sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Uma jornada ao vidro fosco

    Fred Hoyle era um astrônomo brincalhão e adorava burilar ideias. Reza a lenda que na Inglaterra pós-guerra, em entrevista à BBC, alcunhou o termo Big Bang à teoria de criação do universo. Sobraram gracejos. Ele quis falar, de forma frajola, sobre a explosão que gerou as galáxias há 13,8 bilhões de anos e do tiroteio de átomos a partir do Buraco Negro. Ainda não se sabe quem apertou o gatilho: se Deus ou mudança de temperatura do universo, mas o bang-bang do Big Bang pegou e ricocheteou, apesar dos sussurros durante a entrevista. A palavra vestiu-se de delírio. 
    A partir dessa expansão do universo nascem: ampulheta, espaço e as horas dos relógios. Einstein, Hawkins, Carl Sagan, Edwin Hubble e uns tantos mais andaram debruçando seus cotovelos sobre a teoria. Tal conteúdo ganhou densidade com a recente descoberta do Bóson de Higgs, em laboratório, e ficou conhecida como Partícula de Deus. 
    Desde então, os astrônomos quando olham para o céu noturno e veem aqueles vaga lumes piscando, certamente vem à tona a entrevista do bem-humorado Hoyle. 
    Decerto também a oncologia pulmonar teve seu Big Bang, assim como seu Fred Hoyle. Com os tomógrafos helicoidais de alta resolução – nossos telescópios –, partículas em forma de poeira, menores que meio centímetro, passaram a ser visualizadas no cosmo pulmonar. A esse achado chamou-se de vidro fosco. O vidro fosco é o nosso Big-Bang, pois o pulmão, repleto de ar, deixa passar, frivolamente, os raios colimados, mantendo o desenho dos brônquios e vasos. Porém, quando há qualquer perda da transparência, a imagem torna-se fosca, empoeirada e o pulmão fica despolido. 
    Deixa ver que, no início do século passado, John George Adami, professor de Patologia na McGill University-Canadá, cria o termo “lepídico”, que viria a ser o vidro fosco na tradução imagética. A palavra vem do grego: “escama de peixe”. Ele quis dizer em seu livro Princípios de Patologia, que lepídico refere-se à lesão circunscrita que descama e escorre para o interior do alvéolo e por lá se acumula feito poeira, a ponto de formar um amontoado justaposto como “escamas de peixe”. Assim sublinhou: "são células tumorais de adenocarcinoma, proliferando ao longo da superfície de paredes alveolares intactas, sem invasão estromal ou vascular." 
    Desde então, quando se mira a tomografia e veem aquele desenho opaco, solitário, ofuscando o parênquima pulmonar, desconfia-se do adenocarcinoma, tal como os astrônomos vislumbram as galáxias em seus telescópios. 
    Com melhor entendimento do padrão em vidro fosco, agora em evidência pela nova peste, houve necessidade de se refazer a classificação anatomopatológica do câncer de pulmão e, desde então, Adami não foi o mesmo: a pneumologia mudou sua rotina e a oncologia torácica viveu a catarse. 
    Com esse diapasão, IASLC-ATS-ERS, maestrinas interessadas no assunto puseram o vidro fosco e o padrão lepídico numa mesma sinfonia e desenharam nova classificação da categoria T. Trouxeram à baila desenhos geométricos para se recalcular o estadiamento. A inclusão desses elementos morfológicos, restritos ao adenocarcinoma, deu novo rumo ao tratamento cirúrgico, assim como ao prognóstico. 
    O incessante rastreamento (do inglês screening) em busca dos vidros foscos tornou-se a maior fissura da atualidade, em que se vislumbram melhores resultados para a cura do câncer pulmonar. 
    Porém, uma próxima conquista tem pressa e busca por tumores avançados. É bem provável que não passe mais pelas lentes de George Adami, tampouco pelo Big Bang tomográfico; é provável que venha pelos filamentos helicoidais da linguagem genética do EGFR, ALK, PDL1... Mas deixemos a poeira dessa peste passar.

Texto originalmente publicado no Jornal da Sociedade Brasileia de Cirurgia Torácica

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