sábado, 19 de março de 2022

As flores da guerra

    Encheram a terra de fronteiras, 

carregaram o céu de bandeiras, 

mas só há duas nações - a dos vivos e dos mortos. 

Mia Couto 


 Enquanto escrevo esse texto, o mundo lá fora explode e uma criança tremula a bandeira azul e amarela de seu país - tal como uma flor -, ao lado de uma poeira de estupidez que a cerca. Outra atravessa a fronteira sozinha, acompanhada pelas flores que a ladeiam, carregando no seu alforje um retalho de esperança. Quase 100 crianças já morreram e mais de um milhão passaram pelas fronteiras da Ucrânia.

    O que nos choca nas imagens que correm o mundo pela Reuters, além do tanto de mortes, é o fato de que elas não mostram um lugar previamente precário sendo cada vez mais devastado; não, vemos lugares previamente frondosos e bem estruturados transformados em ruínas: são prédios residenciais esburacados por mísseis. Estamos testemunhando o progresso contra o progresso; dinheiro contra o dinheiro; sofisticação tecnológica contra algumas das cidades mais desenvolvidas do mundo. O mais letal que o dinheiro pode comprar contra o mais belo urbanismo que o dinheiro pode cultivar. Não há belas artes, não há belas flores nos jardins, há balas e bolas de canhões. Não há riqueza e não há tradição que nos impeça de agirmos contra nós mesmos e, assim, a jornada virou um paradoxo delirante.

    Importa-nos muito, e estamos aqui, seguindo incólumes, sobrevivendo e assistindo à derrota de uma pandemia frente às vacinas – embora haja alguns que desdenhem - enquanto a dita nação tenta roubar a cena com seus deuses-déspotas. Se construímos nosso próprio cenário de progresso e se tentamos nos desafogar desse mar negro da discórdia, resta-nos a solidariedade.  Talvez, dada a diversidade de opiniões e ações, sejamos merecendentes dessa guerra.

    Em situações de desassossego, como o de hoje e o de ontem com a Síria, valha resgatar os poetas. O meu predileto é Corisco, que me mandou o texto seguinte sob forma de mantra para acalmar minhas desordens e minhas histerias. Ele dizia que as flores da rua de um bombardeio nascem secas, em vida. Se buscam o sol por instinto, por necessidade, pela vitamina B12, crescem à força, impelidas pela necessidade, mas na mesma dose de força fenecem. As flores da desesperança plasmam a seiva da desgraça, e as trapaças se agarram ao destino, como desatino dos desassistidos; dos que buscam o nada quando já perderam tudo - exceto restos e migalhas de vida.

    No minuto seguinte do próxima amanhã, e se os déspotas permitirem, as flores do pântano social são vistas como coisa normal e a abelha há de apreciá-la no próximo voo. 

    Ao curso natural das guerras, há uma consequência natural das flores regadas às migalhas das caridades das gentes: a morte das flores das ruas, que são acordes ressonantes; que Deus se apiede de Deus por esses buquês que, também são seus, que, aliás, são nossos.