sexta-feira, 3 de junho de 2022

Eu vi um homem de vestes negras empunhando o tridente

No roteiro clínico diário não é raro a gente se deparar com destrambelhamentos, de modo a classificar um caso ou outro como surreal. Aí desembaço os óculos com a flanela e vou buscar fundura nas palavras. O tema é cirurgia segura.

Entende-se que um dos pensamentos primazes da medicina não se restringe apenas a estudar o órgão doente; tem que saber em o lado. É lição que se aprende na dialética da graduação. Na Residência a cobrança é mais espinhosa. Se descuidar pode custar visita ao inferno. Nenhum professor permite que o residente chegue à sala de cirurgia sem ter à frente o exame de imagem que demonstre o lado a ser operado. No meu caso, o chefe de serviço não permitia sequer o laudo - tinha que ser a imagem.

Certa vez ele flagrou um residente – parece que não era eu – fazendo pequeno procedimento, sem a radiografia torácica à frente, confiando apenas na memória.  Ele chegou de surpresa. Perguntou o lado. O silêncio foi sepucral. Vi o residente beijar o cramulhão. Da parede saía um homem de vestes negras empunhando um tridente, que penetrava pelas costas. Ele soltou um berro em silêncio. Ficou estatuado por alguns segundos. Sumiu-lhe o sangue do rosto. Escorreu um suor medonho. Senti um fio de pólvora na sala.   

O livro de Atul Gawande chamado “checklist manifesto” descreve todo o bê-á-bá da cirurgia segura. É como se o médico, na vez de piloto de avião, preparasse uma travessia sobre o atlântico, onde tudo é checado, do primeiro ao último fio de cabelo de cada paciente e de cada piloto. Hoje a ciência cirúrgica camba por estes meandros, e os hospitais-acreditados são supervisionados por várias organizações médicas para obter uma boa nota ONA - uma espécie de graduação no quesito segurança.

Uma das principais bandeiras é a identificação do paciente. Operar o paciente errado vira casa de maribondo. Se acrescentar o lado errado  pode se considerar ida ao inferno de Dante sem precisar bater à porta. Isso aconteceu comigo.

Estava sentado, por começar a descrever um procedimento considerado simples -drenagem pleural no CTI. Havia acabado de realizar, chancelado pela enfermagem com acreditação. Foi quando o amigo neurocirurgião entra esbaforido, pela porta principal, e me aborda:

- Drenaste a Nirvanna, que está em morte cerebral. Ela teve uma complicação no lado direito do tórax e, por conta dessa complicação teve parada cardíaca e entrou em coma profundo. Tem 20 anos de idade.

- Não, não... Drenei a Clareana, do lado esquerdo, que também está em coma. Tem 19 anos.

-Nada disso, drenaste a Nirvanna, no lado direito.

- Tu estás confundindo. O nome dela é Clareana e foi o lado esquerdo.

Nada disso, meu amigo, drenaste a Nirvanna, lado direito.

- Tu estás enganado, meu amigo, o nome dela é Clareana e foi do lado esquerdo.

Quando foi pela quarta vez, vi-me beijar o cramulhão. Eu percebi que da parede saía um homem de vestes negras empunhando um tridente, que penetrava pela frente, no meu peito. Soltei um berro em silêncio. Fiquei estatuado por alguns segundos. Sumiu-me o sangue do rosto. Escorreu um suor medonho. Senti um cheiro de pólvora no ar. Eu já olhava para a enfermeira que me acompanhou com um olhar totalmente entregue ao Capa Preta. Faltou-me também o fôlego.

Foi quando a mesma enfermeira perguntou se estávamos falando da mesma paciente. Pronto! Silêncio vernal. Ouvi passarinhos.

A partir de então fui beijado por um anjo. Eu percebi que da parede saía Hipócrates com seu caduceus e fazia o sinal da cruz na minha testa. Soltei emoção calado. O sangue voltou a circular. Senti um cheiro de patchouli.

Depois de alguns segundos pensei em esfolar o meu amigo. Só não o fiz porque em menos de 24 horas ele perdera duas jovens pelo mesmo motivo. O coração dele era menor que o meu e estava precisando de muitas costuras. As costas dele carregavam mais desmazelo que as minhas. Então cheguei em casa e pus limão e gelo na cicuta de Sócrates e transformei em caipirinha. Bebi numa talagada só; desceu aveludada.