A memória de Manoel Amaral e Juvêncio Arruda
São esses dias difíceis menos pela razia do trabalho, e mais pela perda de amigos ainda jovens, dor que nos chama à realidade do quão mais curta pode ser a vida que em si é breve. Nessas horas, confrontados com a iniludível, percebemos o inesgotável das possibilidades que as pessoas possuem para construir a vida numa perspectiva que as honre perante os seus e, por que não dizer, as torne dignas para o futuro do presente, se quizermos ecoar uma das formas com que o notável padre Antonio Vieira lia a história nos setecentos.
Para tanto, os homens devem prescrever-se que tudo no mundo real é uma construção, onde, enquanto tal, tanto existe a possibilidade de avançarmos historicamente para além de nossas mazelas, quanto também é possível repetir-nos enquanto farsa e, pior, como tragédia coletiva. Há tantas certezas quanto enganos e desencantos, frutos todos da grande árvore do fazer humano.
Nesses últimos anos, o mercado cinematográfico tornou a encarar o drama do nazismo na Alemanha, com enfoque sobre figuras fictícias ou biografias enquanto maneira de explicar a mais impressionante revolução de extrema-direita que o mundo presenciou, posto que toda a sociedade alemã e suas instituições (não escapou uma!) foi tomada e refundada na perspectiva de uma ideologia hedionda. São frutos dessa safra cinematográfica alguns filmes como A Queda, Uma Mulher Contra Hitler, Eu Fui Secretária de Hitler e os equivocados a própria maneira O Leitor e Operação Walkíria. Com respeito a este último existem questões ainda mais sérias, como a indagação do por que o cinema tanto seduz-se pelo conde Stauffenberg em detrimento do coletivo conspirador, pondo em segundo plano o papel de figuras superiores que lideraram com astúcia e risco a resistência alemã ao nazismo, um deles com declarado asco à ideologia nazista desde o princípio.
Falo, por exemplo, do general Hammerstein, cuja biografia foi resumida pelo escritor alemão Hans Magnus Enzensberger (Hammerstein ou a Obstinação. Companhia das Letras, 2009). Hammerstein impos-se como uma das figuras mais prestigiadas do exército alemão antes da chegada de Adolf Hitler ao poder. Ético, após receber o cabo austríaco como celebridade política legitimada, preferiu retirar-se da vida pública iniciando uma resistência ideológica ao nazismo junto a setores representativos do exército pré-nazismo, porque depois que Hitler se tornou chanceler outra foi a Wermacht.
A vida deste general não chegou ao cinema, embora tenha todos os elementos folhetinesco necessários a um bom filme. Possuia uma visão geopolítica sofisticada. Era admirado e respeitado pelos generais russos. Desde a primeira hora opos-se ao nazismo a ponto de pedir a reforma. Depois desta manteve influência junto a militares da ativa, estimulando-os a resistir, apesar de adverti-los contra o golpismo que considerava tão maléfico quanto o próprio Hitler, que para ele só deveria ser deposto quando a sociedade alemã compreendesse o grave erro que havia cometido sob pena de, quem desse o golpe, tivesse depois de lutar contra o fantasma do Fuhrer.
Falecido antes da rendição incondicional do Reich, foi intocável apesar de intensamente vigiado pela Gestapo (a família não permitiu honras militares, nem tão pouco que fosse posto sobre o caixão do patriarca a bandeira nazi). Não bastasse essa têmpera de ética militar, Hammerstein com sua personalidade prussiana, tornado aristocrata apesar de origem bastante humilde, foi um liberal no seio da família e com seus amigos. Uma de suas filhas casou-se com um judeu (ele teve de removê-los da Alemanha para Tóquio, onde sobreviveram à Solução Final); as duas outras filhas se tornaram militantes comunistas e mergulharam na clandestinidade (uma delas ainda na Alemanha nazista abandonou a militância e casou-se com um conde, a quem depois abandonou terminada a guerra, imigrando com os filhos para a Alemanha Oriental, onde foi advogada de dissidentes!); dois de seus filhos, oficiais no exército alemão, participaram ativamente da conspiração para assassinar Hitler e tiveram a cabeça à prêmio até o final da guerra; um deles, depois pastor, imigrou para os EUA e militou na defesa dos direitos civis dos negros norte-americanos.
Com toda essa história familiar fica entao difícil compreender a razão do cinema deixar de lado a saga dos Hammerstein, enquanto privilegia figuras periféricas na resistência ao nazismo alemão. Talvez porque exista quem não reconheça que aqueles que lutam por toda a vida por um mundo mais justo, includente e universal, ainda que num átimo, estes sim são imprescindíveis. Ainda que, nesse momento, sejamos o goleiro acompanhado do seu medo na hora do gol.
2 comentários:
Itajaí eis um texto que teria ter escrito.
Alta sensibilidade e senso histórico.
Parabéns! Show de bola de centro avante.
Fica a indicação de uma personalidade histórica para ser conhecida. Parabéns pela sensibilidade.
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