"Que florestas deram estas folhas de papel, ou que trapos, ou que panos bordados? Parte de mim dorme, a outra escreve, mas só no sonho que existe este vento levíssimo que as faz passar, uma a uma, à medida do tempo que a leitura demora. Não tarda que chegue a manhã.
Subir a encosta é também descê-la, ou cair por ela abaixo quando já o pé se firmava na última pedra e o olhar recebia de relance a paisagem escondida. Torna a dizer-se que foi o adormecido casado, para que, por uma só vez dito, se não diga que logo esqueceu, não porque tenha importância. É questão de subir outra vez a encosta, contar uma vez mais com os dedos inconscientes no lençol enrugado os anos da viagem, por, la chegando acima, o pé na última pedra e começar a descer para o outro lado. Serão as paisagens vidas para pintar? Quem só pintou rostos, e tão mal, e tão de nada, poderá aprender alguma coisa de Lorenzetti (Ambrogio)? No sonho, sim, mas só dentro dele, como só nele se deixam ler as prodigiosas folhas, quem sabe se o sexto e verdadeiro evangelho, quem sabe se os escritos perdidos de Platão ou tudo quanto falta da Ilíada, quem sabe se o que teriam escrito os que antes do seu tempo justo morreram? Esta paisagem, porém, está fora e dentro do sonho, é ela própria sonho e sonhador, sonho e coisa sonhada, pintura de duas faces que recusa a espessura da tábua.
Estou murmurando no sonho e registro o murmúrio. Não o decifro, registo-o. Procuro e encontro sinais fonéticos que ponho no papel. Está assim escrita uma linguagem, que ninguém sabe ler e muito menos entende. A pré-história é longa, longa, andam por aqui homens e mulheres entrando e saindo de cavernas e é preciso fazer história que os há-de contar (enumerá-los, narrá-los). Já os dedos inconscientes contam no sonho. Os números são letras. É a história."
Subir a encosta é também descê-la, ou cair por ela abaixo quando já o pé se firmava na última pedra e o olhar recebia de relance a paisagem escondida. Torna a dizer-se que foi o adormecido casado, para que, por uma só vez dito, se não diga que logo esqueceu, não porque tenha importância. É questão de subir outra vez a encosta, contar uma vez mais com os dedos inconscientes no lençol enrugado os anos da viagem, por, la chegando acima, o pé na última pedra e começar a descer para o outro lado. Serão as paisagens vidas para pintar? Quem só pintou rostos, e tão mal, e tão de nada, poderá aprender alguma coisa de Lorenzetti (Ambrogio)? No sonho, sim, mas só dentro dele, como só nele se deixam ler as prodigiosas folhas, quem sabe se o sexto e verdadeiro evangelho, quem sabe se os escritos perdidos de Platão ou tudo quanto falta da Ilíada, quem sabe se o que teriam escrito os que antes do seu tempo justo morreram? Esta paisagem, porém, está fora e dentro do sonho, é ela própria sonho e sonhador, sonho e coisa sonhada, pintura de duas faces que recusa a espessura da tábua.
Estou murmurando no sonho e registro o murmúrio. Não o decifro, registo-o. Procuro e encontro sinais fonéticos que ponho no papel. Está assim escrita uma linguagem, que ninguém sabe ler e muito menos entende. A pré-história é longa, longa, andam por aqui homens e mulheres entrando e saindo de cavernas e é preciso fazer história que os há-de contar (enumerá-los, narrá-los). Já os dedos inconscientes contam no sonho. Os números são letras. É a história."
4 comentários:
ESPETACULAR!!!
Super, Itajaí!
Só um adendo - é o meu livro favorito do Saramago, talvez pelo meu momento histórico quando da leitura.
Tem tudo a ver com "aqueles" neurônios da memória".
Abs.
Saramgo, ficará agora em companhia de Camões, Bocage, Antero de Quental, Frei Luiz de Souza, Almeida Garrett, Ferreira de Castro e tantos outros maiorais da literatura portuguesa. Não mais produzindo novos livros, poesias, contos, crônicas ou peças de teatro, mas vivo como referência para a literatura de outros que virão. É assim que escritores alcançam a eternidade.
E Scylla, acrescento que ao lado do "Caderno" meus preferidos são a "Jangada de Pedra" - onde comparece o fantástico - e o "Levantados do Chão", que ecoa tanto a ideologia política de Saramago quanto suas raízes biográficas na pobreza campesina de Portugal.
Abs.
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