quinta-feira, 23 de abril de 2020

Rapte-me, Onça, ao seu "ne me quitte pas"


Na verdade, o codinome Onça tem face borrada pelo tempo pretérito. Destingindo a face, ele passa a ser entidade ficcional que carregamos no bolso tufado da memória. O Onça que falo é uma inspiração que se deixou viajar ao longo de quase 35 anos de lembranças, quando ainda éramos estudante e saíamos para os interiores com a turma da faculdade: ora assistência, ora diversão.
O tempo covidiano, é um convite para relembrar e escrever tais vivências.
Tem também Ajuruteua, município de Bragança, na conhecida região do Caeté, na beirada atlântica da Amazônia. É terra do poeta Corisco e da escritora e poeta Lindanor Celina. Lindanor, apesar de nascida em Castanhal, adotou a Bragança como pátria, mas depois de ganhar prêmio nacional de poesia, estabeleceu-se em Paris e por lá ficou. Já Corisco, agora em quarentena, costuma ser encontrado nos bares da cidade aos sábados, disfarçado de Hemingway ou Bukoviski. Já me confessou que, dada amizade com Lindanor, chegaram a trocar diversas cartas enquanto ela esteve viva.
Mas, voltando ao Onça e Ajuruteua...
Havíamos chegado do Chavascal no final do dia, quase anoitecendo, após longa caminhada acompanhada de boas risadas. Ficamos hospedados na vila de pescadores, numa construção de madeira bem simples, onde agasalhamos nossas mochilas. A casa não tinha compartimentos, apenas escápulas para armar redes e uma estreita bancada onde colocávamos algumas necessidades. A vila não tinha eletricidade e ficamos sob a luz de lamparina, ouvindo o barulho do mar, que vinha da direção da praia da Pancada.
Dentro da casa, Humberto, violeiro, e Rochinha, na percussão, puxaram uma roda de MPB, enquanto acompanhávamos no gogó. Dois se recusaram a participar da violada e se aconchegaram em seus sonos.
De repente chega o Onça...
Onça era homem com os matizes da noite: bem afeiçoado, forte, dentes alvos e sorriso leve. Era harmonia do lugar. Pediu para sentar e acompanhar a tocada. Vivia com a filha da senhora da casa ao lado, de quem havíamos pedido para nos albergar, vez que o dinheiro só dava pra cachaça e umas pratiqueiras pra fazer de avoado. A esposa do Onça, que tínhamos conhecido pela manhã, tinha lábios arroxeados, pletora facial e dedos em baqueta de tambor. Humberto, que armava planos para fazer residência médica em cardiologia, colocou o ouvido no peito da moça e, pelo ruflar do coração, logo fez o diagnóstico: cardiopatia congênita, provável Fallot - de prognóstico reservado pela idade avançada da jovem. Ela vivia no fundo daquela casa de três cômodos, sustentada sobre tocos afundados na areia da praia. Passava o tempo todo acocorada, comendo pratiqueira e aguardando o juízo final, sem deixar de desfrutar a beleza do lugar através da janela.
Ao chegar e logo sentar, o Onça nos deixou inicialmente aflitos. Depois foi se soltando. Pede copo e começa a entornar nossa cachaça. Enquanto apenas bebericávamos, ele botava uns três dedos da pinga e dava-lhe sem fascicular um só músculo da face. A cada talagada esbugalhávamos os olhos, sem disfarçar admiração.
Seguimos nossa toada...
Eis que rolava Caetano, com “Rapte-me, Camaleoa” e nesse momento, quando ocorrem as últimas batidas, em “Adapte-me ao seu ne me quitte pás...”, cujo nível do álcool já atingia a o bulbo cerebral, saímos emendando numa outra música que nada tinha a ver com a original do Caetano. Na sequência My Boy e o Rochinha seguem complementando a letra num ritmo harmonizado com a sutileza do Onça, a degustar a branquinha. A catarse finda e a melodia é cifrada numa harmonia muito simples.
Quando a gente finaliza a canção, com o refrão “Ajuruteua, amei o teu mar”, todo comemoram, saúdam-se e riem. Menos o Onça, que permanece em seu estado “interestelar canoa”, à sombra de nossos olhares curiosos pelo canto do olho.
De repente, aproveitando nossas apneias, o Onça grita: - ROGER É SOM DOIDO. E logo cai pra trás, duro como uma estátua, levando a cabeça ao chão. Em seguida fica se estrebuchando, como se estivesse num octógono após um cruzado de Ali. Espantado com o grito, fomos acudir, achando que o homem tivesse em coma por uma apoplexia cerebral. Nada! Relaxou e dormiu a noite toda naquela posição desajeitada, a lembrar um Rodin.
Foto de Ananda Varma
Amanheceu e procuramos pelo Onça, mas ninguém o viu. Seria uma visagem saída dos contos de J.K Rowling? De repente, vê-se duas redes ensanguentadas e o chão com pequenas poças de sangue, embaixo dos dois que optaram por dormir mais cedo. Tomamos um susto. Os dois, de imediato, passaram a mão no traseiro, para assegurar que não houve tentativa de golpe baixo por parte do felino. Vimos que no dedão do pé de ambos havia lesões puntiformes, indolores, em linha, que lembravam picada de algum animal com presas. Eram morcegos vampiros, disse-nos a vizinha, comum na região do Caeté.
Nas noites seguintes àquela violada, antes de dormir, os dois não deixaram de dar suas bicadas naquela resto de cachaça que, além de santa, foi abençoada pelo Onça com o antídoto anti-hemorrágico.
Já de volta, tiveram que ir ao posto de saúde tomar a vacina antirrábica, dose semanal, durante um mês. Cada picada no abdome era um arrependimento de não ter visto a onça beber aquela água.

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