domingo, 19 de abril de 2020

Silentio (Por Corisco e Labareda)

O arco que ora construímos neste período de exílio, nas entre-horas das pálpebras semi-abertas, permitiu-nos apreciar, longamente, pela primeira vez, a vida interior. Quisemos ao longo desta quarentena conviver com a literatura universal e científica mais que qualquer outra arte. Ao reconstruir metáforas, diz-se que os momentos foram de puxar cadeira e conversar com poetas sob a sombra das mangueiras que ainda habitam nossas infâncias.
Enquanto discursos falseadores caem e teses levantam em forma de ensaios científicos, em meio ao encovidamento indolente, optei eu por visitar a literatura que havia guardado para o final, quando findassem os trabalhos de artesão da ciência moderna.
Eis que ao começar a ler a última publicação da JAMA, sobre novidades farmacológicas, a campainha toca e desperta este ermitão. Do quintal cruzo a casa pelo corredor para receber o carteiro mascarado: É um poema rascante de meu poeta preferido.
Já nas primeiras estrofes a presença do invisível tornara-se tão presente, que de pronto catapulta-me para outro destino, deixando-me uma presença ameaçadora, silenciosa, fatal: a de um Vírus - que de tanto poder, passo a pôr letra maiúscula.
Sinto-o em cada trisco de vida que me pertence e também nos que se avizinham. Tudo é ameaça: desde o inocente pãozinho que nos aquece e apetece no raiar do dia, ao delivery que chega carregado de fatalidade. Tudo é ameaça: é guerra, é flecha com pólvora destinando meu pulmão a deixar o fôlego a mercê de um fole insuflador de ar.
Minhas vaidades se afastaram e o espelho reflete medo. As ruas imploram pelas buzinas estrepitosas, os xingamentos dos apressados e o mau humor dos motoristas de ônibus que sempre exibiram sua fortaleza de lata em detrimento dos indefesos pedestres. Somos todos frágeis, embora continuemos desiguais, porque o invisível, respeitando a Darwin, sente-se à vontade nos menores atos, e as divindades estão ocupadíssimas no esforço de atender seus crentes, assim como a ciência tem ritmo próprio para esperançar os mortais.
Enquanto isso um condutor amalucado dirige um povo pro abismo. Salve-nos o que restar de razão e lucidez antes que o pandemônio nos sugue para o buraco negro da solidão dos astros.
Estamos confinados, subjugados, engaiolados, enquanto nossos heróis lutam bravamente na guerra da vida contra a morte silenciosa e sem dó.
Mas posso dizer, enfim, ao poeta, que vivi viagens com amigos; sentei ao lado de meus parceiros de escola; caminhei ruas com filhos; deitei à luz do candeeiro com minha amada e abracei os irmãos de sangue antes de me trancafiar.
Porém, depois que o mensageiro deixou esse envelope, cuja marca d’água era um caracol de RNA rodeado de uma coroa de rei, a dita tomou fôlego e pousou na minha narina. Vi-me tal como aquele curió cantador dentro da gaiola de minha infância tenra.
Mas...
“Deixemos de coisa e cuidemos da vida, pois se não chega a morte ou coisa parecida” o silêncio do mundo trafega pela vida em escalas de séculos, explorando as polissemias do verbo to be, ou a viver travessias sem a estrela-guia, rumo ao oeste incógnita, a deixar corpos tombados pelas valas da Lombardia ou em barrancos de águas barrentas que toldam minha visão.
Ao findar a leitura, levantei-me e fui ao muro do quintal, a procurar o eco do sol para silenciar minha tormenta. Dei de cara com “filosofia”, de Salvatore Rosa, exposto na National Gallery de Londres, de memória recente. Nele o fundo cinza representa a tristeza do mundo em relação ao momento. O rosto do jovem, com o olhar fixo diante de toda escuridão, desenha a curva montanhosa da matemática à frente do novo ritmo exponencial. O seu latim exprime a verdade: Avt tace aut loquere meliora silentio. Cai em mim todo silêncio do mundo.
Subitamente vem outra imagem: aquele cartaz da enfermeira, afixada em toda porta de hospital, pedindo silêncio aos enfermos de alma – e de pulmão. Agora, esperançoso, estendemos (eu e o poeta) o pedido aos cientistas de alma e de coração e, se sobrar algum silêncio no coração de todos, vale a poesia de Maria Souza, portuguesa (Universidade do Porto) e Imunologista de 80 anos e poeta. Ela morreu, esta terça-feira, vítima da Covid-19. Escreveu este poema à beira do leito de morte.


Carta de amor numa pandemia vírica


Gaitas-de-fole tocadas na Escócia
Tenores cantam das varandas em Itália
Os mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio
Quem pretendem animar?
As crianças?
Mas as crianças também estão a morrer

Na minha circunstância
Posso morrer
Perguntando-me se vos irei ver de novo
Mas antes de morrer
Quero que saibam
O quanto gosto de vós
O quanto me preocupo convosco
O quanto recordo os momentos partilhados e
queridos
Momentos então
Eternidades agora
Poesia
Riso
O sol-pôr
no mar
A pena que a gaivota levou à nossa mesa
Pequeno-almoço
Botões de punho de oiro
A magnólia
O hospital
Meias pijamas e outras coisas acauteladas
Tudo momentos então
Eternidades agora
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração

Maria de Sousa
3 de abril de 2020



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