sábado, 1 de novembro de 2014

Básico e misterioso

"... e que a tecnologia desumanizada mais assusta do que consola"
José Camargo, cirurgião.

Quando residente de cirurgia, depois de um dia escaldante de trabalho, Nestor ficava até tarde da noite a catar conchas e caracóis nas radiografias torácicas. Achava aquele exame básico, porém envolto de mistérios. 

Mas o mistério maior era diferenciar os segmentos pulmonares. O pior deles era, no frontal, separar o segmento 6 do lobo médio. E o que dizer da língula, que fica lambendo o coração? Nestor ficava até tarde da noite separando conchas de caracóis neste exame básico e envolto de mistério.

D. Sonia, que fazia a faxina do hospital, certa vez perguntou, com seu sotaque carioca:

- O que "cê" faz até agora, menino?

-Separando conchas de caracóis. Respondeu.

Ela balançava a cabeça de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse com pena. Não entendia como um médico tinha que catar conchas e caracóis numa chapa do peito. Também não entendia como algo básico ao mesmo tempo guardava tanto mistério. Lá em Vila Valqueire, onde morava, chamavam este tipo de gente de bocó.

No dicionário bocó quer dizer infantilidade. Para Manoel de Barros, bocó é algo similar a tonto; gente acrescentada de criança; exceção de árvore; homem que costuma conversar com as águas. Bocó é também aquele que fala com os sotaques das origens e, na terra de Nestor, menino bocó é o mesmo que menino aru ou abestado.
Para d. Sonia, Nestor entrara para a academia dos arus e toda vez que ouvia falar em conchas e caracóis soltava aquela gargalhada.

Certo dia Nestor passeava pela Rua da Carioca quando avistou um sebo. Adentrou. Deu de cara com um Fraser e Parè, cuja edição já ultrapassava 10 anos. Leu nele que existe uma maneira de diferenciar conchas de caracóis. Era a salvação, portanto. Depois de pechinchar, comprou os quatros tomos a preço de Jerimum na Xepa, mas era quase o valor total de um plantão noturno que fez no dia do seu aniversário.

         Após uns 12 anos Nestor retornou ao hospital para rever amigos. Deu de frente com d. Sonia, já secretária do Dr. Iberê, chefe da Radiologia – que havia ensinado muito a Nestor, menos catar conchas e caracóis. Após a discussão de certo caso, que juntava radiografia e as modernas tomografia e ressonância, o chefe atinou para um detalhe que Nestor havia alertado.

Desde então d. Sonia o estima.

Labareda, do bando de Corisco

6 comentários:

Scylla Lage Neto disse...

Supimpa!

Dudu Neves disse...

Pequenos detalhes cirurgicamente tratados deixam nas dobras do tempo o tempero do ensinamento.
Parabens Roger!!!!!.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Cilão, bom revê-lo...

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Dudu, na do beira do mar as conchas e caracois revelam quão misterioso é o mar.

Abel Sidney disse...

"botei lá no Facebook", como se diz por aqui, na capital de Rondônia.

se botei, compartilhei, como o faço, agora, também aqui.

Roger Normando é meu amigo de infância (Vila de Rondônia, Território Federal de Rondônia, 1976/77). Nos vimos, depois disso, em duas ocasiões. Uma no Rio de Janeiro, quando ele fazia residência em cirurgia torácica e, décadas depois, em Belém, onde ele mora e acumula muitos fazeres/lazeres no campo da medicina e da educação, além da literatura de (boa) inspiração & suor e das peladas de competente futebol com os amigos.

Aqui, nesta crônica, ou conto ou narrativa de qualquer ordem ou sentido, ele se excede. Daí o convite à leitura.

Acabo de aprender, com ele, que sou um bocó. Com orgulho!

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Abel, Fernando Pessoa também se achava um bocó ao escrever "todas as cartas de amor são ridículas. As cartas de amor, se há amor, tem de ser ridículas". Tem coisa mais aru do que isso? Salve os bocós. Demorei, mas descobri.