domingo, 29 de março de 2015

Tia Julia e o sobrinho escrevinhador



Assim que acabo de folhear poemas de Quintana me vem a prosa sagaz de Varga Llosa, logo na primeira linha de “Tia Julia e o escrevinhador”: En ese tiempo remoto, yo era muy joven […]. Sem dó, o tilintar da campainha da infância e adolescência ressoam. Enxugo as lágrimas de um tempo que se esvaiu na poeira da estrada sem asfalto, e tudo vira memória coagulada.

E de toda infância, a do Acre marcou feito tatuagem no peito, grafando: frágil. Meus irmãos David e Paulo vez por outra abrem meu peito com as lâminas do passado e voltam a falar do cine Menezes com o paladino Giuliano Gema, dos Índios às margens do rio Envira e do próprio rio quando alagava a frente da cidade, que se chama Feijó. Também se danam a falar dos primeiros passos na sala de aula, e que eu temia o colégio como se fosse um calabouço. 
Também riem de certa história em que nossa mãe entrou na sala de aula só para ficar ao meu lado para que eu assistisse à aula e aceitasse de vez os cadernos. De fato, espantava-me só de pensar que iria viver submetido ao regime de uma campainha e 15 minutos de recreio para comer pão-doce com Q-suco de groselha embrulhados na merendeira. Hoje é engraçado, confesso, mas en ese tiempo remoto, yo era muy joven e não aceitava.

Não lembro, mas minha mãe diz que cheguei a repetir a primeira série e, a partir daquele ano e um senhor puxão de orelha do papai, eu me desembestei a estudar. Meu pai dizia que o estudo era minha possibilidade de gozar uma vida livre, e que eu, o mais velho da prole, serviria de molde para os irmãos.

A partir de então virei rato de biblioteca. Gostava daquela descoberta do Robert Hook, quando olhou no microscópio um pedaço de casca de árvore e descreveu a célula. Fascinante. Queria também saber que geringonça era microscópio. A ciência de Galileu sempre me fascinou; até bem mais que a poesia de Quintana. A única coisa que não me fascinava era a eletricidade daquela cidade interiorana, que sempre acabava no melhor da leitura. Era quando eu saia à praça pra brincar de esconde-esconde com os irmãos, iluminado apenas pelo farol da lua e os vaga-lumes.  

Mas lembro perfeitamente quando a professora Irineia me fez certo elogio por responder aquela tabuada da casa dos nove, que havia decorado com minha mãe, e também às perguntas de citologia que havia lido na pequena biblioteca local. Desde aí imprimi um beat acelerado até chegar à Universidade.

Mas neste intervalo teve uma pedra no caminho: mudança para Belém, lá pelos 13-14 anos. Meu pai, entusiasmado por nossa capacidade, gostaria que estudássemos no colégio Marista, mesmo sem saber se teria condições de pagar. A questão empacou pois tínhamos que fazer um teste por termos vindo do interior e estudado em colégio público. Sem direito a cota, tomamos ferro eu e David. De tudo aquilo que nosso pai achava ser suficiente, virou balela. Colocamos o rabo entre as pernas e fomos estudar no Benjamin Constant, até uma próxima investida.

Foi quando, ainda inconformados, nossos pais pediram à Julia Capeloni que ajudasse. Tia Julia, irmã santarena da Mamãe, arrumou duas vagas com bolsa, ano seguinte, no Colégio Moderno, com a condição que Clodomir Colino, então diretor e amigo, impôs: só permanecer se tivessem boas notas.

Tia Julia, que fez aniversário esses dias, apostou cegamente nesse périplo. Ela é essa peregrina que empresta a luz de seus olhos para alumiar caminhos alheios, mesmo os caminhos à luz de lua e vaga-lumes.  

Labareda, do bando de Corisco

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