terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A outra margem do rio

       Vejamos, uma pessoa pode chegar à nascente do rio, 
andando pela margem, não é?
José Saramago, em: "Democracia e Universidade"

        A gente se põe a ler uns e outros e acaba se entregando às ideias. Tum-tum-tum no coração, aí uma idéia puxa outra e tudo vai bater no olho d'água, donde a vida principia. Foi dia desses que me pus a ler "Democracia e Universidade", de José Saramago e acabei me entregando ao pensador e suas ideias sobre a nascente de um rio. Foi uma verdadeira saramagia nos meus glóbulos brancos - mais ainda por saber que Saramago jamais passou pelos portões de uma universidade e mesmo assim se tornou Nobel.
       Pra quem já passou por uma universidade, costuma-se aferir que é a página mais marcante da vida profissional. E para quem se tornou um escritor sem a sombra dos muros da academia, como Saramago, como então olhar criticamente para o interior da universidade? Eis a grande mensagem do livro (EDUFPA, 2O13), uma coletânea de discursos em salas universitárias por onde rodou.
        Durante a escavação da leitura, depara-se com a seguinte passagem subterrânea: "A universidade, na minha opinião, deveria reivindicar algo mais que aquilo que objetivamente, lhe é próprio: a qualidade do ensino a partir da nascente do rio". Parei. Lembrei-me do Diogo Pinheiro, um ribeirinho que conheci ainda criança. Diogo mora no Tucumanduba, às margens de um pequeno rio da grande bacia amazônica, que vai dar no Tocantins. 
      Filho e neto de ribeirinhos, a mãe pôs-se a ser professora de ensino público e o pai, apanhador de açaí e pequeno pescador de anzol e matapi, assim como o avô Bené. Até hoje, com mais de 70, Bené escala um açaizeiro como menino de 15. Diogo foi sustentado pelo rio e floresta, e sua mãe o amamentou com a leitura. Assim Diogo chegou à adolescência e, hoje, aos 16 anos, é um leitor contumaz.
      No Tucumanduba percebia-se que Diogo, desde menino, sempre esteve atado a um livro. Lia de tudo: literatura clássica e o que lhe dessem de presente. Confessa a mãe que ele tem paixão - mesmo, mesmo - é por Clarice Lispector; só largava Clarice quando a noite chegava, pois o lugarejo não dispunha de luz elétrica. O pai, homem reservado, falava da satisfação. Foi quando certa manhã, alguém sacou uma foto no momento de interação entre leitura e aquela paisagem bucólica, com trapiches e o rio logo ao fundo. 
     Certa vez, um casal de pesquisadores finlandeses foi visitar o lugarejo e viu aquele menino contemplando um livro. Deram-lhe uns dinheiros para ajudar nos estudos e aquele regalo ajudou Diogo a conquistar a aprovação em primeiro lugar para o curso de direito - Universidade Federal do Pará.               
      Diogo estudou numa pequena escola pública da periferia de Abaetetuba, a cidade mais próxima. O pai está eufórico e a mãe radiante, pois, pela beira de um rio, andaram na contracorrente do que se apregoa como caminhada linear para se chegar à universidade. Ou seja, estava de um lado da margem, enquanto avistavam o movimento da sociedade do outro, até alcançarem os próprios sonhos na vez do filho. Vô Bené chama isso de cuíra.
            Em “Democracia e Universidade”, Saramago dá voz a Diogo, que o Estado insiste em ignorar. Essa voz ecoa da nascente do rio - o umbigo da formação universitária. Então, quando Diogo puser os pés naquela universidade, que fica à margem de outro rio - mais largo, até -, certamente estará muito mais contribuindo para a universalização da academia, do que a academia para seu universo, afinal o tapuio leva na mochila o olho d'água do veio da vida.

4 comentários:

Valéria Normando disse...

"...harmonia...homem...ambiente..."

Valéria Normando disse...

"...harmonia...homem...ambiente..."

Erika Morhy disse...

Que reflexão e metáforas mais lindas, Roger. E, sabes, eu gosto muito, muito mesmo, do Eduardo Galeano, que tampouco é filho de universidades, mas dá um caldo e tanto em um sem número de acadêmicos. Geralmente isso causa surpresa. A mim surpreendeu. Talvez seja nossa formação urbanóide que nos ensina a dar valor apenas aos saberes produzidos neste lado do rio, infelizmente. Aos poucos e com alguma sensibilidade, podemos notar quão valiosos são esses outros saberes, os das nascentes dos rios, também das densas matas...
Sorte a Diogo. E viva Saramago.

Geraldo Roger Normando Jr disse...

Salve, salve, Erica. Galeano vem lentamente habitando meu vasto silêncio sobre sua obra e o que encerra as veias porosas de nossa América de saberes e dessaberes. Diogo é essa espécie de caminho a remo, que costumo apelidar de "dessaberes" em que nossas universidades precisam se atracar, para não se deixar ser levada pela maré dos que desprezam essa outra margem do conhecimento.