sexta-feira, 20 de março de 2020

No ninho do Minho



Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que pode esta língua?
Caetano Veloso, na canção: “Língua”

Ao lado da Sé de Braga, na região do Minho, um gajo de solene aparência vende toalhas de mesa com poemas escritos na protolíngua local. Explica à brasileira que aquele sotaque os distingue na lusofonia: vizinhança com a Galícia - mais acima, em Espanha.
Em Corunha, Galícia, um grupo de cirurgiões brasileiros visita um hospital e posa para foto. Na porta do centro cirúrgico está sobrescrito: Unidade de Cirurxía Torácica. Isso mesmo! Cirurgia com "x".
Na realidade, o Minho aninhou a raiz da neolatina língua portuguesa. Foi lá que o nosso rude e doloroso idioma veio à luz. A nossa língua, de viço agreste, veio da Itália, região do Lácio, próximo a Roma. Era falada por soldados, camponeses e camadas populares, que migraram para a Galícia, esse recanto esquecido da península ibérica. Lá fincaram bandeira sem delimitar território. Depois, como numa irmandade, desceram para Portugal sem marcar fronteira.
Ora, pois, como a poesia está para a prosa, então parti de Braga rumo à Galícia, só para sentir na tuba auditiva a raiz de nossa lira singela.
Não deu pé: chuva medonha. Paramos em Viana do Castelo, fronteira. A bela cidade, para nos salvar, guarda boas livrarias. Entrei, bati os sapatos, sentei e pus-me a ler sobre nosso ouro rico de ganga impura. Comecei a depurar por Afonso Henriques, o primeiro rei. Nascido em Guimarães, berço de Portugal, ele oficializou a língua como galego-portuguesa, após expulsar os árabes e uns poucos normandos que sobraram da invasão viking. Com isso, o rei retira a língua de Camões do exílio e põe na rota das grandes nações. Historiadores aferem que Portugal, verdadeiramente, nasce neste exato momento.
Li também que o primeiro poeta foi o rei dom Dinis. Desconfio até que aquelas trovas impressas nos souvenirs próximo à Sé de Braga começaram com esse poeta galego.
Então, a partir do rei, da poesia e da criatividade, a língua ganha rua, contornos, e passa a se chamar a língua do reino. A partir daí ela desce para Lisboa, reconhece os versos de Luiz Vaz e vai parar no Algarves para ganhar adaptações e sotaques. Do continente lança-se ao mar e atinge ilhas vizinhas, África e o Oriente; cria confusões de prosódias ao atravessar o Atlântico para invocar Gregório de Matos Guerra, o “Boca do Inferno”, no lado brasileiro; aguça Olavo Bilac, no poema que exalta a última flor do Lácio. Depois veio a música “Língua”, de Caetano, tudo junto e misturado no mesmo sangue, com a boa dose de lirismo: “como se num suave azulejo o rio Amazonas, que corre Trás-os-Montes, numa pororoca, desaguasse no Tejo”, diria Chico Buarque.
No último século, com a expansão do castelhano e as regras para o português do norte, começou a ocorrer divergência no que se falava nas ruas e, definitivamente, ela se separa do galego. Mas ficaram rastros em sua pronúncia, como a palavra “cirurxía”, por exemplo.
Ao visitar o dileto Gonzales-Rivas, oriundo da Galícia, que mora na China e por lá anda divulgando a cirurgia torácica ultramoderna, ele apresentou-me a jovem Isabel, cirurgiã galega que hoje mora em Madrid, e foi aluna sua. Na roda de conversa eu falava português, sem qualquer tentativa de me desdobrar no portunhol e os dois me entendiam muito bem. Então, alhures, ouvi os gorjeios do galego deixados ao fundo do ninho do Minho, quando despertou minha curiosidade...
    Na livraria, já era fim do dia. Continuei sentado, a escutar o silêncio da chuva cerzindo o tempo, até me deparar com “O Livro do Desassossego”. Ali vi a inculta e bela vestir-se do manto régio da transliteração greco-romana, sob os versos de “Minha pátria é minha língua”. Lá o esplendor da syntaxe de Fernando Pessoa fez-me entender que a última Flor do Lácio deixara ao léu uma pétala de rosa entre vielas e castelos de Guimarães, até que os descendentes de Guimarães Rosa pudessem juntá-la, guardá-la na alma e enternecer o imenso Portugal.

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