segunda-feira, 28 de março de 2016

Ivete

Ivete. Eu admiro Ivete desde que a vi pela primeira vez na escola da minha filha. Eu havia passado por ela na rua, enquanto caminhava para buscar Helena. Ivete estava sentada no chão, na calçada perto do colégio. Ela vendia incenso. Negra. Corpulenta. Cabelos trançados. Rosto sereno e simpático. Trocamos algumas palavras durante a espera pela abertura do portão e soube, dentre outras coisas, que ela tentava uma vaga para a filha em uma escola mais próxima do seu trabalho, porque a falta de vaga no refeitório do “Bernardino Rivadavia” inviabilizava as tarefas dela. Eu não havia pensado em trocar de colégio, mas insistia pela abertura de vaga. Ir quatro vezes ao colégio durante o dia, de fato, é bastante inconveniente para a rotina diária. Conversamos sobre o uso de turbantes, ela mostrou fotos das tranças que faz nas praias. Só descobri seu nome no segundo dia de conversa. Perguntei como andava sua procura por outro colégio e ela disse que seu marido, finalmente, conseguiu uma vaga no refeitório da escola. Tudo resolvido. Disse também que vendia coisas lindas para as crianças, como meias. E me mostrou alguns pares. Vi que não tinha nenhum para os pés de Helena, justifiquei e ela confirmou quando viu os pés da minha pequena grande garota. Nesse meio tempo, ela me contou que era da Libéria e haviam sido colonizados por norte-americanos, por isso falava inglês; ainda que já estivesse adaptada ao espanhol há oito anos. Disse que eu deveria conhecer a África, tanto que gosto de turbantes, e que eu deveria pedir a Deus que solucionasse a falta de vagas no comedor. Eu senti muita sinceridade, nenhuma ironia, na sugestão dela. Ivete contou que seu marido solucionou tudo, porque não a queria ver vendendo coisas na rua enfrente à escola da sua filha. Ele dizia pra ela que a filha sofreria chacota dos colegas... ... ... Ivete disse ainda que se sente sufocada com tantos prédios, em Buenos Aires. No seu país, respira melhor o ar que a natureza oferece. Eu comparei à Amazônia, onde eu também podia encontrar lugares maravilhosos para me refazer. Eu e Ivete sempre conversamos na porta da escola. E depois seguimos nossos rumos. Tão distantes e tão próximos.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Tudo está cravado na memória


Tem espaço para repudiar a violência contra as mulheres? Tem, sim!


Tem espaço para criatividade de cada um sair às ruas? Tem, sim!


Tem espaço pra todo mundo.


Todo 24 de Março, desde que estou na Argentina, sinto uma cuíra enorme para participar da marcha pelo dia da memória pela verdade e justiça. É um marco contra a ditadura genocida, que eclodiu há 40 anos aqui. Respeito minha cuíra. Sempre vou. Este ano, houve um clima especialmente raro. Primeiro porque o presidente norte-americano, Barack Obama, deixou seu rastro na capital, onde se concentra o maior número de pessoas nas ruas. Grandes protagonistas dessa luta, representantes das organizações Madres y Abuelas justificadamente repudiaram a presença da autoridade máxima do país yanke, reconhecidamente cúmplice do golpe. Eu também achei um acinte. Mas ele não chegou à toa, afinal, depois de uma década de governo popular, está no poder Mauricio Macri, muito alinhado às políticas norte-americanas. Dias antes da chegada dele já se via cartazes de repúdio nas ruas.

O processo de construção da marcha não contou com o apoio do Estado desta vez. E isso se notou na marcha. E se notou pelo porte dos carros-som, da estrutura de palco e telão, das programações das tv´s Pública e do Ministério da Educação, o canal Encontro. Uma pena. Uma perda. Ainda assim, nenhum passo atrás. É o bordão. E foi seguido criteriosamente. Estavam juntos movimentos da sociedade civil organizada, político-partidários e sindicais. Estavam juntos coletivos que atuam na área dos direitos humanos, de diferentes frentes de batalha. Reconhecia-se cada um. Gente com bebê, com crianças e jovens; gente com mobilidade reduzida. Parece um dia de total cumplicidade, um pacto velado.

Aqueles gritos de guerra que ouvi desde o metrô que usamos para nos deslocar até a Avenida 9 de Julho se repetiram outras vezes nas ruas. E muitos outros também. Cada um a seu tempo. As Madres e Abuelas sempre por primeiro na marcha. Elas são protagonistas desta luta e são reconhecidas como tal.

Minha filha acompanhou um pouco do que já sabia pelo que ouviu de mim e da professora na escola. Observou, perguntou...fez suas leituras. Fomos em busca de um posto do jornal Tiempo Argentino. O diário não sai às ruas desde fevereiro, quando o grupo de comunicação do qual faz parte deu a ordem. O Grupo 23 não paga os mais de cem trabalhadores desde dezembro, nem salário, nem o meio décimo terceiro. Os trabalhadores se mantêm em luta e decidiram fazer uma edição especial sobre os 40 anos do golpe genocida. Fizeram parceria com uma gráfica que também já passou por situação semelhante e hoje é uma empresa recuperada pelos trabalhadores. Foram 30 mil exemplares, em menção aos 30 mil desaparecidos registrados. Quem sabe com a renda os operários da informação não conseguem minimizar suas dívidas acumuladas pela imperícia dos empresários?

O dia também é de felizes encontros. Parece incrível as pessoas encontrarem amigos em meio a multidões. Eu encontrei. E os que eu encontrei também encontraram. “Ela foi uma das seqüestras na ditadura. Foi pra um exílio e teve uma experiência em Cuba que foi retratada para um filme que estréia no próximo dia 7 de abril”, me disse Fábio Oliva.

Eu só tenho a agradecer a oportunidade que sempre alimenta a esperança por um mundo melhor.

Música sugerida: Todo esta guardado en la memoria, de Leon Gieco.

sexta-feira, 18 de março de 2016

À sombra da tapera

O verbo sagrado pelas remotas paragens...
William Blake

Quem de nós, entre uma aula outra na faculdade do largo de Santa Luzia não foi até o PSM realizar uma sutura ou prescrever “uma” Benzetacil? Para muitos, o velho PSM foi o quintal da faculdade onde albergou nossos primeiros passos, ainda quando a chuva do conhecimento apenas respingava nas apostilas da Bettina Ferro ou nos cadernos de Patologia do Ronaldo Araújo - mestres, ambos. Foi tapera onde ouvimos as primeiras dores do alheio, assim como as lamúrias de seus familiares.
Naquela Belém de outrora não havia pós-graduação. Fazíamos o papel do médico residente de hoje, guardadas devidas proporções da comparação. Resultado: muito precocemente abandonávamos o cós das calças dos professores e nos enfurnávamos no PSM.
Vários de nós, na calada das escuras, terminávamos as operações que os cirurgiões começavam, ou, iniciávamos as que eles findavam. Baços e segmentos de intestinos lacerados por bala, faca, eram retirados. Fígados eram costurados. Saíamos com os sapatos tintados de sangue ou com pitiú das apendicites “sufuradas”. E o que dizer dos puxões de orelha da Estelita, técnica de enfermagem de quase dois metros de altura e meio de largura que, por “galinharmos” muito, só falava berrando: “vumbora, vumbora, que cedo tenho Ver-o-Peso”.
Certa vez dois gatunos, fingindo doença, internaram-se, proclamaram assalto e fugiram com pertences de vários pacientes, médicos e funcionários. Denunciados, a policia foi atrás e trocou tiros. Um dos meliantes foi atingido no torso, tombou e virou paciente. Foi prontamente acudido e levado para o próprio PSM e lá encontrou os mesmo médicos furtados. Atentos, eles prestaram o atendimento e o dito sobreviveu -mas sem devolver os pertences. Em contrapartida, teve que deixar quase dois litros de sangue no frasco de drenagem, pedaço do pulmão na mesa, parte do intestino no balde e a algema sedenta no leito do CTI.
Todo pronto-socorro tem histórias perdidas em madrugadas inesquecíveis, mas guarda outras amargas que o fel da profissão sempre destilou. Foi quando certa um catedrático da Unicamp, de passagem por Belém, quis conhecer o tal, de tanto que eu falava em congressos, de tanto que escrevia em publicações científicas... Não passou da porta. Ele se amofinou; eu me acabrunhei.
De uns tempos prá cá aquela velha tapera já vinha se desfigurando à sombra de um passado longevo e memorável a cada grito de dor, a cada incisão. O fim do ciclo ocorreu há oito meses. Um incêndio pôs pacientes e médicos pra correr, e ainda ceifou três acamados que não tiveram como se jogar da janela do segundo andar.
Após oito meses de reconstrução (95 anos de idade), ele volta a funcionar no mesmo loci. Ressurge das cinzas e acaba de ser inaugurado, mas já ganha manchetes tristes em meio a paredes novas, pinturas alegres, chão vistoso e focos com lâmpadas de LED. A reinauguração simbólica foi questionada numa operação - não cirúrgica - que ainda é investigada, e mereceu estampa nos jornais e redes sociais.

Aquela dócil tapera, hoje sinapse da minha memória reativada é, para a maioria de uns tantos, avos de um passado intransferível. Que a sorte atomize-nos o costume de lembrar as páginas embaçadas pelo tempo, ruínas da memória ancoradas na tapera que fez sombra para nosso aprendizado. Assim o verbo sagrado passa por remotas paragens... remotas paisagens.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Estou de volta pro meu aconchego



Clique meu, de amadora e pronto, falei. Ah! Ri muito desses óculos do Pepe.

Teatro da Sociedade Hebraica Argentina. Dia 17 de março de 2016. As ruas de Buenos Aires ferviam a 37 graus. E a fila era grande para entrar no auditório, meia hora antes do ponteiro acusar o início da aula inaugural do curso internacional América Latina: cidadania, direito e igualdade. O silêncio da imprensa diante da presença de José Pepe Mujica na cidade me causou uma sensação estranha. Sempre lembrava da presença avassaladora do ex-presidente do Uruguai e...

O salão do lado de fora estava preparado com telão e amplificador para garantir acolhida a quem não conseguisse lugar no plenário da casa fundada em 1968. Gente ao meu redor guardava lugar para outros que, em tese, estavam por vir e eu não sabia se era certo ou errado deixar as pessoas presentes em pé ou não enquanto isso. Os privilegiados chegavam a seu tempo. Entre eles, o candidato da Frente para a Vitória a prefeito da capital da nação, Mariano Recalde. Tão bonito quanto nas peças de campanha.

Helena coloca nos meus ouvidos a música Tá Tranquilo, Tá Favorável. O bordão eu usava sem nem saber que era um funk e a falta de ar-refrigerado dizia pra mim que não tava mole, não. Sindicalistas se reconheciam e se cumprimentavam longamente. Uma das responsáveis pelo curso é a uma faculdade criada por iniciativa de 40 organizações sindicais, a Umet.

O burburinho já se notava mais alto. As palmas eclodiam às 16h30. Era tempo de começar. E minutos depois os aplausos eram para o simpático Pepe, de mãos dadas à sua companheira e senadora Lucia Topolansky. Feições suaves e meigas, pisada firme. Gostei de escutar de Pablo Gentili que agradecia a ela em especial, porque tem seus méritos próprios na luta por um mundo melhor, ainda que tantas vezes esteja como a parceira daquele esposo posto à prova.

Hipnotizei com aqueles dois algodõezinhos embelezando o palco até o fim da tarde, sob sequências de euforia do público. Até porque... o discurso era pra isso mesmo, era uma animação política, um jorrar de flores de esperança, um sopro de inspiração.

E eu vibrei quando uma das moças da organização do evento se sentou numa cadeira sempre apontada como ocupada. Antes que a dona do trono repetisse para a milésima pessoa que não podia, a moça retrucou qualquer coisa baixinho e ambas ficaram caladas lado a lado.

Uma hora de conferência. Uma despedida poética levantou suspiros engasgados quando aquele senhor disse que se sentia como um jovem, mesmo à beira do fim.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Geração Smartphone II – a infomaré

                                                                                                                                                        Eu quero entrar na rede 
                                                                                                                                                                pra contactar 
                                                                                                                                                    os lares do Nepal, 
                                                                                                                                                       os bares do Gabão... 
Gilberto Gil, em: Pela internet

Semana passada Amaury Dantas escreveu, ambientado no metro quadrado de um elevador, a relação entre os Smartphones e essa geração de adolescentes. Dois cirurgiões experientes, Hamilton Petry (PUC-RS) e Rami-Porta (Universidade de Barcelona) e a jornalista Erika Morhy (Buenos Aires-ARG) atinaram para o tema, n´outro lado da linha.
E o que esta contra-geração poderia esperar desses dispositivos? Gilberto Gil se oporia a Bob Dylan e diria que a resposta não vem soprando no vento, mas nos gigabytes que compõe as velas da jangada que veleja nessa infomaré.
Foi na vazante da maré, às margens plácidas da baia do Guajará, em momento de visitação e laser nos pontos turísticos de Belém que, em 2014, durante um congresso de cirurgia dentro do magno congresso médico-amazônico, que fundamos, no WhatsApp, a rede social CONNECT (Sigla do Centro-Oeste, Norte e Nordeste de Cirurgia Torácica). Conclamamos todos que tivessem Smarts a compartilhar esse novo mundo virtual para ampliar abraços. Começamos discutindo temas gerais a casos clínicos mais simples.
Salvo engano foi de Natal-RN que se postou o primeiro caso complexo, sobre cirurgia de costelas, empregando a técnica do simpático Jean-Marie Wihlm, francês que vez por outra está entre nós. A interatividade da discussão, com participação dos diversos cirurgiões espalhados pela floresta, sertão e cerrado ficou interessante e ganhou amplitude clínica. Mais casos vieram e acabamos descobrindo uma fonte farta de aprendizado e, acima de tudo, de convivência saudável.  Só não ficou mais atraente porque sempre aparecia uma latinha de cerveja no meio da discussão quando a sexta-feira vergava à frente.
 Reciclamos a latinha. Criamos um segundo grupo, o CLINICAL CONNECT, com os mesmo atores, porém com enredo fechado para discussão clínica - para não se perder o foco na medicina. Elias Amorim, do Maranhão, abriu a sessão. Aproveitou e pediu a inclusão da poesia sutil. Sem perder fôlego, o grupo seguiu a plenos pulmões. Hoje vários casos são discutidos semanalmente e a discussão pega vento ao baixar vídeos, fotos, radiografias e artigos científicos.
O baluarte do grupo é Manoel Ximenes, de Brasília, 81 anos e dono de uma ativa participação, dando oportunidade ímpar de abençoar a todos com sua experiência. Mas a candura da rede é embalada por Paula Ugalde, baiana de coração-pulmão, mas que hoje é professora e cirurgiã da Universidade de Laval (Quebec-Canadá). Ela sempre está enviando casos instigantes com decisões mirabolantes e uma disposição inebriante, já que é uma das expertises mundiais na área da tecnologia e avanços em cirurgia.
Assim vamos injetando ares em nossos Smartphones, sem dispensar sequer o sagrado domingo, as horas de descanso ou mesmo o metro quadrado do elevador.
O fato é que desde a revolução industrial, a odisséia da tecnologia muda como o ritmo do mar, que agora veleja nesta vastidão das redes sociais a bordo de um Smartphone, sem exigir senha e senilidade. Fatal, mesmo, é olhar a biruta e saber rumo do vento, para que se possa ajustar as velas e seguir viagem. O resto é sombra criptografada do passado.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Geração Smartphone

                                                                                     Amaury Dantas, médico e escritor

Entrei no elevador e encontrei duas adolescentes conversando. Como todas adolescentes, belas, bonitas e agitadas. Uma dizia não acreditar em políticos, são todos ladrões, bandidos. E a outra, ainda que não parasse de mexer no celular, balançando a cabeça, concordava plenamente. Intruso, perguntei: Quer dizer então que nas próximas eleições vocês não votarão em ninguém? Espantadas, entreolharam-se, e uma disse: Meu voto é nulo. E a outra ficou calada com sorriso impune.
A viagem no elevador foi rápida. Chegando ao térreo, como bom cavalheiro, abri a porta e as damas saíram com seus whatsapps e cabelos esvoaçantes. Parece que iam para academia de ginástica.
Fiquei pensando o quanto a juventude vem sofrendo sem a percepção exata das responsabilidades do estado, diante das trapalhadas do governo e sem se dar conta do poder da sociedade. Afinal, estado, governo e sociedade são entidades diferentes e nem sempre seus conceitos são bem compreendidos.
Gostaria imensamente de ter-lhes dito que fora da política é impossível sonhar com mundo mais justo e democrático. Que sem democracia, sem estado de direito e sem eleições livres, jamais haverá possibilidades de mais cidadania, educação, emprego, melhor distribuição de renda e, por conseguinte, menos corrupção, violência, autoritarismo, assaltos, sequestros e mortes.
Perdi oportunidade de dizer-lhes que nenhuma forma de ditadura vale a pena porque castram a liberdade de opinião, de expressão, de associação. Já vimos esse filme. Já vivemos isso. Mas elas, não. Votar nulo ou branco é tolice, é omissão. 
Queria também que elas soubessem que o romance Cinquenta tons de cinza é uma porcaria. Muito melhor ler o Pssica, do nosso Edyr Augusto, genial; que Umberto Eco, do Nome da Rosa, falecido na semana passada, é maravilhoso; que seria muito bom lessem a  entrevista que D. Erwin Kraütler – Bispo da Prelazia do Xingu – concedeu ao jornalista João Carlos Pereira, testemunho de humanidade, lucidez e coerência, digna de ser colocada 
em um quadro; e que o poeta dos Estatutos do Homem, Thiago de Mello, está de parabéns, pois acaba de completar 90 anos.
Enfim, não consegui lhes dizer, sem moralismo careta, que a vida não se resume a Big Brothers, Coca-Cola, Smartphones, Calipso e academias de malhação. Talvez na próxima viagem.