terça-feira, 12 de abril de 2022

Por que escrever?


    
        Todos os dias, em silêncio, um verso pede para nascer, sem acordar as crianças. Os primeiros raios apalpam a manhã, mas a vista da janela do quarto em que habito, por esses dias, tem um céu cheio de nuvens acinzentadas que hibernam as montanhas que rodeiam a cidade, batem à minha janela, assim como ofuscam os próprios raios de sol.

Os carros passam para os dois lados, pela mesma via, como se fossem para os mesmos destinos, ou avessos.

Sentado no parapeito da janela olho para fora à cata de mim, incrustado nesse mundo esférico e frenético, que não respeita as leis da natureza. Assim a chuva se impõe em meio ao assombroso tino do horizonte pronto para esconder o dia.

Uma jovem cruza o jardim, elegante, com guarda-chuva colorido, enriquecendo de contraste a fotografia desse dia denso.

Queria era que a beleza d'aurora chegasse leve e breve como convém à anunciação do dia, nascendo de um buraco negro para sugar-me palavras ao redor sem deixar perguntas, dúvidas e incertezas, de modo a cumprir o destino do dia, a sina de escrevinhador e ser questão ante à rima.

Não há som da natureza, apenas o dos carros zanzando para direita e esquerda, açoitando o meu ouvido de primata.

Talvez valha um Milestone no trompete de Mile Davis para que afoguemos o tropeço da revolução industrial ou se apegar a Manoel de Barros: “Sobre o nada eu tenho profundidades”.

Labareda e Corisco.

terça-feira, 5 de abril de 2022

As páginas solitárias da guerra


 
 A morte tece seu fio de vida feito do avesso

Dori Caymmi e Edu Lobo, na canção: "Desenredo" 

Caminhar por ruas estreitas e largas ou adentrar a shoppings parecem ações comuns dos reles viajantes em passeio. É ler de tudo. Natural que nos deparemos com imagens e propagandas para o chamamento a gastos: livrarias e livreiros é-me rotina. 

Assim adentrei em determinada livraria de Braga, Portugal, quando me deparei com o guia "Cultiva a saúde com livros". Na capa a linda jovem amontoa livros nos braços e põe um estetoscópio no pescoço. Fiquei a me perguntar como a imagem do estetoscópio aliado à leitura poderia salvar vidas.

 O editorial era sobre a guerra na Ucrânia. O guia relata que determinada jornalista recolhia depoimentos aqui e acolá, enxergava rostos aflitos e agitados, alguns chorosos e amargurados, tensos, inquietos, até que mais adiante observou uma jovem ucraniana com a cara num livro. Ao fundo percebia-se pó impregnado nos móveis de uma sala que aparentava ter perdido parte das paredes; ao redor muita agitação, relatava o autor do editorial. 

Em meio aos escombros deste fluxo contínuo e incontrolável de imagens televisivas e informação frenética sobre a tal guerra, numa amálgama de explosões e refugiados e feridos e mortos e soldados e testemunhos e discursos e opiniões e teorias e ruínas e mais refugiados e sirenes e bânqueres e choros e tiros e mais ruínas e tanques e mísseis e estratégias e apoios humanitários e refugiados. Tudo muito nervoso e angustiante, num desespero e desnorteamento sem fim. Assistir à reportagem de uma ucraniana calmamente sentada com um livro à sua frente, totalmente envolvida, abrigada numa cave enquanto decorria um ataque de mísseis, me deixou tonteado. À sua volta crianças choravam, mães carpiam e bramiam, outras rezavam com nervos à flor da pele. Os poucos homens que por lá estavam não paravam quietos, angustiados, sem saber o que fazer. O que se passava com aquela moça? As palavras dos demais saiam atropeladas, sem conseguirem conter-lhes o desvario e a ansiedade. Ela, plácida e serena, lendo um livro no alfabeto cirílico, alheia a toda aquela barafunda.

A jornalista se achega e pergunta-lhe o que está fazendo. Ela responde que está lendo, com certo ar de lógica. A jornalista, incrédula, imbuída daquele frenesi alucinado que de repente parece ter tomado conta do mundo, pergunta-lhe como consegue. A ucraniana, tranquila, com voz calma, explica-lhe que, quando ler, tudo o que a rodeia desaparece, que mergulha na história do livro e passa para outro mundo, esse onde decorre a narrativa, alheando-a dos medos e temores da guerra, dos horrores do presente. E diz isto com um quase sorriso, numa serenidade e bondade que contrastam vivamente com tudo a que a circunda, mesmo com essa excitação profissional de jornalista em situação de notícia. Depois cala-se e mergulha de novo na leitura. 


A jornalista continuou seu delirante inquérito, mas guardei esta leitura de pura lucidez em cenário de guerra, e agora já tinha como aliar ao estetoscópio: "a literatura é que nos pode salvar do manicômio".

Decerto os caminhos conhecidos da guerra não dão conta das agonias de seus filhos, pois há um futuro incerto acontecendo lá fora. Mas a vida pede um corredor humanitário e segue habitando-nos bem além das escolhas que fazemos.

Por mim, continuaríamos a ter asas pra brincar de passarinho em nossos sonhos e dar a mão a Deus, se ele quisesse passear numa praça em Kiev. Mais tarde, em qualquer boteco, poríamos o coração à mesa e celebraríamos a comunhão dos homens. 

Texto adaptado do escritor angolano Adolfo Luxúria Canibal e do poeta Corisco.