sábado, 27 de junho de 2015

A Pietá de Bailique

Bailique fica nos cafundós do mundo: acima da linha do equador, na curva do rio Amazonas com o Atlântico. Lá mora Jesus, 14 anos, filho único de um casal em perfeita harmonia. Em lua de quarto-crescente ele saiu escondido da mãe para caçar com a espingarda do pai, que saíra para pescar. Jesus não sabia que na escuridão da mata o ponteiro da hora não se mexe. Ainda ignora prestígio de homem e sedução de caçadores vis.
A mãe despertou cedo, viu a floresta ganhar seus matizes da aurora sem as cores de Jesus na sua rede. Ao dar por falta do menino achou de ir procurar abrindo picada pela mata fechada. Avistou o filho ensanguentado na cabeça, com respiração ofegante e desacordado-quase-morto, próximo a um córrego onde Catitus lambiam o sangue diluído na água. Disparo acidental, pensou. Aos berros, clamou pela vizinhança. Acudiram-na, colocaram no barco a motor e partiram no prumo de Macapá.
A viagem durou 12 horas. A mãe por todo tempo apoiou o filho no colo, feito a Pietá de Michelangelo, e se desesperançou ao ver que a paisagem se desbotava a cada hora carcomida pelo barulho do motor. A extrema-unção lhe parecia chegar antes daquele cais.
Era boca da noite quando aportaram e foram direto ao centro cirúrgico para abrirem-lhe o crânio e expurgar coágulos e estilhaços. A operação varou a noite.
Após três longos meses em CTI, Jesus desperta milagrosamente, porém com sequela respiratória. Aí que entramos na história.
Chegamos com dois palmos de paciência, pois Jesus tornou-se agressivo e a mãe-Pietá via-se deprimida diante daquela respiração estridente e aquele estranho cano de plástico no pescoço, por onde respirava. Disse-nos que até suicídio ele tentou, pois certa noite foi encontrado dependurado na janela do hospital. No outro dia mãe-Pietá estava chorosa, querendo abandonar tudo e pegar o rumo de casa, pois saiu sem se despedir do marido e já achava aquilo tudo um milagre dos céus.
Confessou-me que um douto disse que só restaria usar prótese importada ou manter a traqueostomia, pois o caso era perdido. Pedimos que ela revisse com carinho e tomasse a melhor decisão para enfrentarmos o desafio de corrigir, a bisturi, o estreitamento da traqueia, caso contrário, nunca mais Jesus poderia mergulhar no rio, dado o risco de entrar água pelo cano do pescoço e afogar os pulmões. Diante do exposto, a mãe ficou reflexiva...
Depois da confiança depositada em suaves prestações, acabamos realizando a operação e, apesar de algumas pequenas reintervenções endoscópicas - algumas delas com fortes emoções - Jesus ficou bem e teve alta no 15º mês. Isso mesmo: um ano e três meses. Ele passou dois aniversários no hospital.
Antes do regresso a mãe tirou fotos de um celular emprestado. Eu e ele fazíamos pose para comemorar: Era sina de Jesus e Pietá e a minha frágil sensação de servirmos para alguma coisa.
Depois de dois anos eles retornaram ao ambulatório. Quando o reencontrei, confesso, não reconheci. Jesus estava bem mais taludo. Segundo a mãe, por conta do açaí: “fruta santa, fruta mártir”, nos dizeres do poeta João Gomes. Deram-me um abraço com dose extra-forte de emoção e músculo. Jesus voltou a caçar, pescar, tomar banho de rio e até trepar no açaizeiro com peconha. Numa pescaria foi mordido por arraia, perdeu-se no caminho de volta e quase mata a mãe de susto.
Pietá disse-me ainda que, durante aquele suplício, o marido se enrabichou com uma “pequena” da outra banda da ilha e pôs fim à família, pois ninguém naqueles confins de mundo acreditava na ressurreição daquele menino Jesus.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Um coração "assim" de grande


Um coração "assim" de grande

Existe muito a questionar sobre o modelo de ensino que adotamos e que parece falido. A propaganda argentina não só me deixou emocionada, como me levou a pensar em tantas repercussões que podem ter na vida cotidiana essas escolhas que estruturam a sociedade.

Como se chega a casos como o da jornalista Joice Hasselmann que, de acordo com o sindicato paranaense, plagiou mais de 60 matérias? Cumpriu suas obrigações escolares e acadêmicas. Atuou em grandes meios de comunicação do Brasil. Chegou lá! Chegou onde? A uma prática repulsiva de, no mínimo, desrespeito aos colegas de profissão, pra não citar a infração ao código de ética e ao crime contra direito autoral.

Duvido muito que o caso dela seja uma exceção. Menos ainda que trajetórias de má fé sejam raras. Mas obviamente não acredito que a única responsável por estas condutas reprováveis entre nós seja a escola, ou qualquer outra instituição formal de ensino.

Existem iniciativas neste âmbito que são louváveis. Aí está o Peru na busca de incluir o idioma quéchua nos níveis primário e secundário em todos os colégios, sejam públicos ou privados.

Creio, no entanto, que o melhor mesmo é o exemplo de comunidades que não se valem desse modelo de ensino formal a que estamos acostumados, e que nos apressa, e que nos tolhe as virtudes, e que nos subordina ao mercado de trabalho, e...

Quando me mudei para Argentina, justo para dar continuidade à minha formação acadêmica e talvez ganhar um espaço melhor no mercado de trabalho e de construção de conhecimentos, vim com minha filha. À época, ela tinha seis anos e não sabia nenhuma palavra em espanhol. Pensei sinceramente em mantê-la fora do sistema educacional comum. Cheguei a dar os primeiros passos nessa direção. Estou segura de que ela não sairia perdendo em nada. Poderia aprender muito na convivência com outras pessoas do seu cotidiano, habitar diferentes espaços, escolher o que fazer, na hora que lhe fosse aprazível. Até poderia depois ir à escola.

A voz da encantadora Elis Regina ecoa muitas vezes em mim e penso que só quero uma casa no campo, onde possa tocar muitos roques rurais. Viver simplesmente.

domingo, 21 de junho de 2015

A encíclica médica

American Hearts II, Alfred Gorckel

No hospital onde exerço a docência, todo ano os novos residentes são convocados para pagar, com seu primeiro mísero salário, almoço para os mais antigos. É uma espécie de trote. No final, cada um fala sobre o futuro. Nemésio, um veterano de 32 anos, queria mesmo era falar do passado.
Com um sotaque carregado no nheengatu e beirando metro e meio de altura, contou que, ao receber o canudo voltou para Cametá para praticar seu sacerdócio e escrever sua encíclica profissional. Conseguiu emprego no único hospital da cidade, com parcos recursos. Ficou prosa por ser nativo.
O primeiro mês foi, sem dúvida, o mais doloroso. Ainda sentia no rosto a purpurina da festa de formatura ao mesmo tempo o pão insosso do futuro incerto. Até o dia de receber o primeiro salário, e sentir-se valorizado, ainda se via estudante caminhando descalço sobre um paiol de pólvora.
Contou-nos que em certo plantão recebeu uma criança procedente de uma comunidade ribeirinha, com tiros de cartucheira desferido acidentalmente no peito e barriga. A radiografia torácica era normal, mas a do abdome foi detectado um projétil bem no centro. A criança de apenas ano e meio foi encaminhada para o teatro de operações com sinais vitais normais.
Antes de começar, com muita dificuldade, Nemésio conseguiu pegar a veia profunda que passa abaixo da clavícula esquerda, do mesmo lado atingido. Após a quinta tentativa conseguiu progredir o cateter, porém, pela urgência e perda de tempo ocorrida, correu para se preparar e auxiliar na operação do abdome. O inventário mostrou pequeno ferimento no intestino delgado, o qual foi prontamente reparado. Previsão de bom prognóstico.
No final da operação o anestesista alerta que, mesmo tomando toda aquela medicação, soro e sangue, o quadro estava piorando sem razão aparente.
O garoto foi para a enfermaria cansado e de fôlego encurtado. Três horas depois desenvolveu parada cardíaca, morrendo no meio da madrugada.         
Nemésio deu a notícia aos jovens pais, ainda adolescentes. Detalhou os passos evolutivos e recebeu um abraço condolente e emocionante, sem poder detalhar a causa mortis
O resultado da necropsia saiu no meio da manhã: pulmão colabado e o peito cheio de líquido, levando a entender que o cateter estava fora da veia e todo aquele conteúdo, que deveria melhorá-lo, acabou colaborando para aquele desfecho.
Nemésio chegou a sua casa, trancafiou-se no banheiro e começou a rezar. Suas lágrimas se misturavam com a água do chuveiro. De boa fé, como são todos os jovens médicos, não demorou muito tempo para entender que aquele anjo lhe serviu para reluzir o fogo da inquietação.
Nemésio resolvera deixar aquele interior após seis anos de trabalho árduo, carregando aquela história farpante e dois dedos de frustração. Depois do episódio resolveu juntar dinheiro, arrumar as malas e rumar para Belém acenando pela foz do Tocantins. Já havia se casado e constituído família. Deixou a esposa com dois filhos - um de colo – e seguiu atrás de reaver seu passado, com a certeza de voltar e reescrever sua encíclica.

Indagado sobre o seu maior aprendizado, ele entoou: eu trocaria esse prato de comida e todos os que vierem nesse período de residência pela vida daquele Querubim, porque não há tortura pior do que assistir a uma morte evitável; por isso estou aqui.

Labareda, do bando de Corisco.

domingo, 14 de junho de 2015

Morre o poeta da esquina

Do corpo desse meu irmão que já se vai
Revejo nessa hora tudo o que ocorreu
Memória não morrerá
Fernado Brant, em Sentinela (parceria com Milton Nascimento)

Já não sonho, hoje faço, com meu braço, meu viver. A mensagem do Mario Rocha e João Pinheiro, velhos amigos, e Sizenando Starling, cirurgião e amigo belorizontino, alertavam-me que Fernando Brant, um dos fundadores do Clube da Esquina, acabara de falecer após submeter-se ao segundo transplante de fígado.
Eles sabem de minha admiração por Brant, por isso me alvejaram. Então corri para minha estante na busca de Casa aberta (2011), adquirido na feira pan-amazonica do livro. Abri numa página qualquer: “Um punhal nos rasga o fundo no peito quando um amigo desse quilate é obrigado a nos deixar”. Percebe-se que a condoída frase descreve a partida do amigo Veveco, da musica “Veveco, Panelas e Canelas”, parceria com Milton Nascimento, entoada na voz de Beto Guedes. Tavinho das Panelas e Chico da Canelas eram outros dois amigos homenageados. Brant guardava os amigos dentro do peito e nas entrelinhas de suas obras. E nós o guardamos nas lembranças dos tempos das batidas de violão pelas esquinas da Belém dos anos oitenta.
Neste 12 de junho, Veveco, vestido de branco, recepcionou Brant no andar de cima. Ele agora se senta ao lado de Vinicius, Tom Jobim e tantos outros compositores de nossa esplendorosa MPB. Só que Brant carrega com sua trupe a insígnia do Clube da Esquina, movimento musical surgido nos arredores de Belo Horizonte, paralelamente à Bossa Nova, no contraponto da Jovem Guarda e Tropicalismo. O som dos “mineirin” se fundia com as inovações da Bossa Nova e continha elementos do jazz, rock – principalmente os Beatles– e pitadas da música folclórica dos negros mineiros.
Aconteceu que as letras enternecedoras do Clube da Esquina falavam de amizades, infância de rua, juventude e as ladeiras das alterosas. Brant foi o principal letrista desta esquina repleta Wagneres, Miltons, Lôs, Betos, Toninhos e Flávios, que se rendiam à sua poesia.
“Casa Aberta”, o livro que me chamou atenção logo na capa, é fruto das crônicas do jornal Estado de Minas e mostra a face literária de Brant, como relendo Sêneca diante de um copo de cerveja, no Leblon. Depois não despista quando fala de suas inspirações: Cecilia, Bandeira, Cabral, Lorca e Pessoa. Mas é em Drummond que ele se farta. Tavinho Moura foi outro parceiro em Fogueira do Divino, musical que fala de nossa história e de nossas belezas: a vida é um rio de sangue, óvulos e sêmen que vai dar no mar que pode ser um povo, uma nação, uma cultura. Finaliza: Montani semper liberi, ou seja, Minas: os montanheses serão sempre livres, referindo-se ao Brasil das montanhas, onde fervia o ouro no século XVIII e a escassez de liberdade. O livro é para se ler comendo pão de queijo.
Mas a música é o expoente maior de Brant. Fez letras com as cores de seu país, sem deixar de ser universal, como em Travessia e Coração de estudante. Presenteava-as a Milton como se fosse um singelo aperto de mão numa manhã de domingo pelas ruas de Santa Teresa, onde nasceu o Clube da Esquina.

Brant fez a travessia na certeza que amigo é coisa para se guardar debaixo de sete chaves, nos moldes da capa de Casa aberta. No seu túmulo estaria epigrafado: toma conta da amizade.

domingo, 7 de junho de 2015

Cesta do enfraseamento: a insignificância do perdão

                  A humanidade começa nos que te rodeiam e não exatamente em ti.
Valter Hugo Mãe, escritor angolano, em: “A desumanização

Já se era Lisboa, descida do castelo de são Jorge, no fluxo dos vagões que bucolizam a velha capital lusa, por onde transeuntes se misturam com turistas e se esbarram pelas calçadas estreitas. Na descida já se tinha uma ideia do que se enfrentaria: um calor de tostar o toutiço. para isso, nada melhor que um gole da Sagres para equilibrar o pH de um flaneur.
No caminho a noticia do jornaleiro: "mãe é presa por deixar dois filhos em cativeiro por oito anos."
Então paramos eu e Charles Dickens no primeiro quiosque, ao pé da ladeira, sob a sombra de uma árvore frondosa. Pagamos um euro por cada copo e sentamos. A cerveja descia suave, a relembrar o alentejano da noite anterior harmonizado com bacalhau lá pelas curvas da Marquês de Pombal.
Estávamos degustando e já ensaiando maquinalmente o segundo pedido quando subitamente sofremos um duro golpe: alguém bate na mesa, tomba e a cerveja é nocauteada antes do gole final. Fora um miúdo de cerca de 10 anos de idade que involuntariamente deu a cotovelada na mesa e gerou o pequeno acidente. Nada demais pelo ato em si, mas a mãe aturdida e sem umbigo disse ao miúdo, no sonoro português de Portugal, que conversaria em casa sobre aquele estorvo. Ela ameaçava-o vorazmente apontando dedo no rosto. Deu-nos a impressão que o exército de Salazar fuzilaria aquele garoto. Ela não percebia que ao pé do castelo o terreno é íngreme e o piso irregular. Qualquer movimento seria capaz de causar incidente.
De imediato a garçonete, uma rapariga loura, de pele clara, rosto e nariz afilados, sugerindo traços do leste, juntou os copos e dispôs-se a nos repor, com juros altos, os decilitros que regaram o solo. Retornou com o copo cheio. Claro que aceitamos, ora-pois, além da gratuidade, afinal de conta, já estávamos partindo para o segundo tempo e a sede ainda não havia preenchido o imenso esforço de conhecer a história dos mouros e o castelo de são Jorge, sob aquele calor que mais lembrava o dos trópicos. Sentamos e cumprimos a segunda etapa sem direito à prorrogação. Charles me chamou a atenção que a rapariga se sensibilizou mais com a perda líquida do que pela reação vaporosa daquela mãe.
Depois descemos no rumo do Baixo-Chiado com a certeza de que vira um relâmpago saindo daquela mãe. No caminho voltamos a repensar sobre a atitude da mãe, punitiva com o filho e menos incapaz ainda de nos pedir desculpas. Pensamos que fizesse parte do comportamento do lugar, pois acabavam de se noticiar que certa mulher havia enclausurado seus filhos. A foto do jornal escancarava a mãe na viatura da polícia, enjaulada.
Seria a vida uma luta de todos contra todos? Parecia-nos, pelo menos por aquela conjunção de momentos mouros. Mas como se desenrola essa luta numa sociedade mais ou menos civilizada, com a vertente europeia? As pessoas não podem atirar uma bala de fuzil contra outras, mas aquele momento me pareceu provável, mesmo tendo uma criança na linha de frente. Lançou-se, ali, sobre o outro, o opróbrio da culpabilidade. Vencerá aquele que conseguir tornar o outro culpado? Perderá quem confessar o erro?
Seguimos pela rua mergulhados em pensamentos inconsoláveis, tentando entender o que nos pareceu incompreensível; ou confirmando que cada ser humano é o decalque do segundo o qual fora concebido por sua mãe. Caminhando na direção da razão (ou para Santiago de Compostela), ainda cruzamos com a garçonete, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar para esquerda ou direita, nem para o cérebro ou o coração, preocupada apenas com os decilitros derramados.
Dickens me confessou que foi a partir dali que criou Oliver Twist. Para mim, a partir dali, meu pensamento ficou perdido numa rota imprevisível rodeado pela insignificância do meu perdão.