quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

“Só sei que nada sei”

Tenho um gosto danado pelo comum, pelo que acontece e não se festeja. Isso tudo escorre de mim quando eu chego ao hospital no início da manhã, hora em que há suavidade no céu infundo e o verde denso do estacionamento repleto de árvores gigantes. Hora em que há mais espaço pelo arvoredo, onde o doce pungimento das almas penadas ali desfilam. A paisagem é um estado da alma e chegar cedo é bom motivo para conhecer o desafiante Quantonio, que aos 17 anos parou de comer sólidos. Por conseguinte, desaprendeu a mastigar. Chegava naquele momento aos 30, mas sofria com a possibilidade de não mais poder engolir o pão de cada dia. Foi-lhe sapecado o diagnóstico de “estenose de esôfago”. Estenose em medicina é o mesmo que estreitamento, obstrução. Uma das causas é tumor maligno. E essa possibilidade foi aventada para o Quantonio.

Dizia que melhorava por uns tempos, depois voltava a ter dificuldades para engolir. No máximo pastas ou sopas. E assim deixava a vida lhe levar. As endoscopias com dilatações sempre mostravam a mesma coisa, até que ano passado ficou crítico: só passava líquido. Até o açaí do grosso ele abandonou, com medo de ficar entalado. Tomava só do fino. Agoniado, acabou internado para usar métodos médicos. Passaram a sonda pelo nariz e a comida, liquidificada, chegava até o estômago feito um escorrega-bunda, atravessando o órgão oco e estreitado.

Na sessão de discussão de casos complexos em câncer ficou descartada tal hipótese. Menos mal, porém o último exame já mostrava que 75% do diâmetro estava ocluído. A doença progredia e ele estava cada vez mais magro. Fez um exame sofisticado chamado ecoendoscopia. Não deu para retirar fragmento para exame, mas se viu que por fora do órgão havia compressão. Já era alguma coisa - a luz de candeeiro no meio da floresta escura. Então só restava a cirurgia.

Antes de marcar a operação, normalmente às sextas-feiras, consultei o calendário, pois era mês com sexta-feira 13. Havia uma salvadora sexta antes da treze. Agarrei-me nela. Não gostaria que os anjos do mal, durante a cirurgia, ficassem azucrinando ao pé do meu ouvido, destilando premonições.

Diante de casos complexos, assim, é sempre bom ligar para amigos. Então consultei um com expertise em esôfago. Fui desanconselhado a operar. Sugeriu que repetisse as dilatações até ficar permeável. Aquilo seria meu fim - aliás, o de Quantonio. Não tinha mais como desmarcar, após algumas dilatações sem sucesso.  Seria uma decepção muito grande para ele, que apostou tudo no bisturi, pois jamais se via tomando açaí por sonda e sem farinha de tapioca.

Então fui pro campo ressabiado e com a certeza de que não sabia o que fazer - agora somada a outra opinião. Acordei com os sinos da Sé, tomei café; dei no pé. Fui com fé.

Montamos o sistema de vídeo à câmera de alta resolução e começamos: Eu, a Priscila, residente de cirurgia geral e vários alunos - por se tratar de hospital universitário.

Não obstante um e outro me perguntavam o que ia fazer. Dizia: biopsia. Nada mais que isso. Fui peregrinando calmamente com os instrumentais, procurando entender aquela anatomia razoavelmente deformada. Era como se estivesse me apoiando ao caduceu, pelo caminho de Santiago de Compostela.

Fragmentos para amostra foram retirados e o órgão liberado de amarras cicatriciais, endurecidas. Findou aí. Depois despertaram o Quantonio. Saí de campo com a certeza absoluta que deveria ter dado ouvido ao meu amigo mais experiente. Seria desastre maior se tivesse ocorrido alguma outra complicação, já que o tórax é área de cano grosso e qualquer vazamento pode custar vida. Aí eu me jogaria de cabeça do segundo andar. 

No dia seguinte, ao despertar ainda com a sonda, Quantonio sentiu a estranha sensação que a sua saliva descia suave. Fez um teste com um copo d’água; em seguida foi café e um pedaço de pão de sua acompanhante, que estava dormindo. Abocanhou sem dó. Desceu macio. Ali se viu atravessando uma ponte, agora mais alargada, bem devagar, à velocidade mínima autorizada para dar ao tempo a melhor tática para restituir o seu fluxo de vida e a sua cura.

Permanecera em silêncio e com sonda por mais dois, até a alta. Acordava cedo surrupiava o pão de todos da enfermaria só para testar a deglutição. Nada de entalo. Ele não se conteve e contou a verdade ao médico que passava visita. O médico tomou um susto e disse-lhe: “todas as coisas relegadas ao abandono, se continuam a respirar, remete-nos a Deus. Estás de alta”.

Ou seja, os físicos, em suas exatidões científicas, explicam, escrevem, detalham leis, prescrevem mundos e equações, mas existe pequena quantidade que não cabem na medicina, pois algumas vezes estamos diante do mistério, do escondido, sem deuses oniscientes a legislar sobre o futuro do presente. Por certo, ao longo da jornada aceitamos o incerto, o duvidoso. Certezas, como a de Quantonio, não têm encantos. Seríamos pobres sem a clareza do talvez. Embalar palavras para alimentar epistemologias serve-nos apenas para dar coragem para atravessar cada novo dia que alvorece.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Quando eu tentei assassinar o Tasy

Para Helena Brígido 

    Ontem uma coruja me acordou às cinco, crocitando Edgar Alan Poe. Nos contos de Poe, quando isso acontece, a morte violenta é prenúncio. Então, com o azar lançado, empunhei meu parabelo num lado da cintura e uma adaga do outro e saí para trabalhar, como faço todos os dias. Vai que alguém queira me tirar do sério... 

    Dei partida na ignição. Na primeira parada já havia risco de luz no céu do Guamá. Foi numa casa de saúde cujo nome tem contorno de modernidade. À primeira vista não consegui falar correto, mas uma enfermeira me disse que tinha que dobrar a letra I, de ignorante, para "ai", mas sem se contorcer de dor. Era o segundo prenúncio de morte: a dor. Fui consultar uma obra de Sheakspeare, o usuário da palavra que dava nome ao hospital e, estava lá, a morte rondando as cortinas de Hamlet (todo mundo antes de morrer grita ai). Por um átimo de segundo, tive uma disritmia. Percebi que algo terrível estaria por romper a trava de segurança de meu parabelo ou de minha adaga. Eu sentia o gosto salubre de sangue. Lembrei da época militar, quando tínhamos que chupar o sangue do pescoço da galinha esgorjada.

    Pois agora, depois de passada a pandemia e felizmente após a quarta dose da vacina, e eu ter me intoxicado de cloroquina e Ivermectina, esse esses dois arquitetos das palavras resolveram se encher de intimidade comigo. 

    Foi batata! Sentei meio indisposto na cadeira em frente ao computador, encarando o Tasy e uma puta dor me abateu: cólica cerebral. Além do gosto, agora sentia o cheiro de pólvora no ar. Ou melhor, do sabonete Phebo. Amofinei. Mesmo de máscara, cheguei a ouvir o vírus dizer: "Perdeu, Mané!". Quase solto o barro, ou melhor, o barroso. Não consegui trancar, pois nada estava tranquilo.

    Mas não me rendo facilmente. Afinal, a turma que acorda cedo só se entrega após teclar imprimir e depois ouvir o zunido silencioso da máquina de impressão. Não deu. Deu foi barro. Nem entrei no programa, sequer. Por 20 minutos teclei a senha e... nada. Era a sétima em sete meses ali, naquele hospital pomposo. Ontem mesmo eu fizera a última troca. Mas nada. De repente, uma voz sai da tela: "você é um idiota"... A voz que ouvia saía com um timbre que me fez lembrar "O último tango em Paris", ao pomo de Marlon Brando. Era chamamento. Era a hora. Então,  antes que me derrotassem, saquei a adaga e esfolei a tela do computador, como se estivesse à frente de um Di Cavalcanti. Fiz o mesmo em mais outras duas, três, quatro...

    Saí do hospital algemado. No dia seguinte vi a reportagem na TV. Fui preso pela PF e quem me algemava era o Japonês da Federal. É impossível resistir a um complô. O xilindró era meu destino certo. Minha alimentação tem sido à base de brioches, salmão na brasa com manteiga de laranja, bacalhau a todas as modas, pirarucu de camiseta, ovas de tainha, aves ribeirinhas ao tucupi, como dizia o meu Coach. Por sobremesa alfajores argentinos e cannoli italianos, ou musse de cupuaçu. por opção. Poderia até estar pegando o rango da Papuda, sem reclamar. Ao contrário dos briosos "patriotas", "anarquistas do bem", que tantos sacrifícios fazem pra nos livrar do comunismo, esse mal terrível deve ser a Covid dos sistemas de saúde que nos encarcera. 

    Creio que, mesmo após eu ter sido enjaulado por tentar destruir o sistema do sistema, azucrinado por Marlon Brando, Poe e Hamlet, o sistema ainda respirará pela pele e eu ficarei o resto da vida sendo chamado de otário.

Labareda do bando de Corisco

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Certains songs...

 

Reports in the literature are limited in evaluating the complications of penetrating laryngotracheal injuries

Mario López, Stella Martinez and Carlos Carvajal,

J Cardiothoracic Trauma 2022;7:10-14.


    I was listening to Milton Nascimento and, at the same time, contemplating a dense scientific article written by a group of surgeons from Bogotá. The melody was instrumental, but inevitably the lyrics levitate slowly and pass through the clear light of the relationship with what is read: Certain songs that I hear fit so deep inside me, that I need to ask how I didnt do it?” And I kept admiring that article that freed me from the lost ideas in my thoughts.

    The more I read, the more I felt like a liar, thinking I had written that article. What audacity (or schizophrenic outbreak)! In my conjectures, there is a sore point that emergency surgeons tend not to discuss: the follow-up and the risk of late complications in patients with neck and airway injuries. So, I need to say how I didn't write this article. How did I not write that thought?

    Gathering the pieces of the floor, it's no longer time to regret. It's time to transform the ideas into a scientific article and disseminate it to the world, with the database we have. Our number of cases (in six years) is greater than those in the Colombian article published in The Journal of Cardiothoracic Trauma - a new journal whose editors are the legendary Kenneth Mattox, the renowned Demetrios Demetriades and the paladin Moheb Rashid. I sent an e-mail to editors and Rashid, one of those surgeons who is passionate about the trenches of trauma - as I once was - who does his best for this journal, answered me. The article is called Factors Associated with Early Complications of Surgical Management due to Penetrating Laryngotracheal Trauma in Colombia”, by Mario López, Stella Martínez and Carlos Carvajal. Stella is well known among Brazilians in the area of thoracic surgical oncology, but, from about what I have read, she also shares her knowledge in the field of trauma.

    The work will serve as a pillar for ours, in the statistical analysis phase, in which it evaluates, by rigid endoscopy (videolaryngotracheoscopy), the long-term behavior (at least three months), the patients who were admitted to the emergency room, after trauma to the larynx and trachea.

    As every job always leaves a room for the next one, a kind of call, the airways group at the Galileu hospital (SUS/SESPA/Government of Pará) dares to propose an answer to the queries of the Colombian job, which confesses: it is important to highlight that the limitations of this study are related to its retrospective design, a small number of patients in a single center, and a short follow-up time. Despite this, this study is one of the first to describe the factors associated with early complications of penetrating laryngotracheal trauma in the literature, the factors associated with early complications of penetrating laryngotracheal trauma.

    Now it's a matter of waiting for Mattox, Demetriades and Rashid, from The Journal of Cardiothoracic Trauma, to accept our proposal to answer the questions of the Colombian group. Such acceptance may represent what I usually call the positive entropy of the scientific universe, that is, Milton Nascimento and Tunai, the Brazilian authors are happy to say that, the heat of reading invades, burns, and encourages”.

Prof . Roger Normando, MD

Thoracic Surgery – Hospital Universitário Barros Barreto - Universidade Federal do Pará - Brazil

domingo, 8 de janeiro de 2023

Descanse em paz, Roberto!

             Eu ainda nem tinha dez anos de idade quando, ainda no interior do Acre, havia sido sorteado para férias no Rio de Janeiro. Como meu pai tinha um amigo carioca que era sargento do Exército, ele se prontificou a catalisar essa felicidade. Viajei num Bufalo da FAB, sob a tutela do militar. O Sargento, por nome Renato, que também era vascaíno, proporcionou-me ir ao Maracanã para ver um novo ídolo do Vasco que acabara de chegar: Tostão, tricampeão mundial. São fios de lembranças, mas o Vasco ganhou, e quem fez o gol foi um garoto que estava surgindo: Roberto. Depois descemos até o bairro de Botafogo e fomos comemorar numa churrascaria chamada Pavão, que hoje não mais existe.

Numa outra arrumação, agora em São Januário, era fim de tarde no Rio, e eu havia levado meus dois filhos, ainda muito pequenos, para conhecer a colina e ver o treino da Cruz de Malta, antes da estreia no mundial de clubes de 2000. Foi quando Dinamite cruzou à minha frente no portão principal da entrada de São Januário. Roberto, então da diretoria do Vasco. Eu dirigi-lhe a frase: - Eis o motivo de eu ser vascaíno... Ele ouviu e, claro, voltou, após se distanciar cerca de um metro. Apertou minha mão e agradeceu as palavras. Sempre sorridente, aproveitei e pedi para que posássemos para foto. Abraçamo-nos de lado e, de frente para minha Pentax K1000, deu-se o clique. Minha esposa registrou aquele momento. No mesmo cortejo ele me perguntou o que significava Vascoalhada, grafado logo acima do escudo da camisa que eu usava. Disse-lhe que era um time de peladeiros em Belém, que prestava homenagem ao personagem Coalhada, do vascaíno Chico Anísio. Num tom de brincadeira, por conta do nome, disse que gostaria de jogar naquele time. Despedimo-nos. Ficou a lembrança.

Herdei esse carinho por Roberto e pelo Vasco por meio de meu Pai que, assim como eu, gostava muito de futebol. Certo dia perguntei a ele o porquê de ser vascaíno, já que não tivera nenhuma relação com a colônia portuguesa e nunca tinha ido ao à cidade Maravilhosa. Prontamente respondeu: por ser o primeiro time de futebol a receber negros em seu elenco. Se o não foi o primeiro, não há dúvida que adotou uma atitude que contribuiu decisivamente para a inclusão de atletas negros, mulatos e demais brasileiros que não pertenciam à elite. Naquela época, o racismo imperava no futebol brasileiro.

Foi nesse clima que Roberto, oriundo de Duque de Caxias, viveu sua vida de paixão pelo Vasco da Gama e conquistou o coração de diversos brasileiros. A sua forma de dar atenção aos seus fãs revela o berço humilde de seu criadouro, que se estendeu à política e à presidência do clube.

Descanse em paz, Roberto.