quarta-feira, 16 de julho de 2025

Confissões sobre minha pele morta

                           The crack, crack, crack of broken ribs with each chest compression greeted me

at the door. The death clock had started

Paul Ruggiere, in: Confessions of a surgeon

  

Quando morrer, se meu corpo não putrefar de imediato e ainda permanecer algumas horas sob o sol do equador, vou pedir para meus filhos e minha esposa, acostumados com tatuagens, contratarem um bom tatuador para tinturar no meio do peito a clássica frase de René Leriche: “Todo cirurgião carrega consigo um pequeno cemitério, onde de tempos em tempos vai rezar – um lugar de amargura e arrependimentos, onde se deve buscar uma explicação para seus fracassos”.

Que essa frase pese no meu peito feito cruz de angelim-pedra, a mesma que todo cirurgião carrega ao longo de sua lida, mas segue inconfesso e circunspecto. Que fique corrosiva, marcada a ferro e fogo, em carne viva, já que não mais haverá dor. Depois é só descer o esquife e fazer a última oração de corpo presente.

Essas confissões granulares, por vezes espinhosas aos que não têm nervos, não me levam a achar que haja falha em nossa formação acadêmica, ou algum desvio comum na formação cirúrgica. É que o séquito de Ambroise Paré vive com suas almas acabrunhadas, com olho esbugalhado na sociedade desconfiada desde os tempos de Hamurábi.

Explico. Durante muitos anos de minha vida convivi em pronto-socorros. Ganhei muitas, mas perdi algumas batalhas. Cada perda um pouco de mim se ia. Quando voltava pra casa para me confessar, refletia sobre o que eu poderia ter feito de melhor para recuperar aquele jovem que chegou com um tiro no meio do pulmão, ou na beirada do coração. Eu me confessava folheando livros; procurava a sutura cicatrizante olhando para o bico do meu sapato com algumas gotas de sangue.

Foram muitos anos nessa pisada, até num desses dias cair em meu colo o livro de Luis Mir, médico e historiador: Guerra civil e trauma – trauma no sentido de traumatismo físico, violência urbana. Foi presente de amigo. No calhamaço de quase mil páginas achei a pérola que precisava: O trauma obriga cirurgiões a recuperarem para a medicina uma dimensão mais atenta das limitações humanas, definitivamente abandonando qualquer tentação ou delírio mais oculto da onipotência. Era o que precisava ler. Senti-me consolado e, se carreguei algum deus debaixo de minha pele, aquela leitura estóica me fez perder a onipotência.

        E vou além... Se o tal tatuador dispusesse de mais tinta, e minha pele ainda suportasse por mais tempo, pediria aos meus que deixassem estampar mais essa gravura de Mir, nas costas.       Quando aquele jovem abandonou a ilha do Marajó em direção à capital, na busca de uma solução para sua tuberculose brônquica, eu logo achei que fosse capaz de corrigir aquela idiossincrasia com novos conceitos e técnicas que domino, sem falar da aliança com a tecnologia. Dei com os burros na parede. Foi caco de tijolo de sabedoria pra tudo que é lado. Sobraram poucos pedaços do que havia aprendido com os mestres e lido nos maiores autores.

Naquele sábado, ao chegar em casa, sentei-me à frente da bíblia, essa espécie de cemitério que Leriche apregoa, para me confessar mais esse fracasso. Meu olhar se desviou para o livro de Mir – bem à minha frente. Vi-me impávido, frágil, desendeusado e quase desossado. Aquela leitura sincopada acolheu meu pranto àquela confissão.

As orações de René Leriche e Luis Mir têm representatividade para os cirurgiões que se confessam de joelhos, embora saibamos que nem todos se reconheçam dentro dele.

São palavras que adornam o silêncio.

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