domingo, 8 de março de 2020

Cirurgia nas pontas do lápis e bisturi




“Vento que passas, leva-me contigo. Sou poeira também...”
Miguel Torga, poeta português.



"Viver é etecétera...", grifou Guimarães Rosa e, como o ponto final ainda não aportou em minha jangada de textos, sigo entre vírgulas e reticências a esperar a página em branco (ou cinza...) ganhar estampa. Desde então ando cavoucando coragem em cada ideia alvissareira em que me jogo, e me lanço ao desafio, tal como o pescador em sua jangada imbui-se da jornada ao mar.
Uma dessas ideias se interpôs em missão a Viena para realizar um curso prático na área cirúrgica. Semana antes de embarcar, recebi convite para fazer uma paragem em Lisboa para dar uma aula no hospital São José (Centro Hospitalar Universitário de Lisboa), referência maior em urgência naquela cidade. O tema cabia perfeitamente na minha vivência, por isso, fiquei honrado pelo convite. Aceitei na bucha.

Já em terras lusíadas, a Avenida Liberdade se expandia em cada passo. Dobrei o Rossio e me direcionei ao hospital com o pulso fechado. A arquitetura do lugar, até chegar ao salão nobre, é um relicário da nobreza portuguesa. Neste roteiro, caminhei pela memória de um país e de um povo, sob afrescos e iluminuras e entre paredes entulhadas de memória. Vi nas escrituras um corolário de elementos historiográficos que levaram à insignificância de minha presença: desde a reconstrução do hospital após o terremoto de 1755, passando pelos desígnios da dinastia pombalina até os mandamentos de Salazar e o Estado Novo. Aquela academia de cirurgia, então criada pelo enfermeiro-mor Luiz de Vasconcelos, mereceu resistir a essas intempéries. Ali se ouve as tessituras do tempo em notas afixadas às paredes do templo - sagrado ao ensino e ao assistencialismo. Ao escrever esta página, veio-me à memória um excerto de Lobo Antunes: “Regressando aos santos, sandálias sempre”.

Não finda aí, e a aula seria o de menos...
Consoante ao novo desafio, antes de iniciar a leitura, conheci os professores Oliveira Martins e Novo de Matos, coordenadores do serviço. Mas um detalhe na sala de espera e de reuniões me chamou atenção. Estava afixada à parede o anúncio da aula - que muito me honrou -, e um quadro branco à meia altura da parede, com desenhos feitos à mão. Não eram desenhos quaisquer, mas expressões da cirurgia com traços vivos de arte - arte como pão e vinho diário para quem dela precisa.
Ao indagar a autoria, Martins levantou o dedo; abandonou a sala... e voltou. Voltou com um livro na mão - um regalo. Ali continha alguns de seus desenhos que costuma fazer após cada emboscada cirúrgica de urgência, agora transfigurado em livro. "Cadernos de um cirurgião" é uma leitura de desenhos que se debruça no cotidiano da arte cirúrgica, ora pela dedicação profissional, ora pela causa acadêmica, conforme descreve o escritor Guilherme Martins: "É um exercício em que várias artes se cruzam. A arte do médico tem o seu próprio movimento, a sua concentração, o planeamento, a encenação, a liturgia, o gesto, a aplicação certeira dos instrumentos de precisão, o bisturi com a sua magia, tudo para que o resultado seja próximo da perfeição, que permita recuperar a saúde e o bem-estar da pessoa que o cirurgião opera. Já de si a palavra 'operar' é ambivalente - falamos de obra, de criação e de recriação. Estamos na ligação entre a arte e a ciência. E, como dizia Rômulo de Carvalho, que conhecemos a vida inteira como um outro Kant, por cujas rotinas podíamos acertar os nossos relógios: 'não somos, em última análise, o método, o processo, a forma e o modo. E se falo de encontro de várias artes, chego com a ilustração destes 'Cadernos' - o desenho, como movimento, como gesto e como representação."
No caminho de volta, a Avenida Liberdade me retoma o pulso e, na clara ideia daquela artéria da cidade, tentei fazer valer todos os caminhos por onde se busca viver eteceteramente.

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