sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A casa dos anjos

     Por longo tempo Benquerença foi um burgo apequenado onde o progresso teimava em chegar devagar e às vezes perdia o horário do trem e aí é que não chegava mesmo. As ruas eram abertas na terra pra passagem das vacas e cavalos e os homens aproveitavam os caminhos. As luzes dormiam cedo. As comidas ficavam na banha do porco. A água era do poço amazônico. As retretes no fundo do quintal. As camadas de gente se misturavam como os virados de sarapatel e não se distinguia com nitidez quem era rico e quem era pobre. O máximo de sociologia aplicada aos casos era que os pobres pediam farinha em lata de leite ninho e tinham apelidos peculiares como: "vinagreira", "vinte quatro" e cada família tinha seu pobre pra alimentar.

    O mercado sempre foi o centro de fofocas e notícias. Sabia-se de tudo lá. Foi nesse ambiente que ouvi falar da Casa dos Anjos.

    Eu andava com vontade de ser padre e achei natural pedir pra mamãe pra ver os anjos lá da casa, quem sabe eles não ajudavam na minha vocação. 

    Quase apanhei uma surra, sem explicação, e fui proibido de falar nesse assunto. Entreouvi a mãe dizendo pro pai: "é isso que dá ficar falando nessas coisas na frente das crianças".

    Minha curiosidade era um ioiô que ia e voltava e logo me perdia em outras questões de maior importância, como procurar, no céu estrelado, o posto de gasolina onde o Sputnik abastecia. Perguntei pra Tia Quidoca que história era aquela e ela me disse que era tudo invenção de americano: "Já viste a estrada, fio?"

    Tempo passando e numa noite sonhei acrobacias e contorcionismos com a menina do circo e explodi de alegria. Gostei tanto  daquele calafrio e arrepio que, com amigos, passamos a fazer concurso pra ver quem explodia mais longe. Até que o Maricélio disse que com mulher era melhor. Só em sonhos eu sabia, mas o Maricélio garantiu que com mulher era melhor porque tinha uma casa onde as mulheres ensinavam a gente a explodir e elas cobravam pelas aulas. Pra menino novo elas podiam até ensinar de graça, se se engraçassem dele. Mas pra velho elas cobravam, ele dizia.

    Andei desconfiado da conversa porque senti que aquela casa não era estranha e já fora assunto na minha. 

    Me fiz de leso e perguntei pro Tarum, mais velho e mais adiantado nas artes da vida, o que era aquela casa e como entrar nela. 

    Ele riu, passou a mão na minha cabeça e disse: "pelo jeito tu não vais ser padre nunca. Aquela é a casa da Tia Maria, é a Casa dos Anjos. É um puteiro. A gente vai lá trepar com as meninas e levar aquelas que não querem ter os filhos que carregam na barriga. Tia Maria tira. É aborto o nome disso".

    Saí correndo, apavorado, desatinado. Fiquei dias e dias sem falar com ninguém, querendo a maior distância da Casa dos Anjos, com pavor de ver criança morta perto da casa.

    Quando consegui falar sobre o assunto, depois de pensar muito com quem me abrir e revelar esses segredos, escolhi, sabiamente, falar com a empregada de casa, uma maranhense bonitinha que só. Ela me explicou, com muito carinho e zelo, pra onde vão os anjinhos e como se dá o processo de explosão dos corpos de homem com mulher e eu me acostumei a explodir, quase todo dia, com ela. Menos uns dias que ela não  me olhava e nem falava comigo. Só mais tarde fui saber o porquê. 


Corisco.

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