domingo, 30 de junho de 2019

As ruas da minha aldeia


Para Corisco,  bando e quem mais se achegar
Para meus amigos de infância, em Feijó-Acre.

As ruas de minha infância guardam os festejos juninos dentro de mim sob marcação de zabumbas, sanfonas e triângulos. Hoje, se faço acordes com este silêncio das ruas de antanho, é porque faço essa colagem impressionista, tomando o pincel das mãos de Monet e guardando em minha parede.
As ruas da minha infância, hoje, olharam-me com estranhamento, como uma espécie de coruja de hábitos crepusculares, que guardam no meu sistema límbico o voo calado daquela meninice, como se fosse texto de Twain.
Ultimamente, distantes deste passado entre as terras de Tom Sawyer e da Matinta-Perera, venho tentando ajustar as cores daquelas ruas, mas não há combinação com minha tez e a colorida fama de memorialista. É tudo sensação. São sensações, pois meus pés não se arrastam no asfalto de hoje como nas ruas de outrora, alhures, pois meu passado de pedra, pó, lama e dedos descalços no açoite do sol escalpelam o toutiço e sustentam o desejo de viver solenemente alegre, ao ver os terreiros bebendo açaí na cuia com granola a desafiar as raízes simplórias existentes nos encantamentos de Paes Loureiro.
Talvez eu ande hoje nas camadas underground - estilo surrounding - de ater-me sob estrondo e estorvo da cidade grande, agoniada e desassistida de passado e de Pasárgada.
Tem o sol, mas o sol não incomoda tanto; as pessoas sim. Estas bem mais que dois sóis guardados no subsolo desta retórica. Ando, ardo e misturo tudo na minha farofa de banana pestilenta, quando vejo um homem puxando carroça com um punhado de cacarecos no lombo, para comprar o pão que o diabo untou no lodo. Lá na frente ele se veste de Bukowski e dá duas talagadas na dor de ter que viver mais um dia.
As ruas de hoje, prédios de hoje, gente de hoje, esgotos de agora, são cores insalubres de uma verdade descontinuada e segredos liquidificados. Eis que os olhares da miséria e medo são parte do enredo das calçadas irregulares e das caminhadas que insistimos em fazer por conta do ácido graxo que embeleza meu prazer de lamber os dedos na hora da fome, enquanto leio Bauman.
Íngremes entre a distância do que fui e do que sou, vejo aí que a poesia se rasteja em andrajos e me disfarça dos arcanjos para ganhar voto de bom São Miguel do Caos, em busca de quem a veja ou reconheça por trás das cortinas que atordoam Hamlet.
Tropeço em incômodos homens bem vestidos que têm pressa de chegar a algum lugar, que o leve ao nada. Trocamos pontos de vista, mas a vista já exagera no foco e acabo vendo o vestido curto da moça que rebola na hora de dizer adeus pelo canto do olho. É a hora que me desobriga de concordâncias verbais e volto pra casa para ver que a vida valeria se insistir em amar as ruas daquela minha aldeia, que guarda no cocuruto a velha farsa de fingir que não existiu, ou de fingir que não conhecia aquele rio curvilíneo que me banhava de infância.
Porque há um vasto estoque de delinquências a serem percorridas logo após a beirada de calçada de minha infância. O bar, um bar aberto, que pode ser o do Abel a espera do socorro do amigo perpetuado no passado onde moram tucujus, cujas flechas passam e me arrastam pelo amazoniamento de ser palavra verde, som equalizado do Curupira e pulso arterial que ribomba na floresta nômade dos Yanomami, donde eu vim rastejando para ouvir Joãozinho Gomes.
Sim, um bar, não um cocar! Foi a partir daí que dei os ombros àquele Acre de minha infância, onde pude despejar todo meu temor, toda descrença de curumim ao cuspir a última gota de esperança que resta no ducto sujo do meu pâncreas, pois limpa é a alma e o poema que vêm da bonança das ruas de meu terreiro de são João, das valas, dos esconderijos das vidas, onde o poeta Gullar fez-se irmandade com a calçada que anda em desavença com as palavras que guardo dentro de mim, ao vir à tona para se fantasiar de poesia.

Labareda, do Bando de Corisco

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