sábado, 25 de maio de 2019

Vida rápida

A vida, essa trágica piada,
passa com uma pressa danada.
Não a acompanho como deveria.
O que houve com o tempo e os costumes?
Pra onde foram a mortadela e a moela?
Os "tira gosto" estão saudáveis demais
pra quem busca suicídios a médio prazo.
Fumar já não pode,
beber sem se exceder,
e logo logo o câncer será proibido.
A vida está rápida e a morte tomando distância.
As folhas perdem espaço pras telas
e meus dedos não se dão com elas.
Os livros. Ah! Os livros.
Minha última quimera,
minha cidadela,
onde quero enterrar meus olhos,
meus ossos, meus vícios,
os disfarces, artifícios
e me perder de vez
até virar história
contada em noite de chuva,
com barulho de trovão,
quando nada mais restar,
nem rádio ou televisão;
uma história sem palco,
com a chamada terminal:
senhoras e senhores
acabou o espetáculo.

Corisco.

sábado, 18 de maio de 2019

Convite à Morte

Entre.
Fique à vontade.
São cinco horas.
Hora do chá.
Mate, Camomila ou Erva Cidreira?
Açúcar, adoçante ou ao natural?
A Sra. manda. É seu dia, seu momento.
Não lhe acompanho.
Não por falta de educação.
É que acabei de usar um remédio pra dor,
e o doutor disse pra evitar contrariedades.
Se estou esperando alguém?
Confesso que pensei convidar Deus pra esse encontro,
mas andamos tão afastados que não mais espero por Ele.
Talvez Ele não queira ouvir a penúltima blasfêmia,
ou lhe causar embaraço.
Renovo o gesto:
fique à vontade,
faça o que deve,
não se apiede de mim.
Sem pressa.
Acabe o chá.
É o tempo do último cigarro.
O que eu quero, por fim?
Recite os primeiros versos da Tabacaria.
Sim, aquela do Álvaro, ou do Fernando;
tanto faz.
O que importa agora?
Faça isso e eu vou.
Sem metafísica.

Corisco

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Beirada de praça

Em Cordisburgo planta-se conversa em todas as beiradas. Juvenal, 88 anos, homem da roça, sentava-se à porta de sua casa, defronte ao Portal Grande Sertão, enquanto eu passeava apreciando o monumento. Dei "bom dia" e ele respondeu de prontidão: "bom dia". Depois completou: "Que dia é hoje?". "Terça-feira", respondi.... "a morte esqueceu de me buscar. Bebi muita cachaça, mas estou achando que isso me fez bem". Vi boa prosa, ali. Sentei. Percebi que era cego: - "Glaucoma", respondeu. Não se intimidou e mandou mais conversa. Farto, levantei, bati a chave e saí. Tive a sensação roseana que "Primeiras estórias" nascera de prosa em beirada de pracinha e não na vendinha de Florduardo.


domingo, 12 de maio de 2019

Política

Hoje não vou falar de política.
Há coisas mais importantes.
Quero falar do azul do céu,
dos pássaros, do sol, do meu chapéu;
quero dizer que a vida é bela
sem esta ou aquela fofoca ou intriga;
quero assistir o passeio das pessoas,
das brancas, das negras e suas cores,
o passatempo dos bares
o movimento da vida.
Mas uma névoa encobre o céu, o sol
e a fuligem sujou meu chapéu;
nos jornais os colunistas ocupam tempo e espaço
com o vestido da madame,
ou o vazio que não fecha o laço.
O preconceito dita os costumes
entre falsidades e azedumes.
O bar secou,
os que interessam sumiram,
e eu me perguntei:
não há nenhuma política
que dê rumo pros homens?

Corisco.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Bendito desconhecido


...quanto ao desconhecido, amigo
posso dizer-te que é o terreno
que prefiro pisar nestes
dias confusos.

Quem tem a bússola da fé
entranhada no coração
nada teme.

Se desorienta quem esquece
de atualizar referências,
principalmente as
do coração.

Perder-se em meio a debates
em que o embate é feito
com espada de papel
nos renova!

Vez ou outra uma ideia intransigente
dura, caquética ou carcomida
cai por terra, fulminada!

Desconhecido é caminho
de descobertas.

Por isso não tenho essas pressas
de aprendizado, de conhecer tudo,
pois gula costuma nos enfastiar.

Vou brincando, assim, de recortar e colar.

Depois troco figurinhas!


(Sabá de Abadia, em dias de euforia por motivo algum, pois assim que é bom, ora porra!).

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Anotações

Palavras são postas a procura de olhares
e não há acaso no encontro de olhos e letras.
A identidade se faz presente antes,
ao tempo das navegações
nas águas maternas,
desde as notas e anotações genéticas
que dia após dia encorpam a alma.
Daí dá-se a paixão,
com a leveza das sedas,
a sutileza das fadas,
o encantamento dos sonhos,
o delírio que a sanidade empresta ao espírito
para o gozo urgente da entrega;
até que um verso torto
lhes cause desconforto
e os olhos, 
entre espantados e assustados, 
nunca mais retomem a paz.

Corisco

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Minha Praça em Bragança

Minha praça não era uma Piaza Navona, São Marcos, ou uma Praça Vermelha, mas pelo menos uma vez por ano ela superava todas as praças do mundo porque tinha preás advinhadores, carrossel, barquinhas, moças que viravam gorilas, muita garapa com pão doce e um desfile incessante das meninas mais bonitas da cidade num trottoir inspirador de poetas e vagabundos em pleno ofício de não ter o que fazer.
Minha praça teve a ousadia de confrontar uma Igreja e um bar que, soberbo e soberano, se impunha numa porfia estimulante com o templo consagrado, posto que frequentados, de forma desbalanceada, pelos mesmos personagens que pecavam em uma casa e buscavam perdão na outra. 
Duas belezas singulares. 
O bar com seus vitrais maravilhosos espelhavam os melhores sorvetes, picolés, comentários e bêbados da cidade.
A Igreja guardava imagens aterrorizantes, como a do Senhor Morto, e apaixonantes como as da Mãe do Senhor, pródigas na expiação das culpas.
No meio, arbitrando a disputa, um obelisco dividia as paixões e impedia a Casa dos Padres de se meter na luta enquanto alimentava amores, desfeitas e taumaturgos em formação.
Meus olhos acompanharam o amadurecimento e o envelhecimento da praça.
Hoje ela não me reconhece mais, mas  continua inesquecível para mim.

Corisco