sábado, 3 de maio de 2014

Cesta: A palavra crua

Quando voltei do mundo lá de fora, conheci um misturado de caboclo com índia da tribo Miri-Miri, que se tornou cirurgião-operador. 
Desde curumin ele já se insinuava com as palavras. Até hoje vive caçando palavra desencarcerada na boca do alheio. 
Ele disse-me que gosto de palavras que não fiquem guardadas dentro dos livros. 
Verdade. 
Ainda diz que faço solenidade com os verbos. 
Verdade, ainda. 
Aí o pequeno Miri-Miri contou-me dia desses, como cirurgião-operador, que se defrontou com uma mulher muito grave com três facadas no peito.
Fez a operação de peito aberto para retirar material encruado: sangue pisado e estragado. 
Próximo da alta foi dar explicação à paciente, que recuperara o fôlego e não tivera mais febre. 
- "A senhora está curada."
Ela afere: - “Dotô, intão eu num tô mais crua por dentro... Posso comer de tudo ?!?!?!” 
Ele ficou estatuado. 
Aquele verbo novo, cru, agora deslivrado, saiu das páginas empoeiradas dos dicionários, ganhou roupa quadriculada, penteou-se, pernou por aí e voltou para o mundo com perfume de lavanda e gosto crocante.

(A palavra empassarinhou-se...).

Aprendi com os tempos de ler, que a fala vale pelo que entoa não pelo que significa. 
Isso amplia horizonte. 
Quem sabe um dia eu possa ser um entoador, largue essa vida de cangaceiro literário e viva da palavra crua.  


Labareda, do bando de Corisco

4 comentários:

Abel Sidney disse...

como postei no Facebook:

nem frita, nem cozida, mas bem pensada.

para uma fina degustação domingueira, sem pressa...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel, domingo é dia de se degustar salada e salada deve ser ingerida crua, com alguns poucos adereços gustativos.
Domingo é um dia também de se comer a palavra crua, tal como a salada que empunhamos na cesta e levamos para a mesa...

Dudu Neves disse...

Mano Roger, tu mano, corre atrás da palavras cruas que escorrem das bocas alheias, antes puladas das bordas dicionárias. Gosto muito disso, vejo como consegues fazer as manobras da lingua. Feito muleque dando uma cabeça na cangula, cortando e arando. A melhor cumeeira da palavra. Ja botei butuca nos oío, pra mode te ver no ar.Beijo grande mano.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Beijo consolidado em alma de empinador de palavras... Volte sempre, nesta mesma ventania.