sábado, 19 de dezembro de 2020

A rede

     Um amigo já havia dito que Benquerença tinha algo de Macondo, do livro "Cem anos de solidão". Ele tem razão. De alguma forma as cidades do interior são um tipo de Macondo. É só olhar pelo retrovisor do passado, tal como escreveu Gabriel Garcia Marquez. 

   Foi aí que lembrei da presença da internet, do zap, do Instagram e das diversas alternativas de comunicação existentes em Benquerença, já na década de 1950. Tinha pleno funcionamento e desenvolvimento. Tudo isso naquela época funcionava muito bem, mesmo quando ocorria queda do sinal, que até agora ninguém saber explicar se era 4G ou 5G.

    Se não, como explicar aquela surra que o Priscolete dos Santos pegou do pai ao gazetar a aula pra ir pro igarapé da D. Henriqueta? Prisco, quando pisou o pé no portão, era o vap-vap do cinto pra tudo que era lado. Priscolete ficou uns 15 dias sem poder tirar a camisa na hora da pelada.

    Como as senhoras sabiam, instantaneamente, da chegada de nova puta na zona do Café Puro ou no Pitinga? A primeira a saber era a Fatinha, uma baixinha de metro e meio de altura que falava pelos cotovelos... e tornozelos. A partir dela a notícia atravessava a ponte e batia lá no sítio do seu Elesbão, já perto da cidade vizinha.

    E as retransmissoras instaladas nas manicures? E as costureiras que alastravam fake news os bairros? Com um máximo detalhe e sem direito a mojis e memes: era expressão facial instantânea com direito a suspiro. 

    E as professoras? Sabiam tudo! Naquela nossa Macondo era necessário extremo cuidado e zelo pra que segredos fossem preservados. 

    Se dependesse de mim ninguém saberia, por exemplo, que o Rui foi preso no polícia-ladrão ao perguntarem: "Diga onde está o tesouro". Ele respondeu: "Não digarei". Foi preso pelo futuro-do-presente e solto em 15 minutos, pois seu Noio, um advogado de porta de cadeia, porém poeta de bar, afirmara que o verbo era tão irregular quanto o "pendão da esperança" do hino à Bandeira. Rui não tinha conhecimento que aquele era um verbo torto, e só dobrava para a esquina do puteiro. 

    Mas o zap foi mais rápido e souberam na hora que o Rui fora solto pelo Noio. Tanto no Morro, quanto na Boca da Estrada, bairros diametralmente opostos de Benquerença. Daí em diante o Rui só queria ser polícia. Ele faria as perguntas ao lado de um livro de gramática para não cometer injustiça social ou abuso de poder.

    E o comportamento do meu pai com o velho Portuga, da padaria. Só contava piada sacaneando os "patrícios". Até o dia que o Portuga disse: "Ô Bocage, se contares mais uma de português ponho-te pra fora". O pai disse: "Nunca mais. Era uma vez dois chineses: o Manéu e o Joaquim..." Como era a única padaria de Benquerença, o Portuga suspendeu a venda de pão para nós. Só nos restava comer cuscuz. Essa história se espalhou na hora pelo mercado, o maior Data Center de Benquerença. 

    Só pra ilustrar a rapidez do espalhamento das notícias na terrinha: uma vez, o Lobo, inventor do samba tapuio, ao sair duma festa no Time Negra e ao passar na esquina da igreja matriz, foi abordado pelo padre Vitaliano, que o intimou: "Venha confessar, meu filho, soube que você roubou a galinha com farofa que era do leilão do Lamberto".

- Quem contou? Veio do céu, através de um raio. Respondeu o padre.

    Estava na rede, na nuvem. São os mistérios de Benquerença, uma cidade além de seu tempo. 

Corisco e Labareda

Nenhum comentário: