American Hearts II, Alfred Gorckel |
Com um sotaque carregado no nheengatu e beirando metro e meio
de altura, contou que, ao receber o canudo voltou para Cametá para praticar seu
sacerdócio e escrever sua encíclica profissional. Conseguiu emprego no único hospital da
cidade, com parcos recursos. Ficou prosa por ser nativo.
O primeiro mês foi, sem dúvida, o mais doloroso. Ainda sentia no
rosto a purpurina da festa de formatura ao mesmo tempo o pão insosso do futuro
incerto. Até o dia de receber o primeiro salário, e sentir-se valorizado, ainda
se via estudante caminhando descalço sobre um paiol de pólvora.
Contou-nos que em certo plantão recebeu uma criança procedente de
uma comunidade ribeirinha, com tiros de cartucheira desferido acidentalmente no
peito e barriga. A radiografia torácica era normal, mas a do abdome foi
detectado um projétil bem no centro. A criança de apenas ano e meio foi
encaminhada para o teatro de operações com sinais vitais normais.
Antes de começar, com muita dificuldade, Nemésio conseguiu pegar a
veia profunda que passa abaixo da clavícula esquerda, do mesmo lado atingido.
Após a quinta tentativa conseguiu progredir o cateter, porém, pela urgência e
perda de tempo ocorrida, correu para se preparar e auxiliar na operação do
abdome. O inventário mostrou pequeno ferimento no intestino delgado, o qual foi
prontamente reparado. Previsão de bom prognóstico.
No final da operação o anestesista alerta que, mesmo tomando toda
aquela medicação, soro e sangue, o quadro estava piorando sem razão aparente.
O garoto foi para a enfermaria cansado e de fôlego encurtado. Três
horas depois desenvolveu parada cardíaca, morrendo no meio da madrugada.
Nemésio deu a notícia aos jovens pais, ainda adolescentes.
Detalhou os passos evolutivos e recebeu um abraço condolente e emocionante, sem
poder detalhar a causa mortis
O resultado da necropsia saiu no meio da manhã: pulmão colabado e o peito cheio de líquido, levando a
entender que o cateter estava fora da veia e todo aquele conteúdo, que deveria
melhorá-lo, acabou colaborando para aquele desfecho.
Nemésio chegou a sua casa, trancafiou-se no banheiro e começou a rezar.
Suas lágrimas se misturavam com a água do chuveiro. De boa fé, como são todos
os jovens médicos, não demorou muito tempo para entender que aquele anjo lhe serviu para reluzir o fogo da inquietação.
Nemésio resolvera deixar aquele interior após seis anos de
trabalho árduo, carregando aquela história farpante e dois dedos de frustração.
Depois do episódio resolveu juntar dinheiro, arrumar as malas e rumar para Belém acenando pela foz do Tocantins.
Já havia se casado e constituído família. Deixou a esposa com dois filhos - um
de colo – e seguiu atrás de reaver seu passado, com a certeza de voltar e
reescrever sua encíclica.
Indagado sobre o seu maior aprendizado, ele entoou: eu trocaria
esse prato de comida e todos os que vierem nesse período de residência pela vida daquele
Querubim, porque não há tortura pior do que assistir a uma morte evitável; por
isso estou aqui.
Labareda, do bando de Corisco.
Um comentário:
Grande Roger!! Estou na Medicina desde 1985! Convivi e protagonizei muitas histórias, não tão dramáticas, como do nosso Nemésio, porém não menos marcantes!! Tenho um filho que insiste seguir meuá rumos. Confesso que me sinto orgulhoso, porém algo apreensivo!! Diz que quer ser cirurgião como o seu Pai! Confesso que tentarei induzi-lo a ser menos invasivo. Texto emocionante!! Um abraço de seu velho Amigo, emocionado e com a vista mareada.
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