela Macondo, tudo virava a mesma água, o mesmo banho de açude, rio ou igarapé de quando a gente pulava da ponte arriscando golpe na testa ou mordida de Surucucu-Bico-de-Jaca.

Como então compreender que pelos raios dessa infância nos encontrávamos com todos esse filhos do imaginário de Dickens, Monteiro Lobato e Mark Twain. E os castigos de minha mãe, combinado com o nosso pai, mas que seu Martins, vizinho que não tinha menino, sempre ficava aguardando A volta à rua com picolés de graviola. 

Eu, particularmente, me dava muito bem com quase todos daquela infância, principalmente os da boleiragem: o Chico Boca Preta (que já soube que anda por Belém), os gêmeos Cosme e Damião, assim como o Zé Antonio - que hoje faz parte do bando. Alguns tinham nomes esquisitos, como o Orleilson e o Kieffer, hoje o prefeito da cidade, mas quem me intrigava mesmo era o Mim. Sei lá donde veio esse apelido, assim como o Mauro Macaxeira, filho de um extrativista de borracha, que não se misturava com a nossa raça vira-lata.

Dali fiz o tesouro da minha infância, junto dos correligionário Toninho formiga, Paulo Ieiê e Marcelo Louro Cor de Bosta. Era dali que partíamos em expedições com o Escurinho, Julio Verne, Elesbão, Victor Hugo, Luís Camiranga e Miguel de Cervantes no rumo dos igarapés, furos, praias, praças e o rio Envira da memória.

Bom também era esperar o Alayde, na beira do rio. O Alayde era um desses navios que vinham de Manaus, varando o Solimões, até bater no porto, afugentando as pescarias de Mandim e Piranha. Vinha em março, quando as águas subiam. Ali tinha açúcar, sal e melaço por um bom tempo; funcionava como um supermercado itinerante, e se chamava regatão. Segundo o padre Renato, ainda antes de casar: herança do ciclo da borracha.  

Por fim, Corisco estrela-se em poesia: “Quando a lua, que iluminava os esconderijos, dava aviso que estava chegando, era hora de engavetar os sonhos até que o dia seguinte nos permitisse novo passeio pela imaginação."

Obrigado, Corisco. Guardamos de ti a poesia que o mundo insiste em esconder. Se pudesse te pedir alguma coisa, pediria para que tempo fosse lento toda vez que escrevesses; para que o tempo se juntasse em torno de tua poesia e rezasses pela planura da vida e daquele passado.

Labareda.

Encontros e desencontros

Difícil explicar essas coisas pros não iniciados. 

Eles jamais acreditariam que o Mississipi se junta ao Caeté pra formar Ajuruteua, Picanço, Mboiasukanga, ... Jamais.

Como então compreender que nós, moleques de Benquerença, nos encontrávamos com Tom Sawyer no rio do Cereja, no Curro, rio da Serra, D. Henriqueta, Aprijo, Pedro Pretinho, ... todos fugidos de alguém: ele da Tia Polly e nós dos castigos da Profa. Maricota, que tinha todo apoio dos nossos pais.

Eu, particularmente, me dava muito bem com um amigo do Tom, que ele chamava de Huck e eu de Fino, porque só quando o tempo me fez adulto eu entendi que o nome dele era Huckleberry Finn; complicado demais pra quem só tinha amigo Bené, Zé, Caíca, Sabá, Parú, Caga-Osso, e o máximo de esquisitice era o Ludisvalco, sei lá donde veio esse apelido.

Por sua vez Tom gostava muito do nosso Totonho. Coisa que só se explica pela atração que os marginais sentem um pelo outro. E, por favor, não confundam marginais, que vivem às margens, com criminosos. As margens têm lugar pra muitos e quando escasseiam, ou lotam, logo surge a terceira.

Pois é, vocês podem perguntar de onde nos conhecíamos; simples meus caros watsons, do Tesouro da Juventude. Era dali que partíamos em expedições com Mark Twain, Verne, Dickens, Hugo, Cervantes, Lobato, etc...pelos igarapés, furos, praias, praças, velas e vielas de Benquerença. 

Quando a lua, que iluminava os esconderijos, dava aviso que estava chegando, era hora de engavetar os sonhos até que o dia seguinte nos permitisse novo passeio pela imaginação. 

Não quero parecer saudosista e muito menos um cabôco lamentoso, mas tenho uma forte impressão que o Mississipi e o Caeté andam um tanto desencontrados dos moleques de hoje.


Corisco.