quinta-feira, 24 de abril de 2014

Cesta do enfraseamento: Bala perdida

Segue a Cesta, em procissão de velas, ainda embebida no sentimento de perda de Gabriel Garcia Márquez (missa de sétimo dia). Retirei o texto de hoje, "Bala perdida", das páginas de "Cem anos de Solidão". É a história do dançarino que morreu com um tiro no peito, sem se saber de onde veio o disparo.

...Um fio de sangue escorreu por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu à rua, continuou seu curso direto pelas calçadas desiguais, desceu escadarias e subiu parapeitos, passou ao largo de todo complexo Pavão-Pavãozinho, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, girou em ângulo reto na frente da delegacia, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas grudado no rodapé das paredes para não manchar as tapeçarias, continuou pela outra sala, driblou numa ampla curva a mesa da sala de jantar, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por baixo da cadeira do delegado, que dava uma aula de aritmética para o escrivão e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde Maroca, a cozinheira, se preparava para quebrar trinta e seis ovos para o pão. Era hora da merenda.

- Ave Maria Puríssima! - gritou a cozinheira.

Seguiu o fio de sangue em sentido contrário, e à procura de sua origem atravessou a despensa, passou pelo varanda das begônias onde o escrivão cantava que três e três são seis e seis e três sãnove, e atravessou a sala de jantar e a sala de visitas e continuou em linha reta pela rua, e depois dobrou à direita e em seguida à esquerda até chegar no complexo Pavão-Pavãozinho, sem nem lembrar que usava o avental de cozinha e as pantufas caseiras, e saiu para a praça e entrou pela porta de uma casa onde não havia estado nunca, e empurrou a porta do quarto e quase se afogou no cheiro de pólvora queimada, e encontrou o dançarino esticado de boca para baixo no chão sobre as polainas que acabava de tirar, e viu a fonte do fio de sanguque já havia deixado de fluir do seu tórax. Não encontraram nenhum ferimento em seu corpo nem conseguiram localizar a arma. Também não foi possível tirar do cadáver o penetrante cheiro de pólvora. Primeiro lavaram o corpo três vezes com sabão e bucha, e depois o esfregaram com sal e vinagre, e em seguida com cinza e limão, e por último o meteram num tonel de barrela e o deixaram repousar por seis horas e nada de encontrarem estilhaços. Tanto o esfregaram que os arabescos da tatuagem começaram a desbotar. Quando inventaram o recurso desesperado de temperá-lo com pimentas e cominho e folhas de louro e fer-lo um dia inteiro em fogo brando, já havia começado a se decompor e precisaram enterrá-lo às pressas. Foi trancado hermeticamente num ataúde especial de dois metros e trinta centímetros de comprimento e um metro e dez centímetros de largura, reforçado por dentro com chapas de ferro e aparafusado com arruelas de aço, e ainda assim dava para notar o cheiro pelas ruas por onde passou o enterro.

Adaptado de "Cem anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Cesta: Carta para uma estrada

Uma estrada fica deserta por um motivo: solidão. Esta por onde ando, agora, está abandonada. Samaumeiras, Açaizeiros e Coqueiros estão em silencio de estátua; Bem-te-vis não entoam silvos; Japiins não esvoaçam. É uma estrada sem rumo e sem asfalto dentro de um Malaquias a esmo, na rota do mar do Caribe.
Li, ontem, no "El Universo": Gabo, criador de Malaquias, esvaiu-se pelas próprias linfas.
Desde Zipaquirá ouço vozes; desde Cartagena leio coisas do realismo ilusório. Desde Macondo vivo sonhando com"buenos dias".
Essa estrada pensa que Malaquias e Eu-enfraseador, homens de tantos descaminhos, não sofrem, sem ônus, de solidão.
Ilusão...

Ass: Labareda, do bando de Corisco, hoje na pele de Malaquias.

A Erendira de García Márquez e Ruy Guerra

Francisco Rocha Junior escreve sobre Gabriel García Márquez como o autor da saudade e da nostalgia. Nas minhas memórias afetivas, García Márquez é o primeiro autor que traduziu a influência do macroambiente em que vivemos nas relações pessoais - familiares, amorosas, profissionais. La increíble y triste historia de la cándida Erendira y su abuela desalmada é um conto de García Márquez  escrito em 1972 e publicado em 1978.
Em 1983, Ruy Guerra, o cineastra moçambicano-brasileiro, fez este filme com a grande atriz grega Irene Papas e a estreante Claudia Ohana - então casada com Guerra. O filme foi uma produção da França, México e Alemanha, que concorreu à Palma de Ouro em Cannes. Mas o único prêmio que ganhou foi o de melhor cenário no Festival de Cinema do México.
Já tinha lido o conto quando vi a obra de Guerra. Ele soube bem dar um tom sombrio e melancólico ao filme que é um dos poucos que quase se equivalem à obra escrita original. 



Es una obra en la que se trata ampliamente el tema de la prostitución de menores en el Caribe Sudamericano. Narra la historia extendida de Eréndira, una joven criada por su abuela desde que murió su padre. Al llegar a la preadolesencia, la prostituye para así mantener su nivel de vida.
También se puede interpretar como una metáfora de García Márquez entre la explotación de los países menos desarrollados (Eréndira) por parte de países desarrollados (La abuela).
Comienza así su peregrinaje. En uno de tantos pueblos, Eréndira conoce a Ulises, quien se enamora de ella. La busca, le dice que en la noche volverá por ella y la llamará usando el canto de una lechuza. Los dos huyen pero la abuela consigue que la autoridad militar los persiga y atrape. Para que eso no se repita, desde entonces la abuela mantiene encadenada a la cama a Eréndira.
(do blog La Historia del día).



quinta-feira, 17 de abril de 2014

Gabo

A primeira coisa que eu li do Gabriel Garcia Marquez foi Crônica de Uma Morte Anunciada. Depois de muitos anos, recebi uma herança de um tio ainda hoje vivo que nada tinha a me dar, salvo algumas lições básicas de futebol que eu nunca aprendi e um exemplar de Cem Anos de Solidão. Como eu era um adolescente nostálgico, aquela história longa, cheia de mortes, despedidas, abandonos e sumiços casou bem com meu espírito.


Daí vieram O Amor no Tempo do Cólera, Do Amor e Outros Demônios, O Outono do Patriarca e... eu acho que só.


Faz tempo que eu não leio nada do Garcia Marquez: o Gabo que se tornou um ícone da esquerda latina, de guayabera e bigodão, sumiu da minha frente como uma moça que se evolasse em asas de borboletas. Não porque eu tivesse me tornado um quarentão direitoso, ou porque a América Latina não mais me interessasse. Foram apenas coisas da vida. Um afastamento sem querer, como o de um amigo cujas afinidades permanecem adormecidas.


Mas ele vivia nas minhas lembranças. Volta e meia chegava-me um texto apócrifo, que lhe era falsamente atribuído. Coisas cafonas, sem estilo, desmerecedoras das minhas lembranças. Eu as refutava. Aquilo não podia ser coisa do homem.


E agora a notícia de sua morte... Não há como não lembrar do livro sem capa, que eu nem sei onde anda, e do meu tio ainda vivo com quem eu não convivo mais.


Cada pessoa lembra dos autores que leu a partir de suas próprias memórias afetivas. Para mim, Gabriel Garcia Marquez vai ser sempre o autor da saudade e da nostalgia.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A vida seria sonho?

Segismundo vivia aprisionado. Filho do rei polonês Basílio, dado à astrologia, desde a infância foi desterrado e preso em uma torre, por causa de um vaticínio que seu pai recebeu.

Tal como no mito da caverna, Segismundo só sabia da vida aquilo que aprendeu pelas grades da prisão, pelas sombras nas paredes e pela única pessoa com quem tinha contato – Clotaldo, seu guardião.

Descoberto por uma estrangeira que chegou ao reino foragida, Segismundo é posto em liberdade. No entanto, a previsão de Basílio se confirma e logo no primeiro dia fora da prisão o príncipe revela-se um tirano e mata, sem que nem porquê, um serviçal com quem se desentendera.

Decidido a prendê-lo novamente – a próxima vítima seria ele próprio – o rei, para não ser alvo da ira do filho, decide dar-lhe uma poção. Assim, ele dormiria e ao acordar estaria de novo na torre, sua velha cela, sem saber se aquilo que vivera fora da prisão tinha sido sonho ou não.

Novamente na cadeia, ao despertar da vida fora da torre – ou adormecer novamente para a vida na cela – Segismundo declama um solilóquio. A vida seria sonho?

Sonha o rei que é rei, e vive
com este engano mandando,
dispondo e governando;
e este aplauso, que recebe
emprestado, no vento escreve,
e em cinzas converte-lhe
a morte, desdita forte!
Que há quem tenta reinar,
vendo que há de despertar
no sonho da morte?
Sonha o rico em sua riqueza,
que mais cuidados lhe oferecem;
sonha o pobre que padece
sua miséria e sua pobreza;
sonha o que a medrar começa,
sonha o que afana e pretende,
sonha o que agrava e ofende,
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
embora nenhum o entenda.
Eu sonho que estou aqui
destas prisões carregado,
e sonhei que em outro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção,
e o maior bem é pequeno:
que toda a vida é sonho,
e os sonhos, sonhos são.


(A Vida é Sonho – Calderón de la Barca)

sábado, 12 de abril de 2014

Vem dançar comigo

A saudade apertou resolvi passar aqui para dar um alô!

— Quem é vivo sempre aparece, não é mesmo?!

No meu outro blog convido os leitores (as) para ouvir algumas tendências do pop/dance.

— Até a próxima.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Vergonha que não é alheia, é nossa III

Publicado na edição de 31/03/2014 do jornal Metro, edição flamenga

Curso de segurança para torcedores na Copa do Mundo
Bruxelas - Torcedores que vão torcer pelos Diabos Vermelhos (NT: apelido dos jogadores de seleção belga) na Copa do Mundo de Futebol no Brasil podem se armar via um curso especial de segurança contra os criminosos. Em Ranst (NT: cidade da província de Antuérpia,  a 55 km ao norte de Bruxelas), Campus Vesta,  o centro provincial de treinamento para policiais, bombeiros e socorristas médicos de urgências, organiza tal treinamento junto com seu parceiro holandês ProCentrum.
A Brazilian Experience é um curso interativo e se desenrola num bar fictício. Os torcedores ganham uma prova da noite noturna  brasileira com samba ao vivo e deliciosos tira-gostos, mas também com batedores de carteira profissionais. "Você pode ler na internet o que pode  fazer e o que deve evitar, mas logo se esquece. Mas se você mesmo descobre, então fica mais na sua cabeça", garante Ben Cuypers, treinador de controle de agressões.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Cesta do fraseamento. Hoje: Hemoptise

A boca cheia de sangue é a morte no alpendre
o remorso é um tapume blindado pelo eco
Na fumaça cinzenta da memória
a voz ainda trepida em megahertz
Ass: Labareda, do bando de Corisco