sábado, 21 de setembro de 2024

É tarde, escrevo: o porão convalesce de um luto

Para quê a gente escreve, senão para juntar nossos pedacinhos

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em: “O livro dos abraços”

 

Se o conceito de acolhimento dorme no fundo do Caldas Aulete, seja como sinônimo de refúgio ou de guarida, ele acorda nos braços de dona Lourdinha.

Lourdinha e o Chavico moravam numa casa enorme na Gentil Bittencourt, e nela havia um porão, onde dormiam Luiz Pedro, o mais velho e estudante de engenharia, e o Luiz Gonzaga, sobrinho de d. Lurdinha. Assim como eu, Gonzaga migrou do interior, em busca de estudos. Éramos do mesmo colégio. Nossa amizade foi condecorada com o futebol e quando fui convidado pra estudar naquele porão. No primeiro semestre eu passava por lá somente às vésperas de provas. No segundo semestre praticamente passei a morar lá, pois nossas notas haviam melhorado e começávamos a acreditar que aquela parceria daria passaporte para a universidade. Em que pese grande disputa por vaga e nossas fragilidades inerente ao ensino no interior, acabamos sendo aprovados, com alguma pitada de destaque.  

Muitas lembranças ficaram daquele porão. Gonzaga seguiu no curso de farmácia e depois voltou para Balsas, seu interior do Maranhão. Eu segui para o Rio de Janeiro. Conheci uma carioca de laranjeiras e por lá me casei, logo que acabei o período de residência médica. Nunca mais encontrei Gonzaga – ou Silva Neto, como era conhecido no seio familiar. Também nunca mais voltei àquele porão. Ficou um agradecimento sem tamanho e uma dívida enorme de gratidão àquela família. Ali vivi um estado de espírito osmoticamente contraído pela servidão que me ofereciam.

Lembro bem a hora do café. Sentávamos em uma mesa grande em que “seu” Chaves ficava na cabeceira, de banho tomado, cheirando a patchouli, cujas costas se voltavam para os janelões amplamente abertos, por onde vazava o sol. Havia plantas naturais entre algumas samambaias. Já no carro, acho eu uma Caravan bege - ou marrom-, Chavico nos deixava na escola e seguia para o trabalho de bancário. Dona Lourdinha segurava a tarefa de casa, como tradicionalmente ocorria com as famílias de outrora.

Uma fotografia datada de 1981 e a outra recente de 2024 fizeram-me revisitar esse passado adocicado, que nunca quis me abandonar. Na de 81 estavam eu, Gonzaga, Jaques e uma moça de nossa idade, cujo nome não conseguirei lembrar. Estávamos abraçados, fazendo pose para a máquina. A imagem carregava o sol de um sábado de fevereiro. Era de manhã e acabara de sair, pelas ondas do rádio, o listão do vestibular. A comemoração na calçada foi regada a Pinduca com maizena e ovos crus nas cabeças raspadas. Eu havia levado uma topada minutos antes e esfolado um dos dedos. A fotografia ainda mostrava o sangue escorrendo pela calçada. Carrego a unha deformada até hoje. Mas se no lado de fora havia sangue e dor, no de dentro do casarão e do meu coração, d. Lourdinha e Chavico estavam eufóricos.

Já a fotografia de 2024 tem autoria de Nayara, neta de d. Lourdinha. Ela nos flagrou no leito do hospital conversando sobre a sua enfermidade e as perspectivas após cirurgia (paliativa). Já eram os primeiros sinais de desconforto respiratório. Mesmo gravemente enferma ela soltou um sorriso de passividade que surpreendeu a autora da fotografia: “rindo só pro dr. Roger”. Os filhos e netos entenderam, com a mesma sabedoria de seus pais, que a finitude, ao ganhar braços, pernas e asas, dá-nos a mão gelada tão somente para pedir passagem.

D. Lourdinha seguiu para companhia de seu esposo Chaves, que já mora há algum tempo no lado de lá. Ele foi funcionário do Banco da Amazônia. Lá conheceu meu pai, até findar nesse relato. Ele considerou a possibilidade de me ajudar nessa jornada pela terra. Tirei proveito e me encaminhei para esse destino: eu e Gonzaga - aliás, o Silva Neto.

        Se tive a frustração de meu estetoscópio não conseguir escutar o murmúrio saudável da respiração de d. Lurdinha, salvaram-me os abraços dos filhos, que junto àquele destino, choramos as doces lágrimas das singelezas que a vida traça e nos encordoa.