quinta-feira, 10 de março de 2011

Quando eu era moleque lá em Belém...

Alan Souza*


Quando eu era moleque, há mais de 30 anos, Belém do Pará era uma cidadezinha provinciana. Muito provinciana mesmo: corriam na Capital quase todas as superstições e estórias fantásticas do interior.


Esse período da Quaresma era um dos mais ricos em superstições religiosas - e suas respectivas proibições. Por exemplo, muito colega e vizinho meu achava que se dançasse durante a Quaresma iria ficar com o pé redondo. 

Na Sexta-Feira Santa, porém, é que imperavam os mais poderosos mitos, não se podia fazer quase nada, pois praticamente tudo era pecado: brincar, fazer barulho, ouvir música, era quase tudo proibidíssimo! 

Durante as Três Horas da Agonia (do meio-dia às três da tarde), então, era melhor ir dormir mesmo: até assistir TV quietinho nesse horário era pecado mortal! A gente não saía de casa nessa hora nem pra dar uma espiada n a rua - também, se olhasse não via nada, estava todo mundo trancado em suas casas...

Em compensação, no dia seguinte, Sábado de Aleluia (nunca entendi por quê "Sábado de Aleluia", aleluia por Jesus ter morrido?), tinha um programa que eu adorava: havia o hábito de visitar sete igrejas. Eu sempre gostei daquela movimentação, do furdunço, e como sempre gostei de história adorava ver aquelas igrejas antigas por dentro, as estátuas, as pinturas, a arquitetura...

Na Sexta-Feira Santa tinha também o jejum de carne. O prato do dia era bacalhau, mas só pra quem tinha bala na agulha, pois era caríssimo naquela época, muito mais do que hoje. E sempre que chegava essa época o preço do peixe em geral subia muito, já que não se podia comer outra coisa (lei da oferta e procura!). Aí os pobres jejuavam à força mesmo, já que a carne e o frango ficavam baratinhos, mas ningu ém podia comer...

O que não faltava era estória de assombração nessa época. Perto de casa tinha uma igreja, São Raimundo Nonato, onde se dizia que aparecia depois da meia-noite um fantasma dum padre sem cabeça, rondando o pátio em volta da igreja. Eu tinha muita curiosidade de ver o fantasma, mas obviamente não havia ninguém que se dispusesse a me levar de madrugada na igreja...

Hoje em dia não tem mais nada disso. Todo mundo viaja e não tem tempo de visitar sete igrejas, ou pra se preocupar com o silêncio na Sexta-Feira Santa. A própria Igreja liberou o povo do jejum de carne, e as assombrações fugiram pro meio do mato, assustadas com o crescimento e a violência da cidade grande que virou Belém...


* Alan Souza é paraense, radicado em Brasília e colaborador muito antigo do Flanar. É titular do blog Blogosfera - Mídia e Política na Rede.

6 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Ah, como eu me lembro! Quando criança, eu odiava a Semana Santa porque já sabia, de antemão, que seria aquele inferno: não pode isso, não pode aquilo. E eu nem era uma criança danada. Só queria brincar com meus carrinhos ou, talvez, pendurar bonecos nas árvores do quintal. Nem fazia barulho!
O almoço era sempre pirarucu no leite de coco. Sempre! Delicioso, mas eu também tinha raiva, pois minha mãe dizia ser um prato indigesto e, depois de comê-lo, não podíamos sequer olhar para baixo! Eu me perguntava por qual razão, então, alguém comia um diabo de comida daquelas!
Levei anos para fazer as pazes com o pirarucu, hoje um dos meus peixes favoritos. Sofri esses dissabores na infância, mas hoje, quando me lembro, dá vontade de rir. Não foi um trauma. É provavelmente algo de que minha filha rirá muito, daqui a algum tempo.

Anônimo disse...

Obrigado ao Carlos Barreto e aos amigos Flanares pela homenagem. A Belém de quando eu era moleque foi a melhor época da minha vida. Nessa Belém eu vivi uma infância plena, de moleque mesmo!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Belo texto, professor Allan. O final, muito particular e realista, foi genial. Uma tirada que nos parece fazer rir, no princípio, mas que no final da gargalhada percebe-se o gosto do fel, digo do empobrecimento dos novos costumes.

André Batista disse...

Acho a religiao uma fábrica de ansiosos.

Scylla Lage Neto disse...

Alan, trilegal!
Suas palavras fizeram brotar na minha memória a malhação do Judas, em frente ao mercado de Santa Luzia, algo tão extraordinário quanto incompreensível aos olhos de uma criança.
Um abraço.

Anônimo disse...

Bem lembrado, Scylla! A malhação do Judas era uma festa mesmo, não sei como está hoje, mas a última vez que vi uma, ainda aí em Belém (há uns dez anos), compareci desde o velório do Judas, na festa na Fernando Guilhon (antiga Conceição), na Cremação. E que festança, com direito a aparelhagem e tudo o mais!

Malhar o Judas é uma tradição que os portugueses trouxeram ao Brasil (lá o folguedo é chamado Queima do Judas), e os espanhóis espalharam por toda a América Latina.
Na Belém da minha infância, aos meus olhos de moleque, sempre me pareceu uma grande brincadeira...