sexta-feira, 27 de maio de 2022

Todo congresso tem conversa de boteco - desconstruindo o metaverso

                                                                                       “-Quem tem saudades nunca está sozinho!”

Josué Montello, em: “O silêncio da confissão

 “Após noite longa em claro, ora andando entre a alcova e o quarto de vestir, ora sentada na poltrona junto à janela, ora deitada na cama desfeita, ela não saberia dizer ao certo o que sentia com a boca amarga, os olhos doloridos, um aperto na cabeça, à altura das têmporas. De repente esquecia-se de tudo para apenas pensar no novo dia que ia viver”. Assim se inicia o romance “O silêncio da confissão”, do maranhense Josué Montello, ao retratar o confinamento de sua principal personagem, após desatino na vida.

Não obstante, retomar o “velho normal” dos congressos após longa estiagem de eventos presenciais parece prenúncio dos próximos dias a se viver. Não que abandonemos o avanço tecnológico das confortáveis reuniões via web, impostas pelo confinamento, mas o silêncio e os desencontros transformaram-nos em avatares a viver metaversos. Parecia que tudo havia acabado para sempre por imposição de um destino implacável. Tudo isso, agora, começa a ser página solta, flutuando ao léu.

Em recente evento soteropolitano organizado pelo Grupo de Estudo em Oncologia Torácica (GBOT) e SBCT, dois ou três pequenos grupos de cirurgiões, nos intervalos das palestras, reuniam-se ao lado de fora, experimentando o desconfinamento: igual a reaproximação, congraçamento. A conversa foi da robótica às traquinagens na traqueia. Muito se aprende nessas prosas, que dão motes para bons textos e algumas viradas na rotina, ao misturar arte e a vivência científica.

Esse evento fez-me lembrar o espaço 2001, aquela odisséia do congresso em Gramado-RS, marcado pela explosão da Simpatectomia e pela ausência de Robert Ginsberg, que em seguida morreria de câncer de pulmão – a mesma doença que passou a vida inteira estudando e ensinando. Era o segundo dia do evento e eu subia, com algum esforço, pouco depois das sete da manhã, pela ladeira íngreme que dava acesso ao hotel do evento. No meio do caminho fui alcançado por um cirurgião maratonista, que puxou conversa. Eu esbaforindo, como se tivesse escalando o Aconcágua, e ele como se passeando pelo parque do Ibirapuera numa manhã primaveril de domingo. Dizia-me que todo congresso deveria ter um tema logo cedo e depois era fechar a cortina e sentarmos à mesa para papo de boteco regado a capuccino ou bom vinho. De forma descontraída, dizia que o melhor do congresso era o lado de fora das convenções. Salvei aquele dois-dedos-de-prosa no escaninho de minha memória por esses 20 anos.

As prosas off-road podem gerar espasmo de idéias e não raras vezes acrescenta  também elementos nas rotinas. A partir de então, o fiat lux se junta ao novo e tal como um gole de sabedoria, sacia a lacuna que carece. É isso que alimenta os dedos de prosa.

Em verdade, as conversas de boteco, em meio a eventos, sibilam sob silêncio e ressoam dentro do peito de cada um - tirando as bravatas, claro – e acabam deixando-nos enjaulados, numa chuva de mindset. Trata-se de uma confissão nua, como se as vestes que lhes vestem coubessem nas almas que delas precisam. Não se mede em quantum ou hertz, pois possuem luz própria, sistemas autônomos e sinapses personalizadas. Ao serem expostas ao consumo público, seja numa palestra ou em nova conversa informal, viram nuvens que se formam e se deformam nos passeios pelos ares - de um aeroporto a outro -, cujas ideias flutuam pelo cotidiano, até se transformar de vez em voz científica.

Será que o cirurgião focado atrai as coisas certas ou o forte curso das idéias exclui as erradas? Para a maioria dos cirurgiões é a mistura dos dois. No de hoje, o tema renasce de situação vivida há 20 anos para se juntar ao saudosismo do retorno às conversas de congressos, cujas reuniões pela web nos deixaram órfãos do espírito de congraçamento e dos abraços.