segunda-feira, 24 de setembro de 2018

As calçadas da rua Wudong


O setembro da rua Wudong tem, na forração do céu, um sudário cor de chumbo. Percebem-se todos os tons de cinza nas nuvens: do alvorecer, quando Xangai se desnuda para o novo dia, até o claro do dia findar. Parece que vai chover a qualquer momento. O tempo fechado mistura-se à poluição, que faz Sergio, meu companheiro de caminhada, espirrar. Embaixo, os chineses caminham com máscara, protegendo pulmões e vias aéreas. Até as crianças, que se direcionam para a escola, têm suas narinas escondidas. O clima é pesado para o DNA dos orientais, que tem propensão a doenças respiratórias, incluso cânceres.
Na mesma Wudong, crianças atravessam-na de mãos dadas com os pais, até entrar na escola para aprender mandarim, matemática e o hino nacional. Algumas chegam à garupa da bicicleta e outras saem pela porta traseira de carros de luxo. O destino é um só: a igualdade.  Tudo junto e misturado, feito fila de comunhão da hóstia sagrada. Se existe algo que o comunismo deixou na Wudong foi o convívio cintilante com a bandeira vermelha e o bem-estar com o socialismo. Tudo por conta da pesada mão de Mao.
Depois a China deu a mão de Mao à palmatória e abriu os olhos ao capital estrangeiro. A abandonaram o comunismo - mas não suas lições de mutualismo ante ao crescimento exponencial da população. Sem commodities, e úteros crescendo, a fome deitava no colo do totalitarismo, mas só havia mamadeira - e o leite era de soja. Levaram-no à crença que o regime falhou e precisava ser reavaliado. Do contrario, o dragão asiático, sem pólvora para exalar fogo pelas fendas nasais, entraria em combustão.
Por conta de tais mudanças conseguimos aterrissar em Xangai, rua Wudong e ver, nos meninos-chinos, reminiscências do passado maomista e das dinastias que o tempo deixou pra trás. Caminhar pelas soleiras apreciando o arvoredo e jardins que compõem a bela universidade de finanças e economia -  e aquela escola de crianças - foi um exercício de reflexão política para deixar qualquer flaneur do Sena roendo os cotovelos. Em que pese o ar pesado, obrigando os chineses a máscaras, apreciar a Wudong me distraiu em cumprir meu objetivo: visitar o maior hospital de doenças pulmonares do mundo.
Em verdade, toda a minha vida em Xangai se resumiu aos 1,3km que fazia todos os dias para chegar ao Shanghai Pulmonary Hospital (SPH-Tongji University), sem qualquer risco - exceto no cruzamento da rua Wuchuan, defronte à entrada da Universidade de Finanças e Economia, em que bicicletas, carros e moto elétricas passam por cima dos sapatos, sem pedir licença. É claro que aqui e ali se via um corpo estendido no chão, ambulância ao redor com luzes vermelhas, isolando a área.
Quando dei por mim, estava entrando naquele hospital-escola e sentando na carteira para aprender novas lições sobre câncer de pulmão, num inglês saltitado pela dicção do mandarim.
Foram 15 dias intensos e nem pudemos visitar o Yang-tsé. Eu sentava todos os dias na mesma carteira, a prestar atenção nas aulas, nos casos clínicos diferentes - pela precocidade de diagnósticos. Também começava novas amizades e ouvia os menestréis, depois o rumo era o centro cirúrgico.
Eram todos os dias, exceto no ultimo, quando fui convocado por Zhu-Yumin e Jiang Ge Ning, os coordenadores, para uma lecture sobre cirurgia da tuberculose pulmonar, no meu inglês misturado com farinha de tapioca. No último diapositivo projetei a janela do meu poleiro, com o pôr-do-sol amazônico ao fundo. Era para explicar as minhas 36 horas entre aviões e aeroportos. A plateia percebeu que por ali passara meu destino. Riu. Riu com um sorriso verde-transparente aninhado naquela minha pausa pra beber água. Deu saudade do meu recôncavo. Já era hora de voltar e agradecer a serventia. 
Aprendi bem mais que a distância que me separava de casa, pois todo aquele tempo escorreu numa velocidade inversa à fome de escrever o que estava ali. Tentei de todas as formas organizar tudo em borrões, mas, bem antes do fim, o avião pousou na minha janela.

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