sábado, 1 de maio de 2010

Fernando Pessoa: arte, drogas, amor e outros quetais...

"A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos ― vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito que ela. Mas amor, sono, e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.

O prazer que ela nos oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.

Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso ― o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência."

Bernardo Soares, ou Vicente Guedes, ou Fernando Pessoa, ele mesmo, no Livro do Desassossego.

7 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Muito apropriado, caro Val, muito.

Val-André Mutran  disse...

E tem uma penca de gente que não presta atenção, caro Scylla, para o que realmente importa na vida:
-- Viver!

Andrea Casali disse...

Fantástico!

Val-André Mutran  disse...

Andrea. Ler Pessoa é sempre um prazer equivalente a um bom vinho e uma ótima companhia.
Prazeres da vida que não têm preço.
Recomendo.

Carlos Barretto  disse...

Espetacular!
Tomei emprestado o último parágrafo para meu Orkut. É tão perfeito para um momento que vivo, que não pude resistir.
Thanks

Edyr Augusto disse...

Amigo Val
Como tantos, adoro Pessoa. Curioso que o conheci através de Rosenildo Franco. Garoto, tinha um programa na Rádio Clube do Pará, juntamente com irmãos e amigos como Tarrika e Gilvandro Furtado, e procurávamos algo para o encerramento. Rosenildo fez o clássico ato de abrir um Pessoa a esmo. Havia, ali, um trecho, utilizado, ainda tenho em acetato, gravado pelo mano Edgar Augusto, dizendo "Nem tudo é dias de sol, e a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso, tomo a felicidade com a infelicidade naturalmente, como quem não estranha que haja montanhas e planícies, rochedos e erva. O que é preciso é ser natural e calmo. Sentir como quem olha, olhar como quem anda e quando se vai morrer, lembrar que o dia morre, o poente é belo e é bela a noite que fica. Assim é e assim seja". Nunca esqueci.

Val-André Mutran  disse...

Caramba Edyr. Ótima história, tudo a haver com o magistral trecho do imortal Pessoa.
Abraços.