“Nesse tipo
de vida é difícil curar uma doença. Ela se instala e não larga mais. Aí você morre”
Fiodor
Dostoiévski, em: “Notas do subsolo”
Esta narrativa poderia sair de “Notas do
subsolo”, de Dostoievski, ou do realismo auspicioso de Edyr Augusto ou mesmo
de Tess Garritsen, médica e escritora californiana com forte temática policial,
autora do extraordinário The surgeon.
Na realidade é um relato extraído de vozes do anfiteatro da cirurgia, vivido
por mãos enluvadas que, juntas, vivem a conter gotas de sangue que escorrem de punhais e
balaços que atravessam mediastinos e flancos.
Dionísio
Maldrán, homem de 50 anos, meia altura, com traços andinos fortes, adentrou
pela emergência cirúrgica do hospital de Miami como um phantom dos subsolos de Dostoievski. Falava castelhano e nenhuma
vírgula de inglês. Apresentava abdome distendido, bastante doloroso e ânsia de
vômito, após ter sido esfaqueado na boca do estômago por meliante no Opa Loka, bairro considerado perigoso.
Após
examinar e fazer algumas perguntas, o médico calmamente desfez o curativo e
percebeu um talho de cerca de três polpas digitais na linha mediana, no abdome. Não pôde aprofundar a inspeção por
conta da dor. Preferiu levar ao centro cirúrgico. Chamou-lhe atenção, como experiente
profissional, a linearidade de corte.
Descobriu-se,
no caminho para sala de cirurgia, a origem equatoriana de Maldrán. Em trânsito
para Nova Iorque, ele dizia que iria morar no Brooklin e viver como handyman em Manhattan. Vivia o sonho de atravessar diariamente aquela ponte que unia duas geografias humanas bastabte distinta.
Após
iniciar a anestesia, o cirurgião, já paramentado, começou a explorar o
ferimento, até perceber que o golpeio era superficial, indo só até a camada gordurosa. Ficou em dúvida se seguiria na operação ou se faria apenas
pequenos reparos, e por ali mesmo findasse a missão.
Mas e a
dor? E o abdome empachado? A curiosidade aumentou, pois o ferimento era
superficial, linear e causava toda aquela celeuma clínica. Mesmo com o ponteiro
das horas espreitando o borboleteio do nascer do sol, o cirurgião, aguçado de
curiosidade, resolveu aprofundar e ampliar o corte. O auxiliar, fadigado, achava
que não, que deveria encerrar a peleja por ali, apoiado pela benção do
anestesista. A sonda, passada pelo nariz até o estômago, retirava apenas algum muco insuspeito Uma fumaça de silêncio embaçava os primeiro raios de sol.
Acossado pela
dúvida, resolveu seguir, como faria qualquer líder, entre os biombos da
emergência. Lá encontrou um estômago tufado, abarcando todo o campo visual. Apalpou
e percebeu o órgão duro, pedrado. Tumor? Câncer? Normalmente o estômago em
situações de urgência fica distendido de ar, oco - jamais consistente daquela
forma.
Ao abrir o estômago com o bisturi pularam várias petecas de Cocaína. Calculara mais de
trinta, mais de quilo.
No meio da
manhã, já desperto e algemado na enfermaria, Maldrán confessou que era "mula" e
fazia parte de uma nova rota internacional, mas passou mal no avião e seguiu direto para a casa de um conhecido em Opa Loka, que
tentou, com navalha e sem anestesia, fazer o destripamento para retirar a droga,
pois o filme “Mestre dos mares”, mostra uma cena e aquilo lhe dera algum
aprendizado. A dor tamanha não permitira que a manobra medieval transcorresse
na calada da noite, quando pensavam que os demônios da cirurgia estivessem distraídos
ou sob pesada narcose.
Ficamos
sempre vigiando, tentando ouvir conversas para buscar
algo que represente a dura caminhada de um cirurgião pelas noites vividas ao
fio da ciência dos desafios. Na coxia dos congressos, às vezes me distraio na
vigilância e grudo a orelha na prosa de um e de outro. O bago dos olhos
esbugalha quando um pedacinho de literatura é encontrada numa prosa frajola entre
cirurgiões de vanguarda, mesmo os amigos que vivem alhures. Neste momento a folha em
branco pede clamor e se torna ungüento para aliviar nossos pruridos e lubrificar
todos os poros de nossas agonias. Eis a biopsia que não sangra: a literária.