terça-feira, 16 de novembro de 2021

Gato Preto V - O mundo de Edgar Allan Poe

Para a mais louca e, ainda assim, mais caseira narrativa que eu escrevi, não esperei nem solicitei sua crença. Esperava mesmo que fosse ficção, casos nos quais meus próprios sentidos rejeitam a evidência. Ainda assim, não estou louco - e muito certamente eu não o sonhei. Meu propósito imediato é colocar, perante o mundo, simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de meros eventos mundanos. Ainda assim, eu não tentarei explicá-los. Para mim, eles representaram nada além do gosto pela literatura - para muitos, eles parecerão menos terríveis e mais barrocos. Daqui em diante, talvez, alguma ideia possa surgir e reduzir meu fantasma a um lugar comum - alguma ideia mais calma, mais lógica e muito menos excitante do que a minha, e que perceberá, nas circunstâncias que detalho com assombro, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos bastante naturais.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Gato Preto IV

Quando mais jovem, Mundinho visitava Algodoal, pequena ilha na costa amazônica do Atlântico. Lá conheceu a Luiza Brunegra, uma mulher linda que gostava de batida. Mundinho tinha carestia de dinheiro, mas reservava alguns trocos para momentos libidinosos, quando a noite brotava naquele lugarejo, ao som do carimbó. Então sacou do bolso suas parcas finanças para comprar de batida de Genipapo com Gato Preto. Beberam até o talo. Ao avançar a noite, Mundinho queria moer a solidão da sua linda, mas ela não tinha ignição. Então ele pôs a moça nas costas e desapareceu pela estrada de areia.  Quando chegou à casa dela, ainda havia uma escada íngreme. Ao tentar escalar o primeiro degrau vomitou todo o Genipapo, ficando dentro de seu estômago apenas o gato. Voltou rastejando e ouvindo a voz do gato por cerca de uma semana. Até hoje, quando mira um Felis Catus, Mundinho sente-se nauseabundo.

Gato Preto III

Era meia-noite de sexta-feira-treze, quando Gato Preto cruzou a estrada, após ter passado por debaixo da escada. Jerônimo vinha a 80 e tentou frear. Não deu. Acertou o gato em cheio. Fez questão de enterrar. Caminhou no sentido da floresta, que tinha um fundo azul, cuja lua iluminava a dança, a roda, a festa. Chorando, lá despejou o gato. Na última mão de areia, outros gatos e um lobisomem surgem e atacam. Com medo, e o coração saindo pela boca, Jerônimo pegou o beco em disparada. Tropeçou e caiu na beira da estrada. Vinha um carro prata a 80, que passou por cima de seu braço estirado. Teve o rádio fraturado, segundo o ortopedista. Ficou bom tempo na tipoia. Todas as sextas-feiras-treze, ao ligar a ignição do carro, o rádio disparava um “Secos e Molhados”.

Gato Preto II

 Era casa com um vasto quintal, cheio de árvores e passarinhos. Vez por outra o gato preto da vizinha pulava para o quintal do pirralho. O pirralho, sem os pais saberem, colecionava pedras de brita, de uma construção ao lado. Enquanto os pais tiravam sesta, o pirralho costumava caçar passarinho no quintal, mas o gato preto da vizinha era alvo mais fácil. Não matou passarinho, mas certo dia acertou o gato, que ficou cego.  A vizinha jogou praga pro pirralho, dedurou aos pais e o menino sofreu castigo severo. Quando a vizinha morreu de infarto e de desgosto, o gato ficou atazanando o moleque, até que certo dia, ao verter água, viu pedrinhas sair pelo seu passarinho, que se assemelhavam àquelas que jogava no gato. Os pais procuraram o médico de rins. Era caso de operação. O menino se tornaria médico veterinário.

Gato Preto I

 Uma jovem hipocondríaca se dizia asmática. Relatava que tinha um gato dentro do peito. Foi ao médico em busca de solução. Descobriu um com habilidades manuais em doenças do peito. Percebendo o psicodistúrbio o dito médico propôs que retirasse o gato através de cirurgia de peito aberto. Ela ficou feliz. Após fazer avaliação pré-operatória, na sala de operação, o cirurgião traçou um raso e pequeno risco na pele do lado esquerdo e depois costurou. Tirou de dentro de sua mochila um gato branco. Deu para a jovem assim que ela despertara da anestesia.  Duas semanas depois ela volta dizendo que não era aquele gato. O gato dela era preto e estava no lado esquerdo.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

SUSrealismo literário


           Somos obrigados a tomar decisões

que costumo chamar de decisões de carne e osso.

Ali, à beira do leito, olhando para a expressão de sofrimento do doente,

estamos expostos, contaminados pela emoção.

Marcio Maranhão, em: Sob Pressão, 2014

         Flanando pelos sebos cariocas, num roteiro que sempre gostei de fazer pelas cidades onde passo, encontrei SOB PRESSÃO, na Buarque de Macedo, Largo do Machado. Findei a leitura num fôlego só, aliás, durante um voo de cerca de três horas até Belém. Estupefato e taquicárdico, retornei ao início do livro e achei o telefone do autor em dedicatória ao amigo Ronaldo Gomes. Então, após aterrissagem, abandonei minha timidez e enviei uma mensagem ao autor, parabenizando-o pela obra, que a meu ver mereceria ser premiada - se é que já não foi.

Descobri que Marcio Maranhão é um cirurgião torácico, também formado no Rio de Janeiro. Alguns dos personagens daquele livro eu conheço: Carlos Alberto Guimarães, grande cirurgião desde os tempos de minha passagem pelo Rio como residente e depois em congressos e UNIFESP; o Miraldi começando a carreira. Mas o que mais importa é que o livro emociona. O tempero é apimentado em pitadas mais rascantes a provocar ciúmes a Atul Gawande, Groopman, James Cole, Henry Marsh e outros consagrados médicos da literatura saxônica.

Sem deixar de fora a linguagem regional, a narrativa sobe os morros cariocas municiado das verdades que compõem o SUS surrealista, ao destripar a saúde pública brasileira com a destreza de um bom e titulado cirurgião. Quem o lê e viveu aquela atmosfera sente-se um personagem do livro, quiçá, o autor, dada sua realidade pruriginosa. Para que melhor me entendam, Maranhão se apoia tanto sobre o SUS quanto em sua biblioteca, ao visitar Nietzsche, Moacyr Scliar, Zuenir Ventura e outros mais. Viaja numa ambulância do SAMU com os vidros abertos e sirene em alerta, em busca de palavras e formas para descortinar o caos da medicina em sua “amplitude mais nefasta”, como retrata o autor.  

Destarte, vivi a nítida impressão que o seriado da rede Globo tinha como fonte de inspiração aqueles relatos - e isso talvez já lhe seja um prêmio. Quando retornou a mensagem, Marcio me confirmou e, mais que isso, ficou intrigado com a forma que eu havia traçado o caminho para contar essa história. 

Confesso que não assisti nenhum episódio televisivo, mas deverei prestar mais atenção, enviesado por esse tique-taque narrativo, agora em carga audiovisual.

Guardando devidas proporções, os caminhares literários do autor se transformam num imaginário bem visceral, que me fizeram relembrar o consagrado TROPA DE ELITE, uma película marcante na história do cinema brasileiro contemporâneo. Ao relatar tal fato a Jorane Castro, em conversa de corredor de hospital, a professora do curso de Cinema da Universidade Federal do Pará bate com a mão na mesa e diz: "é melhor que Tropa de Elite".

Então, para finalizar, mandei na postagem mensagem um pequeno texto do poeta francês Paul Valéry, que também achei no mesmo sebo: "Belo instante, sacada do tempo. Tu sustentas por meio de um homem [narrador] um olhar de universo, uma parcela daquilo que existe contra toda coisa. Respiro em ti uma potência indefinível, tal como a potência que há no ar antes da tempestade".

Pedi ao escritor que não se esqueça de agradecer a Ronaldo Gomes por tamanha generosidade...