quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

A relativa idade de Tulu

   Um vagalume
Em soluços de luz
Escreve na noite:
"Na dúvida, viva".

Corisco


     Tulu nasceu cansado; cresceu cansado. Não teve chance de ter ofício. Até tentou capinar o quintal da casa onde nasceu, mas ficava sem fôlego. Vivia na barra da saia da mãe. Tulu se enxerga na Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

    Aos 28 anos a mãe colocou-o no colo, pegou o barco no Camará. Partiu. atravessou a perigosa baia do Marajó, até aportar no Porto do Sal, em Belém. Indagado sobre o endereço, repetiu várias vezes para a recepcionista do SUS: Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

    Tulu chegava para trocar a válvula do coração e se livrar daquele cansaço que exauria o corpo. A operação correu bem: válvula nova, coração novo. Mas houve um sangramento inesperado horas após, com direito a parada cardíaca e reanimação. Todos empenhados. Tulu tornou, mas o lado esquerdo estava totalmente inundado por sangue coagulado, exaltava a radiografia e o recipiente que se conectava ao tórax. Restava-lhe o lado direito para respirar. Foi levado para a sala de cirurgia para retirar coágulos e recuperar o pulmão debilitado. Em dois dias o tapuio já era outro.

    Prestes a ter alta do CTI ocorreu novo episódio de sangramento, agora em menor tormenta. Tudo por conta dos remédios para manter a válvula íntegra. Ele suportou mais essa abordagem para retirar os novos coágulos. Com o passar dos dias a cútis engelhara, o semblante caíra e a voz perdera enxame. Ele era muito diferente da paisagem humana geral naquela unidade. Envelhecera cem anos em dois meses de solidão. 

    Ensaiou os primeiros passos junto com a alta hospitalar. Agradeceu às enfermeiras, mas era hora de voltar para Vicinal Bom Jesus Primeiro, ramal passando a vila Bacuri s/n, Cachoeira do Arari, ilha do Marajó, Pará, Brasil.

   Depois de desembarcar no porto Camará, da gigantesca ilha do Marajó, havia ainda a longa via, floresta adentro. Assistia pela janela da estrada os espaçados casebres de um lado e de outro, com cerca de varas protegendo terrenos longos e gordas mangueiras esgalhadas deixando sombras ao chão. O caminho de barro trepidava o peito de Tulu, amortecido por um travesseiro de espuma, que abraçava contra o peito, como se protegesse aquelas válvulas. 

    No dia seguinte partiu para terceira perna da viagem, montado em carro de roda-de-madeira tracionado por búfalo, que apanhou de carona na vila Bacuri. Cobria-lhe a cabeça um chapeu com abas avançadas para lhe proteger dos raios solares obliquantes do início da manhã. Enfiou-se por veredas, depois de uma estreita ponte cheia de remendos sobre um braço de rio. De imediato identificou sua casa pelo pé de jambo e, logo em baixo, um banquinho encostado à cerca para prosear. Demorou quase dois dias até chegar ao lugar.

    Ao abrir a porta já era seu aniversário. Familiares e a vizinhança prepararam almoço surpresa. Havia suco de bacuri, muruci e paçocas. No centro um bolo de macaxeira para sobremesa. Sobre o bolo havia velas soltando faíscas na hora do parabéns. Ali relampejou a sua idade: 129.

    Espaço e tempo, na verdade, são faces da mesma jornada. E o jeito que o tempo passa para o mundo pode ser diferente do jeito de passar para Tulu e o ramal Bom Jesus Primeiro.

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