sábado, 7 de setembro de 2013

Steve Jobs, entre a devoção e o menosprezo

É impossível acompanhar este blog sem saber que o nosso chefe de redação, Carlos Barretto, é um dos inúmeros fãs de carteirinha de Steve Jobs e consumidor contumaz de produtos tecnológicos que, quando produtos de informática, são da Apple. Assim, este não seria exatamente o local mais adequado para reproduzir o texto abaixo, uma crítica ao filme jOBS, que o público de Belém finalmente poderá assistir, escrita por Pablo Villaça, do Cinema em Cena, que como todo crítico é um chato, alternando momentos de brilhantismo com outros da mais cansativa marrentice.

Caberá a quem ler a crítica e ver o filme (devo vê-lo hoje) avaliar até onde Villaça foi feliz. Devo alertar que ele já começou a escutar. As primeiras respostas de leitores dadas a sua crítica (leia aqui) foram aborrecidas. Fazem-lhe acusações. Felizmente para ele, num nível decente e merecedor de respeito, que em suma dizem que ele não escreveu sobre o filme. Talvez algum despeito inconfesso tenha movido o rapaz. Mas há, claro, quem também elogie o crítico e a lucidez de seu texto, que fala sobre o comportamento das pessoas neste mundo de hoje.

Quem me conhece sabe que, desta vez, concordarei com Villaça. Naturalmente, não sobre os aspectos de um filme que não vi. Mas certamente sobre Ashton Kutcher ser um ator limitado e sobre computadores, telefones e gadgets, de um modo geral, serem apenas... máquinas. Ele os chama debochadamente de "eletrodomésticos". Um exagero, decerto, mas mesmo nós, modestos blogueiros domésticos, recorremos habitualmente a recursos de estilo para dramatizar, chocar e prender a atenção. Já fui bombardeado mil vezes por causa disso. E até admiti que devo evitar as generalizações.

Enfim, os gadgets de um modo geral, e mesmo os da Apple (também concordo com Villaça quando não consegue identificar a proclamada superioridade da marca), podem ser muito mais do que eletrodomésticos e contribuírem para mudanças radicais no modo como as pessoas vivem (p. ex., fazer um cara como eu, que sou professor, ter que competir com o WhatsApp...), mas eles continuam sendo máquinas e nada mais. São questões claras para mim, a ponto de não merecerem questionamento: bichos, por mais amados que sejam, não são pessoas; máquinas não são sujeitos de direitos. Daí a frase de Villaça, para mim, foi luminosa: eu também jamais aplaudiria um produto vendido em shoppings.

Mas cada qual no seu quadrado. Deixo-lhes a crítica e, se eu conseguir ver o filme, depois volto para falar algo a respeito. Há duas pessoas que eu queria ouvir sobre o tema. Uma é o nosso Barrettão, por isso fiz esta postagem aqui. A outra é um amigo filósofo, que convidarei para ler.

No mais, um belo final de semana para todos.

Eu tenho um iPhone. Aliás, neste exato momento estou usando o aparelho para ouvir canções organizadas numa lista especial que emprego sempre que escrevo. É uma invenção útil, sem dúvida alguma, e que facilitou bastante meu cotidiano pessoal e profissional. Dito isso, permanece sendo um aparelho, um eletrodoméstico. Não se trata da cura do câncer, de uma obra de Arte inesquecível ou de um tratado filosófico. Assim, quando, na cena inicial deste Jobs, o personagem-título apresenta o iPod como “uma ferramenta para o coração” e é aplaudido de pé por dezenas de pessoas enquanto travellings aproximam a câmera do rosto de personagens que sorriem com expressão de terem testemunhado a História sendo feita, tive a sensação de estar assistindo a uma comédia. Como membro da classe média, sou consumista como qualquer um, mas posso garantir algo: jamais me verão aplaudindo um objeto vendido em shoppings.
Terceira parte de uma trilogia informal que conta também com A Rede Social e Os Estagiários, este Jobs pode ser encarado como uma prequel dos capítulos anteriores, já que a aborda parte do surgimento da tecnologia que permitiria a propagação da Internet para os lares de todo o mundo: o computador pessoal. Escrito pelo estreante Matt Whiteley, o longa reconta a história da fundação da Apple a partir da trajetória de Steve Jobs (Kutcher), que passa boa parte da projeção celebrando vendas recordes e apresentando invenções “revolucionárias” para seus adoradores – e seu gênio para vendas pode ser constatado a partir da legião de fãs que atingem orgasmos múltiplos apenas com a menção de seu nome, atribuindo ao sujeito a responsabilidade por tudo de bom e justo que aconteceu no planeta nos últimos 30 anos.
O que é curioso, pois, se julgarmos pelo que é apresentado aqui, Jobs era bem canalha. Demonstrando seu descaso para com qualquer outro ser humano ao estacionar sempre na vaga para deficientes de sua empresa, o protagonista diz, em um instante, não ligar para posses materiais apenas para, momentos depois, ficar sem fala ao receber uma oferta de 5 mil dólares para completar um trabalho, não hesitando em mentir para o amigo Steve Wozniak (Gad, que, apropriadamente, também esteve em Os Estagiários) a fim de ficar com a maior parte do dinheiro resultante dos esforços deste. Tratando os subalternos com estupidez e agressividade, Jobs não vê problema em roubar a ideia de um parceiro comercial ao conceber o Apple II como uma máquina completa (em vez de uma simples placa-mãe), mas, hipocritamente, irrita-se ao suspeitar ter sido plagiado por um Bill Gates em início de carreira.
Aliás, se Jobs tem uma virtude é justamente o fato de evitar se transformar em uma hagiografia, retratando o personagem-título como um indivíduo egoísta, egocêntrico e mesmo cruel. Infelizmente, o longa falha ao jamais estabelecer uma conexão lógica ou mesmo alguma transição entre as várias fases e facetas do sujeito: em um instante, Jobs surge lamentando ter sido abandonado pelos pais biológicos (em uma troca de diálogos risível, diga-se de passagem); em outro, expulsa a namorada grávida de sua casa sem hesitar um segundo, recusando-se a visitar a criança mesmo depois de ter sua paternidade comprovada por exames – e quando, subitamente, a filha (já adolescente) aparece morando em sua casa, o filme não se preocupa em explicar como ele subitamente se transformou em “pai do ano”, contentando-se em mostrá-lo chamando a garota para tomar café e observando o filho caçula brincando no jardim. (E, do ponto de vista psicológico, seria no mínimo interessante observar que o nome do computador Lisa é o mesmo da filha por ele abandonada.)
Dirigido pelo mediano Joshua Michael Stern, Jobs traz constantes planos nos quais seguimos Steve Jobs enquanto caminha pelo campus, pelos corredores da Apple e em feiras de informática, como se acompanhássemos uma figura icônica – um ícone que permanece indecifrável e cuja natureza mutante se reflete nos figurinos: aqui, usa coletes e ternos para parecer mais profissional; ali, é o único a surgir usando roupas casuais em encontros de negócios. Enquanto isso, o design de produção faz um trabalho exemplar não só de recriação de época (melhor: épocas), como também é hábil ao sugerir a atmosfera amadora do início da Apple e, posteriormente, o ambiente estéril e corporativo que tomaria conta da empresa. Este cuidado com a fidelidade, aliás, é exibido com orgulho nos créditos finais, quando vemos fotos das figuras reais ao lado dos atores que as encarnaram – e, ao longo da projeção, o cineasta inclui inúmeros planos abertos que têm, como único objetivo aparente, demonstrar como Ashton Kutcher aprendeu a imitar o caminhar típico de Steve Jobs.
Kutcher que, infelizmente, não consegue ir muito além de uma imitação em sua performance, já que, em nenhum momento, conseguimos esquecer que ali se encontra o astro de That 70’s Show e Cara, Cadê Meu Carro? e cuja vida pessoal tem mais destaque que a profissional. Ator naturalmente limitado, ele constantemente deixa clara a artificialidade de sua composição – e quando Jobs se levanta abalado após ser excluído da empresa que ajudou a fundar, a expressão de Kutcher denota um ator que aprendeu a imitar uma emoção em vez de vivê-la em cena. Por outro lado, parte do problema de seu personagem deve-se mesmo ao roteiro, que falha em decidir-se não apenas com relação à natureza do protagonista, mas também de sua empresa. Steve Jobs era um idealista ou um mercenário? Sentia remorso de suas ações passadas ou achava-se justificado? E já que em vários momentos ouvimos personagens falando orgulhosamente sobre “o que a Apple representa”, creio ser razoável que perguntemos, então, o que ela representa, afinal – algo que o filme jamais se preocupa em esclarecer. Quando pensamos na marca, o que deve vir à mente: produtos úteis no cotidiano e de design elegante ou as fábricas na China que exploram trabalho escravo, incluindo mão-de-obra infantil? E se estivermos falando da primeira opção, o que torna a Apple diferente da Sony, da Microsoft ou da HP? Se a resposta for “o estilo” ou mesmo “a qualidade dos produtos”, sinto em dizer que isto não “representa” nada do ponto de vista filosófico (como muitos parecem querer acreditar), tratando-se meramente de características industriais.
E é aqui que Jobs peca como narrativa: mesmo enxergando seu protagonista como um homem falho, o longa ganha tons reverenciais sempre que aborda a Apple como empresa, com direito a trilha inspiradora durante a apresentação dos produtos, quando beira o puro infomercial. Além disso, ao estabelecer Steve Wozniak como o verdadeiro gênio por trás das tecnologias apresentadas pela companhia, o filme inspira mais interesse pelo sujeito do que pelo personagem-título – o que, associado à performance multifacetada de Josh Gad, sugere que, num mundo justo, estaríamos assistindo a Woz em vez de a Jobs.
Porque se Steve Jobs tinha um talento especial, este dizia respeito ao comércio, já que suas apresentações repletas de frases de efeito e hipérboles levavam os MacHeads ao delírio, quando aplaudiam empolgadamente produtos (o que já é ridículo por natureza) sem nem mesmo terem uma ideia clara do que estes faziam (o que cruza a fronteira do patético). Se provocar devoção a ponto de levar adultos a permanecerem dias e dias numa fila interminável apenas pelo prazer de se encontrarem entre os primeiros a comprar um eletrodoméstico é algo digno de admiração, Jobs homenageia a pessoa certa; por outro lado, se a criatividade, o puro gênio e um bom caráter fossem os critérios avaliados, o filme se beneficiaria caso se concentrasse no gordinho barbudo que, mesmo criando tudo que estabeleceu a Apple como a Apple, virou coadjuvante de luxo do sujeito que se encarregou de vender suas invenções e descartar todos que deixavam de ser úteis ao seu projeto pessoal de grandeza.
Um homem tão falho que nem o longa que recria sua trajetória parece aturar.
05 de Setembro de 2013

Um comentário:

Carlos Barretto  disse...

Nem li a crítica para não prejudicar minha primeira impressão. Mas antecipo que, apesar de ser um fanático histérico superhipermegapower fã dos gadgets da Apple, desde o início, não me sentia nem um pouco mobilizado pela sua chegada. Muito embora não disfarçe minha curiosidade.
É apenas um filminho.

Rsssss