sábado, 4 de novembro de 2023

O tubernáculo dos milagres

O vau do mundo é a coragem...

Guimarães Rosa, em: Grande Sertão: Veredas

Duas enfermidades desoxigenam minha humanidade: câncer e tuberculose. Por isso, toda casa que cuida desses enfermos merece gabo, amplexos e apoio. Cognomino tais lugares de tabernáculo da medicina, onde se guarda a hóstia sagrada da cura.

O câncer me fez diferente não só por viver seu cotidiano, mas também por ter lido O pavilhão dos cancerosos, de Alexandr Soljenitsyn. A obra se passa no Ubezquistão de 1950, ao expor uma doença totalmente abandonada. Depois veio O imperador de todos os males, de Siddhartha Mukherjee, já com o olhar contemporâneo da esperança. Obras para se entender o câncer no aspecto histórico, social e científico. 

Sobre a tuberculose não basta A montanha mágica, de Thomas Mann ou o poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, mas também conhecer os sanatórios, que hoje ganham outra feição e abrem leitos para os oncológicos. A tuberculose já chegou à cura medicamentosa; o câncer vem ganhando efeito, mas a peso de custos excruciantes, por isso as apostas seguem pelos caminhos da cirurgia. Da tuberculose restaram apenas as sequelas e alguns casos de resistência a drogas. É quando a cirurgia pede vez.

Outro dia fomos bater em Macapá. Um ex-aluno, o Fábio, me ligou para ver um caso de sequela de tuberculose que desafiava seu bisturi. Ele pôs na sala e, junto com a minha esposa mais o Nicolás, médico-residente do Chile que passava temporada em Belém, pegamos o pássaro de ferro e pousamos na rua da FAB, no Alberto Lima. Quem nos recebeu foi um velho amigo morador da Lagoa dos Índios que, no interstício das horas, desembrulhou o passado estudantil com boa prosa e muita gargalhada.

Na sala de cirurgia travamos batalha. Operação de quase cinco horas. Outra batalha foi contra anestesista - até para isso os coitados dos tísicos levam ferroada. 

Zarpamos de volta, mas a paciente ficou muito grave, apesar do empenho da equipe do CTI. Costumo chamar esses lugares de Tabernáculo dos Milagres. Para tuberculose, Tubernáculo dos Milagres, mesmo que a morte sempre rodeie. Na mesma semana, já em Belém, operamos um segundo caso, também desafiante. 

Quem acreditou que não seria difícil? Cada milagre é uma conta no misericordioso colar de Deus.

Há alguns anos ouvi um aluno me perguntar, ao pé do ouvido, por que só alguns operavam tuberculose. Levei dez anos mastigando esse pensamento. Ontem o reencontrei e ele abriu o jogo: “na realidade, eles empurravam adiante, pois dá muito trabalho”. Sempre lembro de Nietzche nestas horas: E aqueles que foram vistos dançando, foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.

Não é que se goste de operar tuberculose, mas ela é chamamento para o octógono em que usamos a luva de látex para lutar contra um inimigo casca dura. É uma operação mais trabalhosa e requer habilidade desafiante: jogo de mão, perna e fôlego. Por isso, de uns tempos para cá, para enfrentar as provocações da cirurgia da tuberculose, resolvi imputar o pensamento socrático na caneta de Guimarães Rosa: “Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”. Por isso, à luta. 

Guardei a frase rosiana como se fosse cruz e alho, só para nocautear vampiros que vilipendiam os sequelados da tuberculose. Essas orações literárias nos levam a viver com mais músculo para espantar morcegos e sanguessugas e, assim, não sair desse mundo com malfeituras tatuadas no peito. Há de se viver para criar calos e anticorpos, pular fogueiras e afugentar bruxas.

Um comentário:

Abel Sidney disse...

Roger gosta do desafio de enfrentar, de lápis em punho, as naturais resistências que a palavra nos impõe ao tentarmos descrever, pintar ou encantar realidades duras.

Depois dos enfrentamentos das primeiras linhas e já sentindo que estamos avançando, a poesia lança mais lubrificantes na máquina do pensamento. Aí é acelerar, devagar, com o cuidado de não derraparmos nas curvas.

Depois de me deliciar com o aprendizado em torno destes males domados pela verve rogeriana, respiro tranquilo: a literatura, mais uma vez, fez do lápis um meio de produzir conhecimento sem as agruras da ciência. Não é um lápis, mas um desses de cirurgião-pedreiro, quadrado, de esquadrinhar, riscar, planejar... A mão está, pois, calejada e exige o respeito que a antiguidade faz reserva.

Eu, cá das Terras de Rondon, rio com meus botões por saber que o dia está ganho. Debruçarei, ainda hoje, sobre livros em elaboração, mas a alma ganhou o refresco de palavras bem sopradas.

Ave, Roger!

PS: decido, em memória ao velho Normando e velho Billy, meu tio, entrar na torcida para salvar a esquadra cruz-maltina... Vascoooo!!!